Silvia não via Cássio havia mais de cinco anos — tempo suficiente para transformá-lo em lembrança, mas não o bastante para esquecê-lo.
Eles estudaram juntos no colégio. Cresceram dividindo intervalos, confidências e silêncios. Cássio sempre teve olhos tranquilos, daqueles que observam mais do que julgam, que acolhem sem exigir. Quando ela começou a dançar, ele era o primeiro a ocupar a primeira fileira. Quando o mundo pareceu grande demais, ele sabia diminuir a dor com uma piada sem graça e um chocolate roubado da cantina.
Mas então, um dia, ele sumiu.
Disse que precisava se afastar por um tempo, cuidar dos negócios da família. Silvia entendeu. Ou fingiu entender. E, pouco tempo depois, Júnior passou a ocupar todos os espaços.
Agora, tantos anos depois, ele estava ali.
Ela o viu por acaso numa manhã de quarta-feira, ao sair discretamente para caminhar. Tinha se permitido andar sozinha até a floricultura do bairro — um hábito que retomara recentemente. Algo simples, mas que a fazia lembrar que ainda podia existir fora das paredes daquela casa.
Cássio estava parado ao lado de um carro preto, conversando com um florista. Vestia camisa branca dobrada nos cotovelos, a barba bem feita, o cabelo mais longo. Mas os olhos… os olhos eram os mesmos.
Silvia hesitou.
Ele a viu primeiro.
— Silvia?
O nome dela na voz dele causou uma espécie de tropeço interno. Não aquele que derruba — mas o que desperta.
Ela sorriu, pequeno.
— Oi, Cássio.
Ele se aproximou devagar, como se temesse assustá-la.
— Achei que nunca mais te veria.
— Achei o mesmo — respondeu, com sinceridade.
Cássio a olhou como quem procura marcas do tempo. Havia algo nos olhos dele — um cuidado antigo, uma saudade que não gritava, mas se fazia presente.
— Você está… bem?
Silvia quis dizer “não”. Quis contar tudo. Sobre o casamento falso, sobre as câmeras, sobre o vídeo, sobre a dor. Mas apenas assentiu.
— Estou. E você?
— Melhor agora. — O sorriso dele foi leve, mas sincero. — Podemos tomar um café? Se você tiver tempo, claro.
Ela olhou para o relógio de pulso, embora não precisasse. Tinha todo o tempo do mundo — desde que não fosse desperdiçado.
— Pode ser — respondeu. — Mas só se for aquele café que você sempre errava o açúcar.
Ele riu.
— Nunca errei. Era só uma desculpa para prolongar a conversa.
Foram até um café discreto, numa rua arborizada. Sentaram-se na parte externa, onde o vento era suave e o mundo parecia menos hostil. A conversa foi tímida no início, mas, aos poucos, deslizou com naturalidade. Como se o tempo entre eles tivesse apenas feito pausa, não corte.
Silvia falou pouco. Escutava mais. Cássio falava sobre os anos longe, sobre as responsabilidades que herdou cedo demais, sobre como teve que se moldar a um mundo que não escolheu.
— Eu sempre achei que voltaria — disse ele, em certo momento. — Só não sabia se você ainda estaria aqui. Ou se ainda se lembraria de mim.
— Lembrar de você… — Silvia mexeu devagar na xícara. — Foi a única coisa fácil em tudo isso.
Ele a olhou. Um olhar profundo, mas respeitoso. Não havia pena ali. Apenas presença.
— Eu soube do acidente — comentou, com a voz mais baixa. — Mas não tive coragem de ir atrás. Não sabia se seria bem-vindo.
Silvia assentiu. Entendia. Talvez, naquela época, não estivesse pronta. Talvez, se ele tivesse voltado antes, ela ainda estivesse cega demais para enxergá-lo.
Agora, não.
Quando ele a acompanhou até a esquina da rua dela, o sol já estava se pondo. O céu, em tons de cobre e lilás, parecia observar tudo com calma.
— Posso te ver de novo? — Cássio perguntou, ao se despedirem.
Silvia sorriu.
— Pode. Mas só se for você quem errar o açúcar da próxima vez.
Ele riu e assentiu, recuando alguns passos antes de entrar no carro.
Silvia ficou parada, observando as luzes vermelhas sumirem ao longe. Só então se virou, caminhando de volta à casa — à prisão dourada de fachada limpa, onde o lobo usava terno e a irmã era um fantasma à espreita.
Ao entrar em casa, Silvia sentiu o peso do ar mudar. Era como se o mundo lá fora tivesse cheiro, som, textura… e o mundo de dentro fosse apenas um vazio hermético, onde até os passos ecoavam sem resposta.
Fechou a porta devagar. A fechadura estalou, firme. O som habitual. Familiar. Opaco.
Subiu para o quarto sem acender nenhuma luz. O entardecer filtrava sombras pelas frestas das cortinas. Jogou a bolsa sobre a poltrona, tirou os sapatos e ficou em pé, no centro do cômodo, olhando o próprio reflexo no espelho.
Ainda era ela. Mas havia algo novo atrás dos olhos. Um contorno que não pertencia à menina que se apaixonara por Júnior. Era outra coisa. Uma mulher mais firme, mais consciente. E, pela primeira vez, acompanhada por uma lembrança que não doía: o olhar de Cássio.
Ele não havia mudado tanto, não por dentro.
Silvia se lembrava das tardes que passavam juntos debaixo da árvore no quintal da escola. Ele desenhava enquanto ela treinava seus giros. Nunca riam alto — era como se o mundo deles fosse feito de detalhes miúdos, delicados demais para os outros verem. Um tipo raro de silêncio que não assustava, que acolhia.
Cássio não a tratava como uma porcelana trincada. Não a olhava com condescendência nem com pena. E, naquele dia, no café, não perguntou por Júnior. Não perguntou se ela era feliz. Não perguntou o que não queria ouvir — respeitou os muros que ela ainda não sabia como derrubar.
Silvia suspirou, longa e fundo.
Naquela noite, Júnior chegou tarde. Cheirava a vinho caro e perfume alheio. Como sempre, não perguntou onde ela esteve, com quem, fazendo o quê. E, naquele dia, Silvia entendeu o porquê: ele nunca teve medo de perdê-la.
Sentado no sofá, desatando os cadarços dos sapatos, ele comentou:
— A data da recepção da Sabrina foi confirmada. Vai ser no dia do seu aniversário.
Silvia quase sorriu.
— Que gentil da parte dela.
— Não temos muito tempo para planejar. Você pode cuidar da parte estética, da lista? Quero algo elegante, mas discreto. Coisa de bom gosto, você sabe como fazer isso.
Ela assentiu.
— Claro. Vai ser memorável.
E, pela primeira vez, as palavras saíram da boca dela carregadas de verdade.
Naquela noite, Silvia pegou o celular. Digitou devagar. Apagou. Reescreveu.
“Oi, Cássio. Se aquele café com açúcar errado ainda estiver de pé… eu aceito.”
A resposta veio poucos minutos depois.
“Com açúcar, com afeto. Quando você quiser.”
Silvia colocou o celular na mesa de cabeceira e se deitou. Não dormiu de imediato. Mas, pela primeira vez em meses, adormeceu sem sentir o peso de estar sozinha.
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Atualizado até capítulo 49
Comments
Vanilda Costa
Já estou apaixonada Autora.
2025-07-12
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