Desde pequena, Sol aprendeu a ser o que sobrava.
A sombra atrás da irmã perfeita, a filha que ninguém escolheu amar.
Enquanto Isadora era o sol da casa — nomeando ironicamente o destino da outra —, Sol crescia na penumbra, carregando as sobras da atenção dos pais, das roupas, dos elogios. Quando tirava nota máxima, a mãe dizia que era obrigação. Quando Isadora tirava sete, ganhava um jantar especial. E, mesmo assim, Sol nunca reclamou. Acreditava que bastava se esforçar mais, ser melhor, mais dócil, mais útil.
— Você é boa, minha filha — dizia o avô, o único que a enxergava. — Mas nesta família, bondade não é virtude. É fraqueza.
Sol nunca entendeu completamente o que ele queria dizer até o dia em que viu o amor virar arma.
A memória daquele conselho do avô era clara como uma cicatriz: o tom grave, o lenço alinhado nas mãos enrugadas, a luz morna do entardecer entrando pela janela da sala onde ela costumava estudar. Era a mesma sala onde, anos depois, perceberia que “bondade” não a protegia de interesses e cálculos. A lembrança vinha sempre com o cheiro do chá que ele tomava — um amargor reconfortante — e com o som distante das fachadas rindo em jantares importantes. Tudo naquela casa parecia ensaiada.
A casa dos Duarte sempre cheirou a flores caras e falsidade. Tapetes espessos abafavam passos e sentimentos; quadros de antepassados observavam com olhos pintados a necessidade de controle. No jantar daquela noite, o perfume doce da mãe — rosas e notas aquosas de algum elixir importado — mal disfarçava a tensão que se movia entre os pratos de porcelana. O avô, no centro plateado da mesa, sentava direito como se pesasse não só as netas, mas possíveis alianças e cotos de poder.
— O contrato está praticamente fechado — disse ele, limpando os lábios com o guardanapo de linho. — O senhor Alencar quer um compromisso formal ainda este mês.
A frase caiu como uma sentença. Isadora sorriu, os dentes brancos recortados pela luz de vela; o sorriso dela tinha sempre um contorno prateado, forjado em vaidade. Sol abaixou os olhos automaticamente, sentindo algo apertar na garganta — uma mistura de alívio e medo. Alívio porque, por um segundo breve e traiçoeiro, parecia que a escolha havia sido dela; medo porque sabia, por intuição que a vida lhe ensinara cedo, que toda gentileza naquelas circunstâncias vinha com um preço invisível.
— Mas o compromisso foi feito com a Sol — o avô completou, firme. — Desde pequena, era ela quem estava destinada a esse casamento.
Silêncio. O tipo de silêncio que corta a sala ao meio e deixa o ar pesado, como se a própria casa prendesse a respiração. A mãe deixou os talheres com um estalo exagerado, como quem tenta disfarçar vergonha.
— Pai, por favor. O senhor sabe que Isadora é muito mais adequada! — implorou, mas sem a convicção de quem realmente quer mudar um destino.
— Adequada? — o velho riu, um som seco, sem humor. — Ela não sabe manter uma conversa sem se olhar no espelho.
O pai, engolindo o espanto, falou com a voz que sempre tentava parecer dura e certa, mas que falhava quando precisava de verdade:
— Ela é linda! E é disso que um homem como Alencar precisa: uma esposa que represente.
Sol sentiu o peito contrair. A palavra “representar” ecoou com uma dureza que a atingiu como um tapa: ela não seria vista; seria útil como imagem. Isadora girou o copo de vinho entre os dedos, a luz acariciando o esmalte vermelho. Fingia modéstia; o sorriso era venenoso, uma beleza treinada para eficácia.
— Talvez o senhor Alencar prefira alguém que saiba sorrir — disse ela, com doçura calculada. — Sol é... apagada demais.
A única que manteve a calma foi a avó, com um falso afeto que cheirava a conivência. O avô, no entanto, bateu o punho na mesa com a autoridade que sempre vinha acompanhada de algo amargo:
— Basta! — rugiu. — A decisão está tomada. A cerimônia será marcada para o próximo mês.
Sol olhou para ele com uma gratidão que ela tentava não demonstrar: alguém, afinal alguém, lembrara dela. A gratidão era pequena e desesperada, mas real — e só tornava mais cruel a venda que poucos dias depois descerraria sobre seus olhos. Porque, naquela casa, amor era um veneno disfarçado de promessa. As promessas daquelas paredes sempre vinham com cláusulas escritas só no olhar.
Três dias depois, o ar cheirava a poeira de estrada e a cortejaria forçada. Sol acordou com o som do motor do carro da família rangendo baixinho na frente da casa de campo — aquelas casas de veraneio que, em sua opinião, serviam mais para esconder traições do que para reunir afetos. Isadora ligara para ela com voz mansa, chamando para um “passeio de reconciliação”. A expressão de Isadora tinha aquela fina camada de sinceridade teatral que sempre a confundira: não sabia se acreditava ou se se punha em cena.
Ela acreditou. Porque acreditava demais — como um erro de construção característico da sua alma.
O dia estava alto, talvez tarde demais para promessas. Quando Isadora abriu a porta do carro com a lentidão de quem se acomoda para um capítulo de si mesma, o vento levantou mechas de cabelo e trouxe o perfume da irmã: uma mistura de jasmim barato e arrogância.
— Vamos caminhar um pouco? — sugeriu com o sorriso fácil que ela usava para abrir portas e fechar bocas.
O bosque atrás da propriedade tinha um caráter antigo, quase blasfemo; ventiladores de sombras das árvores desenhavam figuras no chão. O chão soltava um som seco sob os passos delas, folhas mortas rangendo como papéis velhos. Havia no ar algo que Sol não conseguiu nomear — uma tranquilidade que parecia fabricada, a ponto de doer.
— Sabe, Sol — começou Isadora, com voz mansa, cada sílaba polida —, às vezes me pergunto por que você insiste tanto em ser a boa da história.
— Não insisto. Só não quero ser alguém que machuca — respondeu Sol, sem afetação, com a simplicidade que sempre a traía.
Isadora riu — leve, um riso que caía como lâmina fina. Havia uma calma cortante ali, como a ponta de uma faca escondida na manga.
— Isso te torna tão... previsível.
Sol virou-se, o rosto aberto demais para esconder feridas.
— O que quer dizer?
— Que você confia demais. — Isadora sorriu mais — E confiar demais é uma fraqueza que pouquíssimos homens aceitam.
As palavras eram tão venenosas que Sol sentiu o gosto metálico da ansiedade na boca. Antes que pudesse processar, um estalo seco cortou o ar — o som de metal se armando. Por um instante o mundo se reduziu ao som de seu coração, que bateu alto, sem compassos, enquanto a realidade desabava sobre ela. Um homem saiu das sombras das árvores com a arma em punho, máscara escura escondendo o rosto. O movimento era preciso e mecânico, treinado.
— Isa...? — a pergunta de Sol foi quase um sussurro, porque ainda não queria aceitar.
Isadora recuou um passo, os olhos frios como vidro.
— Nada pessoal, maninha. Mas você sempre teve o que não merecia. E, francamente, o avô vai sobreviver.
O primeiro tiro rasgou o ar. A bala acertou o ombro de Sol com uma violência que parecia arrancar dela o tecido da infância inteira. O som do impacto foi seco; alguém, muito dentro dela, ouviu ossos protestarem. Dor — uma dor branca e criminal — correu pelo braço, subiu pelo pescoço. O corpo a traiu e a jogou contra o chão. A sensação era de estar dentro de um copo que alguém quebrava ao redor dela.
O segundo tiro veio rápido, pegando a margem do que seria a fuga. Sol rolou por reflexo, a queda deixando arranhões, sujeira e o metal frio do sangue começando a abrir a noite do seu sabor. O gosto de ferro encheu sua boca e seu pensamento ficou fragmentado e lento, como se alguém tivesse parado o filme e puxado as bordas.
Ela ouviu passos pesados aproximando-se, e o riso de Isadora — distante, sem pressa — como se a cena inteira fosse uma coreografia que a irmã praticara inúmeras vezes no espelho.
— Termina logo com isso — disse Isadora, impaciente. — Ninguém precisa saber que estivemos aqui.
O terceiro disparo não veio. Em vez dele, um som mais brutal: o estalo de motores cortando a trilha sutil do bosque, o uivo feroz de pneus arrancando. Vozes — viris, urgidas, em outra língua — gritaram ordens. O atirador olhou de soslaio para o deslocamento do perigo e perdeu o compasso. E foi nesse fôlego que a bala quebrou a cabeça dele: um jorro seco, o som final.
Silêncio. Um silêncio que vinha saturado de surpresa e de morte.
Sol tentou puxar ar; o ar parecia mais pesado, como se tivesse sido empapado por sangue e folhagens. O mundo rodou. O corpo queimava; cada movimento era uma punhalada. Entre gemidos baixos e a visão embaçada, ela viu uma figura recortada na névoa de folhas: um homem alto, vestido num casaco pesado que arrastava sombras. O rosto era uma paisagem de cicatrizes, de decisões antigas; os olhos, tão afiados quanto lâminas, lhe atravessaram a alma sem pedir licença.
Ele segurava uma pistola com a naturalidade de quem soubesse do corpo humano e de seus horários de falha. Não havia pressa em seu gesto — apenas eficiência. A boca desenhou um traço seco:
— Quem diabos é você? — ele perguntou em voz baixa, com um sotaque que cortava as palavras como navalha. Havia uma presença ali, uma autoridade que não pedia permissão.
Sol tentou responder, cuspiu som, mas saiu apenas um catarro de sangue e ar. A voz dela era uma coisa que não cabia no peito: frágil, rasgada, pedindo alguma chance. Ele se ajoelhou com cuidado, como se aproximasse de um objeto de estimação ou de um documento que exigisse análise. Observou-a com desconfiança e um interesse contido — um olhar de homem acostumado a avaliar valores e riscos.
— Está viva por pouco. — A mão dele tocou o ferimento no ombro, avaliando a profundidade. Era um toque seco, clínico, sem afeto. — Quem tentou te matar?
Ela olhou para o alto — para o vazio onde a irmã tinha estado — e a palavra saiu devagar, como se soubesse ser-lhe demasiado grande:
— Minha... família.
O homem arqueou a sobrancelha, sem surpresa. Como se aquilo fosse mais comum do que deveria ser.
— Sempre é, ya harami. — Murmurou algo em árabe que soou tecido de desaprovação e costume. Levantou-se com um balanço firme. — Sorte sua que eu também tinha contas a acertar por aqui.
Com um gesto, chamou dois homens que surgiram por entre as árvores — sombras com nomes e função. Eram silenciosos, olhos de predador, mãos que conheciam botões de carros, portas e vidas.
— Leve-a para o carro. Agora.
— Senhor, ela vai morrer antes de... — um dos homens arriscou, a preocupação evidente no tom.
— Então acelere. — O homem respondeu com a frieza de quem dita sentenças. — Eu decido quem morre.
Sol sentiu as mãos grandes a erguendo com precisão quase rude. Havia cuidado, mas era cuidado de quem entende que a vida é mercadoria. O sangue escorria entre os dedos dela e a sensação era de algo simples e definitivo: que aquela noite havia reescrito tudo. E, antes de o mundo se fechar em sombras e o desmaio consumir seus sentidos, alguém falou bem perto de seu ouvido, com um sussurro que gruda na memória:
— Eu salvei sua vida, garota. Um dia, vou cobrar por isso.
O carro arrancou naquela estrada de terra com o arrasto de destino selado, levando consigo o corpo ferido e a última porção de inocência que Sol poupara. A mata ficou para trás, como se nunca tivesse sido palco de um crime. O silêncio da trilha parecia limpar a cena, lavando pegadas e rastros.
O cheiro de sangue secando misturava-se ao de couro e gasolina. O carro que a levava avançava pelas estradas estreitas, engolindo curvas e quilômetros como se fugisse de algo invisível. O som do motor era constante, hipnótico, e o balanço irregular do veículo fazia a dor de Sol pulsar em onda descompassadas. Às vezes, o mundo se apagava por segundos — um mergulho rápido na inconsciência — e quando voltava, tudo doía mais.
Ela ouviu vozes abafadas em outra língua, o ritmo das palavras cortante, militar. Um deles perguntou algo, outro respondeu em tom baixo. O nome “Dmitri” apareceu entre sílabas duras.
Era esse, então, o nome do homem que a salvara — ou talvez, a condenara de outro modo. Sol tentou manter os olhos abertos, mas o peso das pálpebras venceu. Caiu num sono interrompido, frio e suado.
Quando despertou, o ar era outro. Cheirava a ferro, a medicamento e a algo limpo demais para ser humano. As pálpebras pesavam, mas ela as forçou. A luz branca do quarto feriu seus olhos primeiro; depois veio o toque distante do lençol sobre a pele — um tecido fino, caro, e, ainda assim, impessoal.
Tentou se mover e gemeu. O ombro queimava, envolto por uma faixa firme. O corpo reagia lento, anestesiado. A visão se ajustou aos poucos: o teto alto, as cortinas longas, o mobiliário em tons escuros. Tudo ali tinha uma precisão silenciosa, quase matemática. Nenhum objeto fora de lugar. Nenhum traço de desordem. Ela não estava num hospital. Era uma casa. E, ainda assim, tudo parecia mais próximo de uma clínica privada escondida dentro de um mausoléu.
Uma mulher entrou em silêncio, carregando uma bandeja de metal. Tinha feições frias, expressão treinada para não expressar nada.
— Está acordada — disse em um inglês arrastado, o sotaque do leste carregando as sílabas. — Não se mova muito. O ferimento ainda é fresco.
Sol tentou falar, mas a garganta ardeu. A mulher aproximou um copo d’água, apoiando sua cabeça com cuidado profissional.
— Onde... eu estou? — a voz saiu rouca, fraca.
A mulher hesitou, como se medisse o que podia dizer.
— Em lugar seguro. O senhor Valenko pediu que fosse tratada.
O nome cortou o ar.
Valenko. Dmitri Valenko. A mente de Sol tentou montar o rosto dele — os olhos cortantes, o sotaque pesado, a frieza com que dera ordens naquele bosque.
— Quero ir embora — murmurou, embora nem soubesse para onde.
A mulher desviou o olhar, secando as mãos com o pano.
— Talvez... isso não seja possível.
Antes que Sol pudesse responder, passos pesados ecoaram pelo corredor. Lentamente, a maçaneta girou.
O homem entrou. Em pé, e por um instante, o ar pareceu perder a densidade, como se o espaço o reconhecesse. Dmitri Valenko não apenas caminhava — ele ocupava. Seu corpo impunha presença antes mesmo da voz, antes mesmo do olhar. Era alto, de ombros largos e costas retas, o porte de quem nasceu para mandar e jamais precisou levantar a voZ para ser obedecido. A camisa negra moldava-se ao peito firme, às linhas musculosas que denunciavam força sem exagero — a força exata, perigosa, refinada.
As mangas estavam dobradas até os antebraços, revelando a pele marcada por cicatrizes finas, lembranças de batalhas antigas que o tornavam ainda mais humano e, paradoxalmente, ainda mais inacessível. As veias saltavam discretas sob a pele, o relógio prateado pesava em contraste com o tom levemente bronzeado, e cada movimento seu parecia calculado, como se até o modo de respirar fosse um ato de domínio. O rosto dele era uma contradição viva. Traços duros, simétricos, de uma beleza que machucava de tão fria. A mandíbula firme, o queixo desenhado, o nariz reto e o contorno dos lábios — finos, quase severos, mas que guardavam a promessa de algo destrutivo. E os olhos... Deus, os olhos. Eram um tom indecifrável de cinza, gelados e ao mesmo tempo vivos, como aço sob fogo.
Olhos de quem observa para compreender onde está o medo. Olhos de quem não olha — analisa.
O cabelo, escuro e espesso, estava cortado curto nas laterais e um pouco mais longo no topo, penteado de modo a parecer descuidado, mas nada ali era casual. Havia um ar de sofisticação selvagem em cada fio, em cada gesto, em cada silêncio que ele deixava pesar. Quando parou diante da cama, Sol percebeu que aquele homem não era apenas bonito — era o tipo de beleza que não devia existir fora do pecado. Bonito como a lâmina de uma faca: reluzente, perigosa, fascinante. O tipo de homem que inspirava obediência e medo, que poderia arruinar uma mulher apenas existindo perto demais.
E ele estava ali. De pé, dominando o ar que respirava, como se até o oxigênio lhe pertencesse. Sol o observou se aproximar. Ele não olhava para ela como se olham pessoas — olhava como quem avalia uma aquisição, uma peça rara, um erro que pode ser útil.
— Você sobreviveu — disse ele, parando ao lado da cama. A voz era baixa, rouca, com uma cadência arrastada que soava mais como um aviso do que como fala.
Ela engoliu seco.
— O senhor... me trouxe pra cá?
— Eu não deixo pessoas morrerem por acaso — respondeu. — E você caiu no meio de um acerto de contas meu. — O olhar dele desceu para o ombro enfaixado. — Levei um tiro que não era meu, suponho.
O silêncio que se seguiu parecia se estender entre eles como um fio tenso. Sol tentou entender o que ele queria, mas cada palavra vinha lenta, cercada de dor e medo.
— Obrigada... por salvar minha vida. — A gratidão soava absurda diante da forma como ele a observava, quase irritada.
Dmitri inclinou levemente a cabeça, como se não compreendesse o conceito.
— Não fiz por bondade. — Disse, simples, direto. — Eu sempre cobro o que me devem.
A enfermeira, percebendo o peso da conversa, recuou discretamente e saiu, deixando-os sozinhos. Sol fechou os olhos por um instante, buscando ar. O silêncio agora era mais cruel que as balas. Quando falou novamente, a voz tremia, mas havia nela uma dignidade ferida que surpreendeu até a si mesma.
— O que o senhor quer de mim?
Dmitri não respondeu de imediato. Girou o corpo, caminhou até a janela. A luz entrava em faixas, cortando a silhueta dele em fragmentos de sombra e claridade. O rosto era bonito de um jeito brutal, quase incômodo.
Ele apoiou uma das mãos no parapeito e disse, sem se virar:
— Ainda não decidi.
Ela não entendeu.
— Como assim?
— Gente que sangra por mim, normalmente, me deve algo — disse, por fim. — E dívida é o tipo de coisa que nunca deixo passar.
Virou-se então, os olhos fixos nela, e caminhou de volta com passos lentos, precisos. A cada passo, o ar do quarto parecia se contrair.
— Mas, por enquanto, só precisa sobreviver. — Tocou o lençol perto do braço dela, sem encostar na pele. — Já fiz minha parte. Agora é com você.
Ele se afastou antes que ela pudesse responder. Parou à porta e olhou uma última vez.
— Aqui ninguém entra sem minha permissão. Ninguém te tocará — nem para o bem, nem para o mal — enquanto eu decidir que você me pertence.
Sol ficou em silêncio, o coração descompassado.
A porta se fechou com um clique quase inaudível. Ela respirou fundo, tentando entender o que significava “pertencer” para um homem como ele. Mas havia uma certeza latejando sob a dor: fosse o que fosse, ela havia saído do inferno apenas para cair em outro. E, ainda assim, algo dentro dela — talvez a mesma parte que sempre acreditou — não conseguia odiá-lo completamente. Não ainda.
Naquela noite, a dor do ferimento se misturava ao som distante de chuva batendo nos vidros da casa. Sol não sabia onde estava, nem o que o destino planejava, mas uma coisa era clara: Dmitri Valenko não a salvara por piedade.
E, cedo ou tarde, ele cobraria o preço.
Ela não sabia quanto tempo dormira, mas acordou num quarto diferente, vasto e silencioso, onde o ar tinha um perfume frio e metálico — como se fosse misturado a algodão e couro caro. A janela diante dela revelava um mar de luzes artificiais: Doha brilhava noite adentro, como uma cidade que não dormia. Arranha-céus cobertos de vidro refletiam néons coloridos, e a paisagem árida lá fora parecia ter sido esquecida sob a opulência.
O quarto onde despertava era um santuário de luxo extremo. Paredes de mármore branco, tapetes persas finíssimos, uma cama enorme com lençóis que pareciam flutuar sob o corpo. Ao redor, mobiliário impecável — mesas em ébano, vasos de cristal com flores perfumadas, obras de arte modernas pendendo como enigmas silenciosos. O silêncio era quase absoluto, interrompido apenas pelo leve pulsar da cidade além do vidro.
E ele estava ali. Dmitri Valenko. Encostado no batente da porta, imóvel, observando-a dormir. Era um homem que parecia talhado para dominar qualquer ambiente. A camisa preta aberta na gola revelava um peito firme, a pele marcada por cicatrizes que pareciam ter histórias próprias. O cabelo escuro levemente desalinhado, a barba bem aparada, o olhar pesado como chumbo. Havia nele a calma controlada de quem se sente dono não apenas do espaço, mas das próprias vidas ao seu redor.
E ele não tirava os olhos dela.
Sol dormia ainda, o corpo relaxado na cama enorme, ferido mas intacto. O tecido fino dos lençóis revelava contornos suaves, uma vulnerabilidade que ele estudava como quem analisa um mapa de território conquistado.Sol dormia ainda, o corpo relaxado na cama enorme, ferido mas intacto. O tecido fino dos lençóis revelava contornos suaves, uma vulnerabilidade que ele estudava como quem analisa um mapa de território conquistado.
A face dela tinha a inocência da madrugada e a força da madrugada quebrada. Pele clara, quase translúcida, como porcelana delicada, tingida por um leve rubor natural nas maçãs do rosto. O contorno dos lábios, rosados e suaves, carregava uma expressão involuntária de serenidade — como se ignorasse a dor e o perigo. O nariz pequeno e perfeitamente desenhado, arqueando-se com delicadeza sobre traços harmoniosos, dava-lhe um ar quase angelical, como se tivesse saído de uma pintura clássica. Os cabelos caíam sobre o travesseiro em cascata, sedosos, com reflexos dourados que se misturavam ao escuro da noite, criando mechas que lembravam fios de luz e sombra. Alguns caíam sobre o rosto, roçando a pele com leveza, quase como se protegessem o segredo de sua fragilidade.
Mas havia nela algo além da doçura: uma feminilidade intensa, natural, impossível de ignorar. As linhas do pescoço eram elegantes, o ombro descoberto pelo lençol revelava a curva suave e firme de uma mulher jovem, ainda envolta numa aura de inocência, mas já marcada pelo mundo. Havia uma harmonia delicada entre sua fragilidade e a força que seu corpo insinuava — aquela combinação de pureza e presença fazia com que ela parecesse ao mesmo tempo uma criatura etérea e alguém inteiramente capaz de resistir ao peso do mundo.
Não havia desejo declarado naquele olhar, apenas algo que beirava estudo, curiosidade e propriedade. Ela era pequena diante dele, ainda indefesa, e havia algo naquela cena que o prendia mais que qualquer contrato ou dívida. Ele permaneceu ali por minutos, em silêncio absoluto, até que ela respirou fundo e abriu os olhos.
Sol despertou com um sobressalto. O ar fresco da noite e a visão dele diante da porta fizeram-na prender a respiração.
— Você acordou — disse Dmitri, a voz baixa, carregada de um sotaque árabe pesado. Não era pergunta. Era constatação.
— Onde estou? — ela perguntou, a voz rouca e lenta, a dor ainda a rasgar-lhe o ombro.
Ele avançou alguns passos, fechando a distância até encostar-se à lateral da cama. Olhava-a como quem observa um quadro raro — com atenção e paciência cirúrgica.
— Está em Doha. — A resposta foi simples, mas carregada de peso. — No Qatar.
Sol piscou, tentando processar.
— Por quê?
— Porque é mais seguro aqui. — Ele recostou-se ao batente da porta, cruzando os braços. — Aqui eu controlo tudo. E é assim que funciona comigo: nada acontece sem meu conhecimento.
Ela cerrou o lábio, olhando-o com uma mistura de medo e dúvida.
— E eu? O que sou aqui?
Ele se aproximou, mas manteve distância, como quem impõe um território.
— Você é minha dívida — respondeu, com a voz tão fria que soou como sentença. — Eu te salvei da morte. Em troca, existe um preço. E esse preço... você ainda vai descobrir qual é.
Sol engoliu em seco, tentando falar, mas ele ergueu uma mão em gesto simples, cortando qualquer tentativa dela.
— Não tenho interesse em sua resistência agora. Você precisa primeiro entender onde está.
Ele caminhou até a janela, olhando para a cidade iluminada.
— Eu sou árabe, mas não sigo a religião islâmica. O que importa é o poder. E o meu poder me permite decidir quem vive e quem morre. Quem pertence a mim e quem não pertence.
Sol ficou calada, tentando assimilar. A sua mente corria por mil possibilidades, todas dolorosas. Ela queria se levantar, fugir, gritar. Mas a dor no ombro e o cansaço a mantinham imóvel.
— Então... qual é o preço? — ela perguntou finalmente, quase sussurrando.
Ele se voltou, o olhar fixo nela, penetrante.
— Gerar meu herdeiro.
A frase caiu como chumbo sobre a sala silenciosa.
Sol piscou, incrédula.
— O que...?
Ele não respondeu de imediato. Aproximou-se dela com passos lentos e medidos, como quem escolhe cada palavra antes de pronunciá-la. Parou ao lado da cama, a sua presença pesada como um território inalcançável.
— Você vai ter um filho meu — disse ele finalmente. — É simples. Eu quero minha linhagem. Minha herança. E você será a escolhida.
O silêncio se alongou, carregado de choque e incredulidade. Ela queria responder, gritar, negar. Mas nenhuma palavra saiu. Só havia um eco frio dentro dela: pertencimento. Não por escolha dela, mas pela força dele. E, para Sol, não havia mais volta.
— Quando você estiver melhor, totalmente recuperada, falaremos sobre todos os detalhes.
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