A Barriga de Aluguel do Cruel Mafioso
Desde pequena, Sol aprendeu a ser o que sobrava.
A sombra atrás da irmã perfeita, a filha que ninguém escolheu amar.
Enquanto Isadora era o sol da casa — nomeando ironicamente o destino da outra —, Sol crescia na penumbra, carregando as sobras da atenção dos pais, das roupas, dos elogios. Quando tirava nota máxima, a mãe dizia que era obrigação. Quando Isadora tirava sete, ganhava um jantar especial. E, mesmo assim, Sol nunca reclamou. Acreditava que bastava se esforçar mais, ser melhor, mais dócil, mais útil.
— Você é boa, minha filha — dizia o avô, o único que a enxergava. — Mas nesta família, bondade não é virtude. É fraqueza.
Sol nunca entendeu completamente o que ele queria dizer até o dia em que viu o amor virar arma.
A memória daquele conselho do avô era clara como uma cicatriz: o tom grave, o lenço alinhado nas mãos enrugadas, a luz morna do entardecer entrando pela janela da sala onde ela costumava estudar. Era a mesma sala onde, anos depois, perceberia que “bondade” não a protegia de interesses e cálculos. A lembrança vinha sempre com o cheiro do chá que ele tomava — um amargor reconfortante — e com o som distante das fachadas rindo em jantares importantes. Tudo naquela casa parecia ensaiada.
A casa dos Duarte sempre cheirou a flores caras e falsidade. Tapetes espessos abafavam passos e sentimentos; quadros de antepassados observavam com olhos pintados a necessidade de controle. No jantar daquela noite, o perfume doce da mãe — rosas e notas aquosas de algum elixir importado — mal disfarçava a tensão que se movia entre os pratos de porcelana. O avô, no centro plateado da mesa, sentava direito como se pesasse não só as netas, mas possíveis alianças e cotos de poder.
— O contrato está praticamente fechado — disse ele, limpando os lábios com o guardanapo de linho. — O senhor Alencar quer um compromisso formal ainda este mês.
A frase caiu como uma sentença. Isadora sorriu, os dentes brancos recortados pela luz de vela; o sorriso dela tinha sempre um contorno prateado, forjado em vaidade. Sol abaixou os olhos automaticamente, sentindo algo apertar na garganta — uma mistura de alívio e medo. Alívio porque, por um segundo breve e traiçoeiro, parecia que a escolha havia sido dela; medo porque sabia, por intuição que a vida lhe ensinara cedo, que toda gentileza naquelas circunstâncias vinha com um preço invisível.
— Mas o compromisso foi feito com a Sol — o avô completou, firme. — Desde pequena, era ela quem estava destinada a esse casamento.
Silêncio. O tipo de silêncio que corta a sala ao meio e deixa o ar pesado, como se a própria casa prendesse a respiração. A mãe deixou os talheres com um estalo exagerado, como quem tenta disfarçar vergonha.
— Pai, por favor. O senhor sabe que Isadora é muito mais adequada! — implorou, mas sem a convicção de quem realmente quer mudar um destino.
— Adequada? — o velho riu, um som seco, sem humor. — Ela não sabe manter uma conversa sem se olhar no espelho.
O pai, engolindo o espanto, falou com a voz que sempre tentava parecer dura e certa, mas que falhava quando precisava de verdade:
— Ela é linda! E é disso que um homem como Alencar precisa: uma esposa que represente.
Sol sentiu o peito contrair. A palavra “representar” ecoou com uma dureza que a atingiu como um tapa: ela não seria vista; seria útil como imagem. Isadora girou o copo de vinho entre os dedos, a luz acariciando o esmalte vermelho. Fingia modéstia; o sorriso era venenoso, uma beleza treinada para eficácia.
— Talvez o senhor Alencar prefira alguém que saiba sorrir — disse ela, com doçura calculada. — Sol é... apagada demais.
A única que manteve a calma foi a avó, com um falso afeto que cheirava a conivência. O avô, no entanto, bateu o punho na mesa com a autoridade que sempre vinha acompanhada de algo amargo:
— Basta! — rugiu. — A decisão está tomada. A cerimônia será marcada para o próximo mês.
Sol olhou para ele com uma gratidão que ela tentava não demonstrar: alguém, afinal alguém, lembrara dela. A gratidão era pequena e desesperada, mas real — e só tornava mais cruel a venda que poucos dias depois descerraria sobre seus olhos. Porque, naquela casa, amor era um veneno disfarçado de promessa. As promessas daquelas paredes sempre vinham com cláusulas escritas só no olhar.
Três dias depois, o ar cheirava a poeira de estrada e a cortejaria forçada. Sol acordou com o som do motor do carro da família rangendo baixinho na frente da casa de campo — aquelas casas de veraneio que, em sua opinião, serviam mais para esconder traições do que para reunir afetos. Isadora ligara para ela com voz mansa, chamando para um “passeio de reconciliação”. A expressão de Isadora tinha aquela fina camada de sinceridade teatral que sempre a confundira: não sabia se acreditava ou se se punha em cena.
Ela acreditou. Porque acreditava demais — como um erro de construção característico da sua alma.
O dia estava alto, talvez tarde demais para promessas. Quando Isadora abriu a porta do carro com a lentidão de quem se acomoda para um capítulo de si mesma, o vento levantou mechas de cabelo e trouxe o perfume da irmã: uma mistura de jasmim barato e arrogância.
— Vamos caminhar um pouco? — sugeriu com o sorriso fácil que ela usava para abrir portas e fechar bocas.
O bosque atrás da propriedade tinha um caráter antigo, quase blasfemo; ventiladores de sombras das árvores desenhavam figuras no chão. O chão soltava um som seco sob os passos delas, folhas mortas rangendo como papéis velhos. Havia no ar algo que Sol não conseguiu nomear — uma tranquilidade que parecia fabricada, a ponto de doer.
— Sabe, Sol — começou Isadora, com voz mansa, cada sílaba polida —, às vezes me pergunto por que você insiste tanto em ser a boa da história.
— Não insisto. Só não quero ser alguém que machuca — respondeu Sol, sem afetação, com a simplicidade que sempre a traía.
Isadora riu — leve, um riso que caía como lâmina fina. Havia uma calma cortante ali, como a ponta de uma faca escondida na manga.
— Isso te torna tão... previsível.
Sol virou-se, o rosto aberto demais para esconder feridas.
— O que quer dizer?
— Que você confia demais. — Isadora sorriu mais — E confiar demais é uma fraqueza que pouquíssimos homens aceitam.
As palavras eram tão venenosas que Sol sentiu o gosto metálico da ansiedade na boca. Antes que pudesse processar, um estalo seco cortou o ar — o som de metal se armando. Por um instante o mundo se reduziu ao som de seu coração, que bateu alto, sem compassos, enquanto a realidade desabava sobre ela. Um homem saiu das sombras das árvores com a arma em punho, máscara escura escondendo o rosto. O movimento era preciso e mecânico, treinado.
— Isa...? — a pergunta de Sol foi quase um sussurro, porque ainda não queria aceitar.
Isadora recuou um passo, os olhos frios como vidro.
— Nada pessoal, maninha. Mas você sempre teve o que não merecia. E, francamente, o avô vai sobreviver.
O primeiro tiro rasgou o ar. A bala acertou o ombro de Sol com uma violência que parecia arrancar dela o tecido da infância inteira. O som do impacto foi seco; alguém, muito dentro dela, ouviu ossos protestarem. Dor — uma dor branca e criminal — correu pelo braço, subiu pelo pescoço. O corpo a traiu e a jogou contra o chão. A sensação era de estar dentro de um copo que alguém quebrava ao redor dela.
O segundo tiro veio rápido, pegando a margem do que seria a fuga. Sol rolou por reflexo, a queda deixando arranhões, sujeira e o metal frio do sangue começando a abrir a noite do seu sabor. O gosto de ferro encheu sua boca e seu pensamento ficou fragmentado e lento, como se alguém tivesse parado o filme e puxado as bordas.
Ela ouviu passos pesados aproximando-se, e o riso de Isadora — distante, sem pressa — como se a cena inteira fosse uma coreografia que a irmã praticara inúmeras vezes no espelho.
— Termina logo com isso — disse Isadora, impaciente. — Ninguém precisa saber que estivemos aqui.
O terceiro disparo não veio. Em vez dele, um som mais brutal: o estalo de motores cortando a trilha sutil do bosque, o uivo feroz de pneus arrancando. Vozes — viris, urgidas, em outra língua — gritaram ordens. O atirador olhou de soslaio para o deslocamento do perigo e perdeu o compasso. E foi nesse fôlego que a bala quebrou a cabeça dele: um jorro seco, o som final.
Silêncio. Um silêncio que vinha saturado de surpresa e de morte.
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Atualizado até capítulo 60
Comments
Rejane Azambuja
🙏 Vou iniciar amanhã dia 18/10/25⭐🌹🙏🌹🙏
2025-10-18
1
Patricia Sousa
começando a lê em 24/10/25 já gostando
2025-10-26
0
Maria Silva
iniciando hoje 23/10/25
2025-10-24
0