Havia dias em que Silvia se esquecia de quem era antes da dor. Antes da cadeira de rodas. Antes de aprender a caminhar outra vez com o corpo tremendo, como se o chão não a quisesse mais.
Era como se o acidente tivesse apagado não só os movimentos de seus pés, mas também os traços da mulher que havia sido. A dançarina. A apaixonada. A sonhadora. Agora, restava apenas o eco de uma existência silenciosa, marcada por lembranças que insistiam em retornar.
Era fim de tarde quando ela se permitiu abrir a antiga caixa de cartas. Nela, guardava fragmentos do passado: recortes de jornais com reportagens das apresentações de dança, convites antigos, pequenos bilhetes de fãs. No fundo da caixa, havia algo que ela sempre evitava encarar: uma pulseira prateada com pingentes de sapatilhas. Júnior lhe dera no aniversário de dezoito anos. Na época, ele era apenas o irmão mais velho da sua colega de curso — distante, inatingível, mas encantador.
Silvia se apaixonara em silêncio. Nunca ousou dizer. Até o dia em que a tragédia a colocou diretamente diante dele.
Era noite quando tudo aconteceu. Chovia, e Silvia saía do estúdio de dança, exausta depois de um ensaio. A rua estava vazia. Quando viu o carro vindo rápido demais, pensou, por um instante, que era apenas alguém distraído. Só no último segundo viu o rosto de Sabrina atrás do volante — os olhos fixos, intensos, o volante firme nas mãos.
O impacto foi seco, o som abafado pelo próprio grito.
Acordou no hospital, cercada por máquinas e promessas vazias. Foi Júnior quem segurou sua mão e disse, com a voz baixa, que cuidaria dela. Que a amava. Que estava ali por ela.
Silvia acreditou.
Dias depois, ele apareceu com uma proposta. O processo contra Sabrina era iminente. Os advogados estavam se preparando. Mas Júnior tinha outro plano. Propôs casamento. Disse que queria transformar tudo aquilo em algo novo, um recomeço. Silvia, com os olhos ainda carregados de amor e o coração afogado em esperança, disse sim.
O casamento foi simples. Rápido. Nenhum dos dois tinha família. Não havia testemunhas além dos funcionários de cartório e os amigos de Júnior — homens frios, engravatados, que pareciam mais preocupados com a assinatura do que com o sorriso da noiva.
Silvia acreditava que o amor viria com o tempo. Que ele precisava de espaço para amar de verdade. Mas o espaço nunca se fechou. Pelo contrário — virou abismo.
Júnior dormia em outro quarto. Dizia que ela precisava de privacidade. Que o corpo dela ainda estava em recuperação. Silvia aceitava, mesmo quando tentava se aproximar. Lembrava-se de uma noite em especial, poucos meses após o casamento. Ela havia colocado um vestido vinho, decotado, o cabelo solto. Caminhou até o quarto dele, os joelhos ainda frágeis, mas o coração pulsando. Bateu na porta.
Ele abriu com expressão neutra. Silvia tentou sorrir, tentou dizer algo leve. Mas Júnior apenas a olhou, passou por ela, e disse que precisava trabalhar. Nunca falou sobre aquilo depois. Ela também não.
A noite seguinte foi ainda pior. Ao voltar para o próprio quarto, Silvia notou a câmera escondida em um dos móveis. Um pequeno ponto vermelho que piscava discretamente. O sangue dela gelou, mas preferiu acreditar que era paranoia.
Nos meses que se seguiram, o casamento virou apenas convivência. Um café silencioso. Um jantar esporádico. Nenhuma carícia. Nenhum toque.
Silvia chorava em silêncio. Às vezes no banho, às vezes em frente ao espelho. Mas sempre escondida.
Três anos se passaram. Três longos anos.
Aos poucos, algo dentro dela começou a morrer. Mas, estranhamente, outra coisa começou a nascer.
Uma nova Silvia. Uma que começava a observar. A juntar peças. A questionar.
Foi numa dessas noites em que tudo parecia vazio que ela viu Cássio pela primeira vez, desde o acidente.
Ele estava na calçada em frente a um restaurante do centro, conversando com alguém ao telefone. Usava terno, o cabelo um pouco mais comprido do que ela lembrava, mas o mesmo olhar gentil.
Silvia não teve coragem de falar com ele. Apenas observou de longe, sentindo algo adormecido dentro do peito.
Cássio não a viu. Ou talvez tenha visto, mas fingiu não ver. Como se soubesse que ainda não era a hora.
De volta à casa, Silvia encarou o teto por horas. Não dormiu. No fundo, sentia que o tempo do silêncio estava acabando.
E que, em breve, dançaria novamente. Não com os pés. Mas com a verdade.
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Atualizado até capítulo 49
Comments
lua 🌙
autora começando a ler seu livro! amo histórias com essa pegada
2025-07-11
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