O Coração que Dançou Sozinho

O Coração que Dançou Sozinho

Capítulo 1 — O Palco Vazio

A casa era silenciosa, grande demais para apenas dois corpos, mas pequena o suficiente para aprisionar uma alma. Silvia caminhava pelos corredores com os pés descalços, sentindo o frio do mármore sob a pele. O vestido leve que usava pendia como se estivesse cansado, assim como ela — como se soubesse que já não havia mais razão para flutuar.

A dança, um dia sua linguagem, agora era só memória. Os músculos que outrora conheciam o ritmo da vida, hoje obedeciam apenas ao peso do passado.

Silvia costumava acordar cedo. Não por hábito, mas porque o sono já não a visitava com a mesma delicadeza de antes. Preparava o café antes mesmo do sol nascer, tomava banho em silêncio e passava os dedos pelo joelho onde a cicatriz insistia em pulsar. A lembrança do impacto, da dor, da surpresa — tudo ainda morava ali, sob a pele.

Júnior saía cedo. Sempre impecável, sem pressa de dizer adeus. Às vezes, um aceno vago. Outras, nada. O casamento deles era feito de ausências. Nenhuma briga. Nenhum afeto. Nenhuma lembrança feliz. Apenas uma rotina engessada e fria.

Silvia se perguntava todos os dias quando foi que começou a se contentar com o pouco. Talvez tenha sido desde o início. Desde o momento em que aceitou aquele pedido de casamento com os olhos cheios de esperança, sem perceber que esperava sozinha.

Na sala, sobre o piano que nunca foi tocado, havia uma foto deles dois, tirada no dia do "casamento". Ela sorria. Ele também. Mas agora, ao encarar a moldura de madeira entalhada, Silvia via o quanto aquele sorriso era ensaiado — um ensaio como tantos que ela mesma já fizera, mas que no palco pelo menos exigia verdade.

Passou os dedos pela superfície da moldura como se quisesse apagar a lembrança. Então ouviu a porta se abrir. O som da chave girando era como um disparo. Silvia se enrijeceu por reflexo.

— Chegou cedo — disse ela, sem se virar.

— Precisei cancelar uma reunião. — A voz de Júnior era neutra, limpa de emoção. — Temos que conversar.

Silvia finalmente se virou. Os olhos dele eram os mesmos de sempre: frios, impenetráveis. Ele não a olhava como homem olha uma mulher. Nunca tinha olhado. Nem na noite do casamento. Nem nos dias seguintes. Nem quando ela, numa tentativa desesperada, se aproximou em silêncio, com a camisola que um dia foi sua preferida. Ele a evitou com a mesma frieza de quem desvia de um móvel no caminho.

— Fale — respondeu Silvia, recuando um passo, mantendo as mãos cruzadas diante do corpo.

— A Sabrina... — ele hesitou, como se o nome exigisse algum cuidado — ...vai voltar ao país em breve. As autoridades aceitaram o perdão judicial. O caso foi oficialmente arquivado.

Silvia não respondeu de imediato. O silêncio pesou entre os dois. Um silêncio denso, carregado, como se tudo que não foi dito nesses três anos estivesse prestes a desmoronar ali mesmo, no meio da sala.

— E por que está me dizendo isso agora?

— Porque imaginei que gostaria de saber — ele respondeu, seco. — Afinal, ela... é parte do que vivemos.

Silvia sentiu uma pontada no estômago. Parte do que vivemos. Que vida era aquela?

— Claro — ela respondeu, com um sorriso leve, quase irônico. — Como esquecer?

Júnior a observou por um instante. Depois, apenas assentiu, girou nos calcanhares e subiu as escadas.

Silvia ficou parada, olhando para o vazio onde ele estivera. Sabrina ia voltar. Aquela frase ecoava como um alerta. Como um prenúncio.

Naquela noite, Silvia não dormiu. Em vez disso, foi até o pequeno estúdio nos fundos da casa, onde mantinha seus objetos antigos de dança: sapatilhas gastas, figurinos, medalhas, uma caixinha de música quebrada. Acendeu a luz fraca do ambiente e ficou ali, parada diante do espelho de parede.

O reflexo que viu já não era o mesmo. A moça doce, cheia de sonhos, tinha desaparecido. No lugar dela, havia uma mulher de olhos profundos, que começava a entender onde estava. E por que.

Ela passou a mão sobre o espelho, como se limpasse a poeira de si mesma.

O palco da sua vida estava vazio.

Mas algo dentro dela começava, finalmente, a se mover.

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Comments

Sônia Ribeiro

Sônia Ribeiro

Começando agora às 19:19 do dia 10/07/25 ♥️🥰

2025-07-11

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Capítulos
1 Capítulo 1 — O Palco Vazio
2 Capítulo 2 — Três Anos em Silêncio
3 Capítulo 3 — A Verdade no Papel
4 Capítulo 4 — O Vídeo
5 Capítulo 5 — Cássio
6 Capítulo 6 — A Casa dos Três
7 Capítulo 7 — A Incômoda Presença
8 Capítulo 8 — O Espelho
9 Capítulo 9 — O Convite
10 Capítulo 10 — Os Ensaios da Verdade
11 Capítulo 11 — A Primeira Valsa
12 Capítulo 12 — O Último Ensaio
13 Capítulo 13 — A Véspera
14 Capítulo 14 — A Festa
15 Capítulo 15 — A Queda
16 Capítulo 16 — A Reconstrução
17 Capítulo 17 — Um Lugar para Respirar
18 Capítulo 18 — Voz
19 Capítulo 19 — Rastros
20 Capítulo 20 — A Mulher do Espelho
21 Capítulo 21 — A Casa que Renasceu
22 Capítulo 22 — As Paredes Têm Memória
23 Capítulo 23 — A Primeira Fresta
24 Capítulo 24 — O Documento Vivo
25 Capítulo 25 — Vozes em Silêncio
26 Capítulo 26 — O Peso do Nome
27 Capítulo 27 — O Tabuleiro Vira
28 Capítulo 28 — A Máscara Cai
29 Capítulo 29 — O Lobo Sai da Toca
30 Capítulo 30 — O Jogo Inverte
31 Capítulo 31 — O Cerco Fecha
32 Capítulo 32 — A Queda do Rei
33 Capítulo 33 — Última Dança da Farsa
34 Capítulo 34 — A Sombra que Sangra
35 Capítulo 35 — A Noite em que Tudo Queimou
36 Capítulo 36 — Corações em Movimento
37 Capítulo 37 — O Julgamento
38 Capítulo 38 — A Última Página do Silêncio
39 Capítulo 39 — Um Corpo Inteiro de Novo
40 Capítulo 40 — O Primeiro Amanhã
41 Capítulo 41 — A Carta que Nunca Chegou
42 Capítulo 42 — A Cor do Futuro
43 Capítulo 43 — O Último Silêncio de Júnior
44 Capítulo 44 — O Nome da Fundação
45 Capítulo 45 — A Primeira Apresentação
46 Capítulo 46 — O Retorno de Sabrina
47 Capítulo 47 — Vozes que Ecoam
48 Capítulo 48 — Depois da Última Cortina
49 Epílogo — A Dança do Tempo
Capítulos

Atualizado até capítulo 49

1
Capítulo 1 — O Palco Vazio
2
Capítulo 2 — Três Anos em Silêncio
3
Capítulo 3 — A Verdade no Papel
4
Capítulo 4 — O Vídeo
5
Capítulo 5 — Cássio
6
Capítulo 6 — A Casa dos Três
7
Capítulo 7 — A Incômoda Presença
8
Capítulo 8 — O Espelho
9
Capítulo 9 — O Convite
10
Capítulo 10 — Os Ensaios da Verdade
11
Capítulo 11 — A Primeira Valsa
12
Capítulo 12 — O Último Ensaio
13
Capítulo 13 — A Véspera
14
Capítulo 14 — A Festa
15
Capítulo 15 — A Queda
16
Capítulo 16 — A Reconstrução
17
Capítulo 17 — Um Lugar para Respirar
18
Capítulo 18 — Voz
19
Capítulo 19 — Rastros
20
Capítulo 20 — A Mulher do Espelho
21
Capítulo 21 — A Casa que Renasceu
22
Capítulo 22 — As Paredes Têm Memória
23
Capítulo 23 — A Primeira Fresta
24
Capítulo 24 — O Documento Vivo
25
Capítulo 25 — Vozes em Silêncio
26
Capítulo 26 — O Peso do Nome
27
Capítulo 27 — O Tabuleiro Vira
28
Capítulo 28 — A Máscara Cai
29
Capítulo 29 — O Lobo Sai da Toca
30
Capítulo 30 — O Jogo Inverte
31
Capítulo 31 — O Cerco Fecha
32
Capítulo 32 — A Queda do Rei
33
Capítulo 33 — Última Dança da Farsa
34
Capítulo 34 — A Sombra que Sangra
35
Capítulo 35 — A Noite em que Tudo Queimou
36
Capítulo 36 — Corações em Movimento
37
Capítulo 37 — O Julgamento
38
Capítulo 38 — A Última Página do Silêncio
39
Capítulo 39 — Um Corpo Inteiro de Novo
40
Capítulo 40 — O Primeiro Amanhã
41
Capítulo 41 — A Carta que Nunca Chegou
42
Capítulo 42 — A Cor do Futuro
43
Capítulo 43 — O Último Silêncio de Júnior
44
Capítulo 44 — O Nome da Fundação
45
Capítulo 45 — A Primeira Apresentação
46
Capítulo 46 — O Retorno de Sabrina
47
Capítulo 47 — Vozes que Ecoam
48
Capítulo 48 — Depois da Última Cortina
49
Epílogo — A Dança do Tempo

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