Sol tentou puxar ar; o ar parecia mais pesado, como se tivesse sido empapado por sangue e folhagens. O mundo rodou. O corpo queimava; cada movimento era uma punhalada. Entre gemidos baixos e a visão embaçada, ela viu uma figura recortada na névoa de folhas: um homem alto, vestido num casaco pesado que arrastava sombras. O rosto era uma paisagem de cicatrizes, de decisões antigas; os olhos, tão afiados quanto lâminas, lhe atravessaram a alma sem pedir licença.
Ele segurava uma pistola com a naturalidade de quem soubesse do corpo humano e de seus horários de falha. Não havia pressa em seu gesto — apenas eficiência. A boca desenhou um traço seco:
— Quem diabos é você? — ele perguntou em voz baixa, com um sotaque que cortava as palavras como navalha. Havia uma presença ali, uma autoridade que não pedia permissão.
Sol tentou responder, cuspiu som, mas saiu apenas um catarro de sangue e ar. A voz dela era uma coisa que não cabia no peito: frágil, rasgada, pedindo alguma chance. Ele se ajoelhou com cuidado, como se aproximasse de um objeto de estimação ou de um documento que exigisse análise. Observou-a com desconfiança e um interesse contido — um olhar de homem acostumado a avaliar valores e riscos.
— Está viva por pouco. — A mão dele tocou o ferimento no ombro, avaliando a profundidade. Era um toque seco, clínico, sem afeto. — Quem tentou te matar?
Ela olhou para o alto — para o vazio onde a irmã tinha estado — e a palavra saiu devagar, como se soubesse ser-lhe demasiado grande:
— Minha... família.
O homem arqueou a sobrancelha, sem surpresa. Como se aquilo fosse mais comum do que deveria ser.
— Sempre é, ya harami. — Murmurou algo em árabe que soou tecido de desaprovação e costume. Levantou-se com um balanço firme. — Sorte sua que eu também tinha contas a acertar por aqui.
Com um gesto, chamou dois homens que surgiram por entre as árvores — sombras com nomes e função. Eram silenciosos, olhos de predador, mãos que conheciam botões de carros, portas e vidas.
— Leve-a para o carro. Agora.
— Senhor, ela vai morrer antes de... — um dos homens arriscou, a preocupação evidente no tom.
— Então acelere. — O homem respondeu com a frieza de quem dita sentenças. — Eu decido quem morre.
Sol sentiu as mãos grandes a erguendo com precisão quase rude. Havia cuidado, mas era cuidado de quem entende que a vida é mercadoria. O sangue escorria entre os dedos dela e a sensação era de algo simples e definitivo: que aquela noite havia reescrito tudo. E, antes de o mundo se fechar em sombras e o desmaio consumir seus sentidos, alguém falou bem perto de seu ouvido, com um sussurro que gruda na memória:
— Eu salvei sua vida, garota. Um dia, vou cobrar por isso.
O carro arrancou naquela estrada de terra com o arrasto de destino selado, levando consigo o corpo ferido e a última porção de inocência que Sol poupara. A mata ficou para trás, como se nunca tivesse sido palco de um crime. O silêncio da trilha parecia limpar a cena, lavando pegadas e rastros.
O cheiro de sangue secando misturava-se ao de couro e gasolina. O carro que a levava avançava pelas estradas estreitas, engolindo curvas e quilômetros como se fugisse de algo invisível. O som do motor era constante, hipnótico, e o balanço irregular do veículo fazia a dor de Sol pulsar em onda descompassadas. Às vezes, o mundo se apagava por segundos — um mergulho rápido na inconsciência — e quando voltava, tudo doía mais.
Ela ouviu vozes abafadas em outra língua, o ritmo das palavras cortante, militar. Um deles perguntou algo, outro respondeu em tom baixo. O nome “Dmitri” apareceu entre sílabas duras.
Era esse, então, o nome do homem que a salvara — ou talvez, a condenara de outro modo. Sol tentou manter os olhos abertos, mas o peso das pálpebras venceu. Caiu num sono interrompido, frio e suado.
Quando despertou, o ar era outro. Cheirava a ferro, a medicamento e a algo limpo demais para ser humano. As pálpebras pesavam, mas ela as forçou. A luz branca do quarto feriu seus olhos primeiro; depois veio o toque distante do lençol sobre a pele — um tecido fino, caro, e, ainda assim, impessoal.
Tentou se mover e gemeu. O ombro queimava, envolto por uma faixa firme. O corpo reagia lento, anestesiado. A visão se ajustou aos poucos: o teto alto, as cortinas longas, o mobiliário em tons escuros. Tudo ali tinha uma precisão silenciosa, quase matemática. Nenhum objeto fora de lugar. Nenhum traço de desordem. Ela não estava num hospital. Era uma casa. E, ainda assim, tudo parecia mais próximo de uma clínica privada escondida dentro de um mausoléu.
Uma mulher entrou em silêncio, carregando uma bandeja de metal. Tinha feições frias, expressão treinada para não expressar nada.
— Está acordada — disse em um inglês arrastado, o sotaque do leste carregando as sílabas. — Não se mova muito. O ferimento ainda é fresco.
Sol tentou falar, mas a garganta ardeu. A mulher aproximou um copo d’água, apoiando sua cabeça com cuidado profissional.
— Onde... eu estou? — a voz saiu rouca, fraca.
A mulher hesitou, como se medisse o que podia dizer.
— Em lugar seguro. O senhor Valenko pediu que fosse tratada.
O nome cortou o ar.
Valenko. Dmitri Valenko. A mente de Sol tentou montar o rosto dele — os olhos cortantes, o sotaque pesado, a frieza com que dera ordens naquele bosque.
— Quero ir embora — murmurou, embora nem soubesse para onde.
A mulher desviou o olhar, secando as mãos com o pano.
— Talvez... isso não seja possível.
Antes que Sol pudesse responder, passos pesados ecoaram pelo corredor. Lentamente, a maçaneta girou.
O homem entrou. Em pé, e por um instante, o ar pareceu perder a densidade, como se o espaço o reconhecesse. Dmitri Valenko não apenas caminhava — ele ocupava. Seu corpo impunha presença antes mesmo da voz, antes mesmo do olhar. Era alto, de ombros largos e costas retas, o porte de quem nasceu para mandar e jamais precisou levantar a voZ para ser obedecido. A camisa negra moldava-se ao peito firme, às linhas musculosas que denunciavam força sem exagero — a força exata, perigosa, refinada.
As mangas estavam dobradas até os antebraços, revelando a pele marcada por cicatrizes finas, lembranças de batalhas antigas que o tornavam ainda mais humano e, paradoxalmente, ainda mais inacessível. As veias saltavam discretas sob a pele, o relógio prateado pesava em contraste com o tom levemente bronzeado, e cada movimento seu parecia calculado, como se até o modo de respirar fosse um ato de domínio. O rosto dele era uma contradição viva. Traços duros, simétricos, de uma beleza que machucava de tão fria. A mandíbula firme, o queixo desenhado, o nariz reto e o contorno dos lábios — finos, quase severos, mas que guardavam a promessa de algo destrutivo. E os olhos... Deus, os olhos. Eram um tom indecifrável de cinza, gelados e ao mesmo tempo vivos, como aço sob fogo.
Olhos de quem observa para compreender onde está o medo. Olhos de quem não olha — analisa.
O cabelo, escuro e espesso, estava cortado curto nas laterais e um pouco mais longo no topo, penteado de modo a parecer descuidado, mas nada ali era casual. Havia um ar de sofisticação selvagem em cada fio, em cada gesto, em cada silêncio que ele deixava pesar. Quando parou diante da cama, Sol percebeu que aquele homem não era apenas bonito — era o tipo de beleza que não devia existir fora do pecado. Bonito como a lâmina de uma faca: reluzente, perigosa, fascinante. O tipo de homem que inspirava obediência e medo, que poderia arruinar uma mulher apenas existindo perto demais.
E ele estava ali. De pé, dominando o ar que respirava, como se até o oxigênio lhe pertencesse. Sol o observou se aproximar. Ele não olhava para ela como se olham pessoas — olhava como quem avalia uma aquisição, uma peça rara, um erro que pode ser útil.
— Você sobreviveu — disse ele, parando ao lado da cama. A voz era baixa, rouca, com uma cadência arrastada que soava mais como um aviso do que como fala.
Ela engoliu seco.
— O senhor... me trouxe pra cá?
— Eu não deixo pessoas morrerem por acaso — respondeu. — E você caiu no meio de um acerto de contas meu. — O olhar dele desceu para o ombro enfaixado. — Levei um tiro que não era meu, suponho.
O silêncio que se seguiu parecia se estender entre eles como um fio tenso. Sol tentou entender o que ele queria, mas cada palavra vinha lenta, cercada de dor e medo.
— Obrigada... por salvar minha vida. — A gratidão soava absurda diante da forma como ele a observava, quase irritada.
Dmitri inclinou levemente a cabeça, como se não compreendesse o conceito.
— Não fiz por bondade. — Disse, simples, direto. — Eu sempre cobro o que me devem.
A enfermeira, percebendo o peso da conversa, recuou discretamente e saiu, deixando-os sozinhos. Sol fechou os olhos por um instante, buscando ar. O silêncio agora era mais cruel que as balas. Quando falou novamente, a voz tremia, mas havia nela uma dignidade ferida que surpreendeu até a si mesma.
— O que o senhor quer de mim?
Dmitri não respondeu de imediato. Girou o corpo, caminhou até a janela. A luz entrava em faixas, cortando a silhueta dele em fragmentos de sombra e claridade. O rosto era bonito de um jeito brutal, quase incômodo.
Ele apoiou uma das mãos no parapeito e disse, sem se virar:
— Ainda não decidi.
Ela não entendeu.
— Como assim?
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Atualizado até capítulo 60
Comments
Hiroki524
O autor(a) conseguiu me transportar para dentro da história.
2025-10-07
1
Auxiliadora Silva
fotos ! querendo fotos.😍/Joyful//Drool/
2025-10-26
0
Rosilene Aparecida Vieira
coloca fotos dos personagens por favor
2025-10-11
2