Capítulo 2 — Três Anos em Silêncio

Havia dias em que Silvia se esquecia de quem era antes da dor. Antes da cadeira de rodas. Antes de aprender a caminhar outra vez com o corpo tremendo, como se o chão não a quisesse mais.

Era como se o acidente tivesse apagado não só os movimentos de seus pés, mas também os traços da mulher que havia sido. A dançarina. A apaixonada. A sonhadora. Agora, restava apenas o eco de uma existência silenciosa, marcada por lembranças que insistiam em retornar.

Era fim de tarde quando ela se permitiu abrir a antiga caixa de cartas. Nela, guardava fragmentos do passado: recortes de jornais com reportagens das apresentações de dança, convites antigos, pequenos bilhetes de fãs. No fundo da caixa, havia algo que ela sempre evitava encarar: uma pulseira prateada com pingentes de sapatilhas. Júnior lhe dera no aniversário de dezoito anos. Na época, ele era apenas o irmão mais velho da sua colega de curso — distante, inatingível, mas encantador.

Silvia se apaixonara em silêncio. Nunca ousou dizer. Até o dia em que a tragédia a colocou diretamente diante dele.

Era noite quando tudo aconteceu. Chovia, e Silvia saía do estúdio de dança, exausta depois de um ensaio. A rua estava vazia. Quando viu o carro vindo rápido demais, pensou, por um instante, que era apenas alguém distraído. Só no último segundo viu o rosto de Sabrina atrás do volante — os olhos fixos, intensos, o volante firme nas mãos.

O impacto foi seco, o som abafado pelo próprio grito.

Acordou no hospital, cercada por máquinas e promessas vazias. Foi Júnior quem segurou sua mão e disse, com a voz baixa, que cuidaria dela. Que a amava. Que estava ali por ela.

Silvia acreditou.

Dias depois, ele apareceu com uma proposta. O processo contra Sabrina era iminente. Os advogados estavam se preparando. Mas Júnior tinha outro plano. Propôs casamento. Disse que queria transformar tudo aquilo em algo novo, um recomeço. Silvia, com os olhos ainda carregados de amor e o coração afogado em esperança, disse sim.

O casamento foi simples. Rápido. Nenhum dos dois tinha família. Não havia testemunhas além dos funcionários de cartório e os amigos de Júnior — homens frios, engravatados, que pareciam mais preocupados com a assinatura do que com o sorriso da noiva.

Silvia acreditava que o amor viria com o tempo. Que ele precisava de espaço para amar de verdade. Mas o espaço nunca se fechou. Pelo contrário — virou abismo.

Júnior dormia em outro quarto. Dizia que ela precisava de privacidade. Que o corpo dela ainda estava em recuperação. Silvia aceitava, mesmo quando tentava se aproximar. Lembrava-se de uma noite em especial, poucos meses após o casamento. Ela havia colocado um vestido vinho, decotado, o cabelo solto. Caminhou até o quarto dele, os joelhos ainda frágeis, mas o coração pulsando. Bateu na porta.

Ele abriu com expressão neutra. Silvia tentou sorrir, tentou dizer algo leve. Mas Júnior apenas a olhou, passou por ela, e disse que precisava trabalhar. Nunca falou sobre aquilo depois. Ela também não.

A noite seguinte foi ainda pior. Ao voltar para o próprio quarto, Silvia notou a câmera escondida em um dos móveis. Um pequeno ponto vermelho que piscava discretamente. O sangue dela gelou, mas preferiu acreditar que era paranoia.

Nos meses que se seguiram, o casamento virou apenas convivência. Um café silencioso. Um jantar esporádico. Nenhuma carícia. Nenhum toque.

Silvia chorava em silêncio. Às vezes no banho, às vezes em frente ao espelho. Mas sempre escondida.

Três anos se passaram. Três longos anos.

Aos poucos, algo dentro dela começou a morrer. Mas, estranhamente, outra coisa começou a nascer.

Uma nova Silvia. Uma que começava a observar. A juntar peças. A questionar.

Foi numa dessas noites em que tudo parecia vazio que ela viu Cássio pela primeira vez, desde o acidente.

Ele estava na calçada em frente a um restaurante do centro, conversando com alguém ao telefone. Usava terno, o cabelo um pouco mais comprido do que ela lembrava, mas o mesmo olhar gentil.

Silvia não teve coragem de falar com ele. Apenas observou de longe, sentindo algo adormecido dentro do peito.

Cássio não a viu. Ou talvez tenha visto, mas fingiu não ver. Como se soubesse que ainda não era a hora.

De volta à casa, Silvia encarou o teto por horas. Não dormiu. No fundo, sentia que o tempo do silêncio estava acabando.

E que, em breve, dançaria novamente. Não com os pés. Mas com a verdade.

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Comments

lua 🌙

lua 🌙

autora começando a ler seu livro! amo histórias com essa pegada

2025-07-11

1

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Capítulos
1 Capítulo 1 — O Palco Vazio
2 Capítulo 2 — Três Anos em Silêncio
3 Capítulo 3 — A Verdade no Papel
4 Capítulo 4 — O Vídeo
5 Capítulo 5 — Cássio
6 Capítulo 6 — A Casa dos Três
7 Capítulo 7 — A Incômoda Presença
8 Capítulo 8 — O Espelho
9 Capítulo 9 — O Convite
10 Capítulo 10 — Os Ensaios da Verdade
11 Capítulo 11 — A Primeira Valsa
12 Capítulo 12 — O Último Ensaio
13 Capítulo 13 — A Véspera
14 Capítulo 14 — A Festa
15 Capítulo 15 — A Queda
16 Capítulo 16 — A Reconstrução
17 Capítulo 17 — Um Lugar para Respirar
18 Capítulo 18 — Voz
19 Capítulo 19 — Rastros
20 Capítulo 20 — A Mulher do Espelho
21 Capítulo 21 — A Casa que Renasceu
22 Capítulo 22 — As Paredes Têm Memória
23 Capítulo 23 — A Primeira Fresta
24 Capítulo 24 — O Documento Vivo
25 Capítulo 25 — Vozes em Silêncio
26 Capítulo 26 — O Peso do Nome
27 Capítulo 27 — O Tabuleiro Vira
28 Capítulo 28 — A Máscara Cai
29 Capítulo 29 — O Lobo Sai da Toca
30 Capítulo 30 — O Jogo Inverte
31 Capítulo 31 — O Cerco Fecha
32 Capítulo 32 — A Queda do Rei
33 Capítulo 33 — Última Dança da Farsa
34 Capítulo 34 — A Sombra que Sangra
35 Capítulo 35 — A Noite em que Tudo Queimou
36 Capítulo 36 — Corações em Movimento
37 Capítulo 37 — O Julgamento
38 Capítulo 38 — A Última Página do Silêncio
39 Capítulo 39 — Um Corpo Inteiro de Novo
40 Capítulo 40 — O Primeiro Amanhã
41 Capítulo 41 — A Carta que Nunca Chegou
42 Capítulo 42 — A Cor do Futuro
43 Capítulo 43 — O Último Silêncio de Júnior
44 Capítulo 44 — O Nome da Fundação
45 Capítulo 45 — A Primeira Apresentação
46 Capítulo 46 — O Retorno de Sabrina
47 Capítulo 47 — Vozes que Ecoam
48 Capítulo 48 — Depois da Última Cortina
49 Epílogo — A Dança do Tempo
Capítulos

Atualizado até capítulo 49

1
Capítulo 1 — O Palco Vazio
2
Capítulo 2 — Três Anos em Silêncio
3
Capítulo 3 — A Verdade no Papel
4
Capítulo 4 — O Vídeo
5
Capítulo 5 — Cássio
6
Capítulo 6 — A Casa dos Três
7
Capítulo 7 — A Incômoda Presença
8
Capítulo 8 — O Espelho
9
Capítulo 9 — O Convite
10
Capítulo 10 — Os Ensaios da Verdade
11
Capítulo 11 — A Primeira Valsa
12
Capítulo 12 — O Último Ensaio
13
Capítulo 13 — A Véspera
14
Capítulo 14 — A Festa
15
Capítulo 15 — A Queda
16
Capítulo 16 — A Reconstrução
17
Capítulo 17 — Um Lugar para Respirar
18
Capítulo 18 — Voz
19
Capítulo 19 — Rastros
20
Capítulo 20 — A Mulher do Espelho
21
Capítulo 21 — A Casa que Renasceu
22
Capítulo 22 — As Paredes Têm Memória
23
Capítulo 23 — A Primeira Fresta
24
Capítulo 24 — O Documento Vivo
25
Capítulo 25 — Vozes em Silêncio
26
Capítulo 26 — O Peso do Nome
27
Capítulo 27 — O Tabuleiro Vira
28
Capítulo 28 — A Máscara Cai
29
Capítulo 29 — O Lobo Sai da Toca
30
Capítulo 30 — O Jogo Inverte
31
Capítulo 31 — O Cerco Fecha
32
Capítulo 32 — A Queda do Rei
33
Capítulo 33 — Última Dança da Farsa
34
Capítulo 34 — A Sombra que Sangra
35
Capítulo 35 — A Noite em que Tudo Queimou
36
Capítulo 36 — Corações em Movimento
37
Capítulo 37 — O Julgamento
38
Capítulo 38 — A Última Página do Silêncio
39
Capítulo 39 — Um Corpo Inteiro de Novo
40
Capítulo 40 — O Primeiro Amanhã
41
Capítulo 41 — A Carta que Nunca Chegou
42
Capítulo 42 — A Cor do Futuro
43
Capítulo 43 — O Último Silêncio de Júnior
44
Capítulo 44 — O Nome da Fundação
45
Capítulo 45 — A Primeira Apresentação
46
Capítulo 46 — O Retorno de Sabrina
47
Capítulo 47 — Vozes que Ecoam
48
Capítulo 48 — Depois da Última Cortina
49
Epílogo — A Dança do Tempo

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