A casa era silenciosa, grande demais para apenas dois corpos, mas pequena o suficiente para aprisionar uma alma. Silvia caminhava pelos corredores com os pés descalços, sentindo o frio do mármore sob a pele. O vestido leve que usava pendia como se estivesse cansado, assim como ela — como se soubesse que já não havia mais razão para flutuar.
A dança, um dia sua linguagem, agora era só memória. Os músculos que outrora conheciam o ritmo da vida, hoje obedeciam apenas ao peso do passado.
Silvia costumava acordar cedo. Não por hábito, mas porque o sono já não a visitava com a mesma delicadeza de antes. Preparava o café antes mesmo do sol nascer, tomava banho em silêncio e passava os dedos pelo joelho onde a cicatriz insistia em pulsar. A lembrança do impacto, da dor, da surpresa — tudo ainda morava ali, sob a pele.
Júnior saía cedo. Sempre impecável, sem pressa de dizer adeus. Às vezes, um aceno vago. Outras, nada. O casamento deles era feito de ausências. Nenhuma briga. Nenhum afeto. Nenhuma lembrança feliz. Apenas uma rotina engessada e fria.
Silvia se perguntava todos os dias quando foi que começou a se contentar com o pouco. Talvez tenha sido desde o início. Desde o momento em que aceitou aquele pedido de casamento com os olhos cheios de esperança, sem perceber que esperava sozinha.
Na sala, sobre o piano que nunca foi tocado, havia uma foto deles dois, tirada no dia do "casamento". Ela sorria. Ele também. Mas agora, ao encarar a moldura de madeira entalhada, Silvia via o quanto aquele sorriso era ensaiado — um ensaio como tantos que ela mesma já fizera, mas que no palco pelo menos exigia verdade.
Passou os dedos pela superfície da moldura como se quisesse apagar a lembrança. Então ouviu a porta se abrir. O som da chave girando era como um disparo. Silvia se enrijeceu por reflexo.
— Chegou cedo — disse ela, sem se virar.
— Precisei cancelar uma reunião. — A voz de Júnior era neutra, limpa de emoção. — Temos que conversar.
Silvia finalmente se virou. Os olhos dele eram os mesmos de sempre: frios, impenetráveis. Ele não a olhava como homem olha uma mulher. Nunca tinha olhado. Nem na noite do casamento. Nem nos dias seguintes. Nem quando ela, numa tentativa desesperada, se aproximou em silêncio, com a camisola que um dia foi sua preferida. Ele a evitou com a mesma frieza de quem desvia de um móvel no caminho.
— Fale — respondeu Silvia, recuando um passo, mantendo as mãos cruzadas diante do corpo.
— A Sabrina... — ele hesitou, como se o nome exigisse algum cuidado — ...vai voltar ao país em breve. As autoridades aceitaram o perdão judicial. O caso foi oficialmente arquivado.
Silvia não respondeu de imediato. O silêncio pesou entre os dois. Um silêncio denso, carregado, como se tudo que não foi dito nesses três anos estivesse prestes a desmoronar ali mesmo, no meio da sala.
— E por que está me dizendo isso agora?
— Porque imaginei que gostaria de saber — ele respondeu, seco. — Afinal, ela... é parte do que vivemos.
Silvia sentiu uma pontada no estômago. Parte do que vivemos. Que vida era aquela?
— Claro — ela respondeu, com um sorriso leve, quase irônico. — Como esquecer?
Júnior a observou por um instante. Depois, apenas assentiu, girou nos calcanhares e subiu as escadas.
Silvia ficou parada, olhando para o vazio onde ele estivera. Sabrina ia voltar. Aquela frase ecoava como um alerta. Como um prenúncio.
Naquela noite, Silvia não dormiu. Em vez disso, foi até o pequeno estúdio nos fundos da casa, onde mantinha seus objetos antigos de dança: sapatilhas gastas, figurinos, medalhas, uma caixinha de música quebrada. Acendeu a luz fraca do ambiente e ficou ali, parada diante do espelho de parede.
O reflexo que viu já não era o mesmo. A moça doce, cheia de sonhos, tinha desaparecido. No lugar dela, havia uma mulher de olhos profundos, que começava a entender onde estava. E por que.
Ela passou a mão sobre o espelho, como se limpasse a poeira de si mesma.
O palco da sua vida estava vazio.
Mas algo dentro dela começava, finalmente, a se mover.
Havia dias em que Silvia se esquecia de quem era antes da dor. Antes da cadeira de rodas. Antes de aprender a caminhar outra vez com o corpo tremendo, como se o chão não a quisesse mais.
Era como se o acidente tivesse apagado não só os movimentos de seus pés, mas também os traços da mulher que havia sido. A dançarina. A apaixonada. A sonhadora. Agora, restava apenas o eco de uma existência silenciosa, marcada por lembranças que insistiam em retornar.
Era fim de tarde quando ela se permitiu abrir a antiga caixa de cartas. Nela, guardava fragmentos do passado: recortes de jornais com reportagens das apresentações de dança, convites antigos, pequenos bilhetes de fãs. No fundo da caixa, havia algo que ela sempre evitava encarar: uma pulseira prateada com pingentes de sapatilhas. Júnior lhe dera no aniversário de dezoito anos. Na época, ele era apenas o irmão mais velho da sua colega de curso — distante, inatingível, mas encantador.
Silvia se apaixonara em silêncio. Nunca ousou dizer. Até o dia em que a tragédia a colocou diretamente diante dele.
Era noite quando tudo aconteceu. Chovia, e Silvia saía do estúdio de dança, exausta depois de um ensaio. A rua estava vazia. Quando viu o carro vindo rápido demais, pensou, por um instante, que era apenas alguém distraído. Só no último segundo viu o rosto de Sabrina atrás do volante — os olhos fixos, intensos, o volante firme nas mãos.
O impacto foi seco, o som abafado pelo próprio grito.
Acordou no hospital, cercada por máquinas e promessas vazias. Foi Júnior quem segurou sua mão e disse, com a voz baixa, que cuidaria dela. Que a amava. Que estava ali por ela.
Silvia acreditou.
Dias depois, ele apareceu com uma proposta. O processo contra Sabrina era iminente. Os advogados estavam se preparando. Mas Júnior tinha outro plano. Propôs casamento. Disse que queria transformar tudo aquilo em algo novo, um recomeço. Silvia, com os olhos ainda carregados de amor e o coração afogado em esperança, disse sim.
O casamento foi simples. Rápido. Nenhum dos dois tinha família. Não havia testemunhas além dos funcionários de cartório e os amigos de Júnior — homens frios, engravatados, que pareciam mais preocupados com a assinatura do que com o sorriso da noiva.
Silvia acreditava que o amor viria com o tempo. Que ele precisava de espaço para amar de verdade. Mas o espaço nunca se fechou. Pelo contrário — virou abismo.
Júnior dormia em outro quarto. Dizia que ela precisava de privacidade. Que o corpo dela ainda estava em recuperação. Silvia aceitava, mesmo quando tentava se aproximar. Lembrava-se de uma noite em especial, poucos meses após o casamento. Ela havia colocado um vestido vinho, decotado, o cabelo solto. Caminhou até o quarto dele, os joelhos ainda frágeis, mas o coração pulsando. Bateu na porta.
Ele abriu com expressão neutra. Silvia tentou sorrir, tentou dizer algo leve. Mas Júnior apenas a olhou, passou por ela, e disse que precisava trabalhar. Nunca falou sobre aquilo depois. Ela também não.
A noite seguinte foi ainda pior. Ao voltar para o próprio quarto, Silvia notou a câmera escondida em um dos móveis. Um pequeno ponto vermelho que piscava discretamente. O sangue dela gelou, mas preferiu acreditar que era paranoia.
Nos meses que se seguiram, o casamento virou apenas convivência. Um café silencioso. Um jantar esporádico. Nenhuma carícia. Nenhum toque.
Silvia chorava em silêncio. Às vezes no banho, às vezes em frente ao espelho. Mas sempre escondida.
Três anos se passaram. Três longos anos.
Aos poucos, algo dentro dela começou a morrer. Mas, estranhamente, outra coisa começou a nascer.
Uma nova Silvia. Uma que começava a observar. A juntar peças. A questionar.
Foi numa dessas noites em que tudo parecia vazio que ela viu Cássio pela primeira vez, desde o acidente.
Ele estava na calçada em frente a um restaurante do centro, conversando com alguém ao telefone. Usava terno, o cabelo um pouco mais comprido do que ela lembrava, mas o mesmo olhar gentil.
Silvia não teve coragem de falar com ele. Apenas observou de longe, sentindo algo adormecido dentro do peito.
Cássio não a viu. Ou talvez tenha visto, mas fingiu não ver. Como se soubesse que ainda não era a hora.
De volta à casa, Silvia encarou o teto por horas. Não dormiu. No fundo, sentia que o tempo do silêncio estava acabando.
E que, em breve, dançaria novamente. Não com os pés. Mas com a verdade.
Silvia sempre acreditou que a dor física era mais suportável que a dúvida. Até aquele dia.
A noite estava abafada, e o ar da casa parecia mais espesso do que o normal. Júnior saíra para uma reunião. Era o que ele sempre dizia. Reunião. Viagem. Compromissos. Palavras vagas que delimitavam sua ausência, sem nunca explicá-la.
Silvia terminava de organizar uma das estantes do escritório quando um envelope mal colocado escorregou entre dois livros. Era um envelope grosso, amarelado nas bordas, com o nome dela rabiscado com a caligrafia de uma secretária apressada.
No início, ela apenas o olhou. O instinto dizia para ignorar. Mas o silêncio da casa era um convite.
Abriu.
Lá dentro, havia cópias de documentos. A certidão de casamento. O pedido de arquivamento do processo contra Sabrina. Uma procuração assinada por Silvia — ou pelo menos com uma assinatura que deveria ser dela.
Franziu o cenho.
Pegou o papel com a suposta certidão e o ergueu contra a luz. A marca d’água era diferente da original que ela lembrava. As assinaturas dos “oficiais” do cartório pareciam idênticas — como se tivessem sido carimbadas.
O sangue começou a sumir das pontas dos dedos.
Passou ao próximo documento: o pedido de arquivamento. Lá estava: “Em virtude do perdão concedido pela vítima e da reconciliação entre as partes, solicitamos o encerramento definitivo do processo referente ao atropelamento de Silvia Menezes, ocorrido em…”
Silvia leu e releu a mesma frase mais de cinco vezes. “Perdão concedido.” “Reconciliação entre as partes.” Que partes? Ela e Sabrina nunca trocaram uma palavra desde o hospital.
Suas mãos tremiam.
Puxou o laptop da gaveta, digitou o nome do cartório, o número do registro de casamento. O site era lento. Mas quando a página finalmente carregou, o golpe final veio: “Registro não encontrado.”
Foi como levar outro atropelamento.
Silvia caiu sentada na cadeira, encarando a tela. O casamento não existia. Nunca existiu.
Cada momento, cada gesto frio de Júnior agora fazia sentido. Ele nunca a beijou. Nunca a tocou. Nunca a chamou de esposa — não com verdade. O que ela viveu por três anos foi um teatro, e ela, a única que não sabia o roteiro.
E pior: usaram o nome dela para salvar Sabrina.
O perdão não foi concedido. Foi forjado.
O casamento foi forjado.
Ela, uma marionete silenciosa num espetáculo cruel.
As lágrimas vieram, quentes, raivosas, diferentes das outras. Não havia tristeza. Havia indignação. Pela primeira vez em muito tempo, ela sentia o corpo pulsar — não pela dor, mas pela necessidade de ação.
Levantou-se com firmeza. Foi até o quarto de Júnior. Girou a maçaneta devagar. Estava destrancada.
O ambiente era impecável. Frio. O closet cheirava a couro e madeira polida. Havia pastas organizadas, gavetas trancadas, dispositivos de segurança. Mas Silvia conhecia a forma como ele escondia as coisas. Sempre deixava algo em um local mais óbvio, para disfarçar os verdadeiros esconderijos.
No fundo de uma gaveta, sob camisas dobradas milimetricamente, encontrou uma caixa de metal. Dentro dela, pen drives.
Pegou todos.
Voltou ao próprio quarto. Colocou o primeiro no computador. Estavam criptografados. Mas um deles, o menor, abriu sem senha. Vídeos. Pastas nomeadas com datas. Os arquivos eram pesados, mas carregavam miniaturas: imagens da sala de estar, da cozinha, do corredor.
Câmeras escondidas.
O coração de Silvia quase saiu pela boca.
Clicou no primeiro vídeo. Era ela, na sala, lendo um livro. Outro mostrava ela dormindo. Outro — esse ela não teve coragem de ver inteiro — a mostrava entrando no quarto dele, com o vestido vinho.
A vergonha queimou o rosto. O estômago revirou. Ela estava sendo vigiada.
Gravada.
Humilhada.
Silvia desligou tudo. Sentou-se no chão. Abraçou os joelhos. Ficou ali, por longos minutos, talvez horas. E então, como se puxasse o próprio espírito de dentro de um poço escuro, ela se levantou.
Se Júnior achava que ela era fraca, silenciosa, quebrada — ele logo veria quem ela realmente era.
Ele construiu essa prisão. Mas ela aprenderia a dançar dentro dela. E faria as grades virarem palco.
E no fim, faria a plateia aplaudir a queda dele.
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