Capítulo 4 — O Vídeo

Os dias seguintes à descoberta do falso casamento correram como sombras. Longos, densos, silenciosos demais.

Silvia não o confrontou. Não gritou. Não fugiu. Apenas continuou.

Ela acordava no mesmo horário, preparava o café da mesma forma. Quando Júnior passava por ela com seu habitual silêncio, ela sustentava o olhar. Não com submissão — mas com algo novo, enigmático, quase curioso. E ele, sempre tão atento aos pequenos movimentos de controle, não parecia notar.

Silvia agora sabia fingir tão bem quanto ele.

Durante as manhãs, fingia ler. À tarde, costurava retalhos de lembranças em silêncio, repassando gestos, frases, datas. À noite, esperava. Observava os horários dele, os padrões, os ruídos. Cada detalhe se tornava uma peça em seu tabuleiro.

Um dia, ao limpar um dos armários do corredor, encontrou uma pequena câmera, embutida na parte superior da moldura de um espelho antigo. Não era perceptível a olho nu. Mas ela sabia o que procurar agora.

A raiva crescia devagar. Não era fogo. Era gelo — e isso a assustava mais. Estava se tornando alguém que esperava. Que tramava. Que controlava o próprio fôlego para não fazer barulho ao andar pela casa.

E então, numa noite abafada de terça-feira, Júnior saiu.

Disse que voltaria tarde. Silvia apenas acenou, sentada diante da janela, como quem não escutou. Quando o som do motor sumiu, ela se levantou com calma e foi até o escritório. Tinha vasculhado os pen drives, mas um deles ainda a intrigava — o que estava protegido por senha. Não desistira dele.

Levou o dispositivo ao seu quarto. Usou um programa simples para tentar burlar a proteção. Ficou ali, esperando, o quarto escuro, o monitor iluminando apenas seu rosto.

Depois de longos minutos, uma notificação piscou: acesso autorizado.

Havia apenas uma pasta. Uma única pasta.

Nomeada com uma data específica: 23/06 — o dia do aniversário de Silvia no ano anterior.

Dentro dela, apenas um vídeo.

Silvia hesitou.

O cursor tremia sobre o arquivo. O coração batia devagar, mas forte. Ela clicou.

A imagem era escura. O ambiente, familiar. O quarto dele.

Júnior estava de costas para a câmera. Sentado. Nu. Uma respiração lenta, profunda, preenchia o áudio. Por um instante, Silvia pensou que ele apenas estivesse distraído, talvez dormindo.

Mas então ele se moveu.

Com uma das mãos, puxou algo do bolso interno de uma jaqueta que estava pendurada ao lado. Um papel.

Não. Uma foto.

Silvia reconheceu de imediato: Sabrina.

Sabrina mais jovem, num dos aniversários em família. Estava sorrindo, de vestido azul claro, um pouco curvando o rosto para a câmera como quem tentava parecer inocente. Silvia sabia aquela imagem de cor — já a vira em um porta-retratos antigo na casa dos pais adotivos de Júnior.

Ele segurava a foto como se fosse sagrada.

E então, lentamente, começou a se tocar.

Silvia fechou os olhos por um segundo, mas não teve forças para afastar o rosto da tela.

Ele gemia baixo. Sussurrava frases desconexas, repetia o nome dela — o nome de Sabrina. Com uma devoção que feria, com uma luxúria doentia que repugnava. Não havia dúvida. Nenhuma margem para interpretação. Ele não só a amava — ele a desejava. A irmã. A menina que ele dizia proteger. A mulher que a atropelou.

O vídeo terminou com Júnior curvando o corpo para frente, ofegante, ainda com a foto nas mãos.

Silvia permaneceu imóvel.

Por dentro, era como se tudo tivesse desabado. E, ao mesmo tempo, algo muito antigo estivesse finalmente se levantando.

A indignação que nascera dias antes agora se transformava em algo mais denso, mais letal: clareza.

Tudo fazia sentido. A proteção obsessiva. O falso casamento. O desprezo. As câmeras. A manipulação.

Ela não foi esposa. Foi escudo.

E agora sabia disso com provas.

Com as mãos ainda trêmulas, Silvia salvou o vídeo. Colocou em um pen drive diferente, que prendeu a uma correntinha que passou a usar no pescoço. Um símbolo invertido do que antes foi vulnerabilidade.

Naquela noite, Silvia não dormiu.

Ficou deitada, olhos abertos no teto, escutando os estalos da casa, o som distante de um cachorro latindo, a pulsação nos ouvidos. A imagem de Júnior, curvado sobre a própria obsessão, queimava por dentro como ácido. Mas o corpo dela permanecia parado, quase calmo.

Era como se algo tivesse morrido ali — não a esperança, porque essa ela havia enterrado muito tempo antes. Mas o medo.

Ela passou horas revendo mentalmente tudo o que havia suportado em silêncio. As noites em claro. O vestido vinho. O olhar vazio dele. Os jantares onde só havia talheres e obrigação. A solidão a dois. A falta de perguntas. A falta de respostas. E, sobretudo, o sorriso que ela forçava em frente ao espelho para parecer inteira.

Na manhã seguinte, o céu amanheceu nublado, como se compartilhasse da sua calma tensa.

Ela se levantou cedo. Não havia pressa nos movimentos, mas tudo parecia exato. Vestiu uma blusa neutra, prendeu o cabelo, tomou café sem gosto algum. Quando Júnior desceu, ajeitando a gravata, ela já estava sentada à mesa, folheando um livro de capa dura que nem lia.

— Dormiu bem? — ele perguntou, com uma cortesia programada.

Silvia ergueu os olhos lentamente, encontrou os dele, e sorriu com gentileza.

— Muito.

Ele assentiu e pegou a xícara. Deu dois goles, olhou o relógio. Não reparou no jeito como ela o observava. Não percebeu que aquela mulher não era mais a mesma.

— Hoje vou sair mais tarde. Tenho uma reunião com o jurídico, talvez o pessoal do financeiro venha também. — Ele falava enquanto verificava o telefone. — Preciso que esteja em casa no fim da tarde. Temos que conversar sobre a vinda da Sabrina. Estamos organizando uma recepção simples, mas é importante a sua presença.

Silvia segurou o riso.

— Claro — respondeu apenas.

Ele não reparou o tom. Nem o brilho nos olhos dela. Júnior estava acostumado demais com a obediência.

Quando ele saiu, Silvia lavou a louça, como sempre. Depois foi até o estúdio dos fundos, onde mantinha guardados seus figurinos antigos. Sentou-se no chão, entre caixas de sapatos gastos e tules que o tempo amarelou. Pegou um maço de cartas antigas de alunos e fãs. Em uma delas, uma menina dizia que queria ser como ela — “tão forte e tão leve ao mesmo tempo”.

Forte e leve.

Quantos anos fazia desde que Silvia se sentira qualquer uma dessas coisas?

Ela chorou ali. Pela menina que nunca mais voltou a dançar. Pela mulher que aceitou ser silenciada. Pela ingenuidade que a fez amar alguém que não tinha alma. Mas não era um choro desesperado. Era um luto antigo, que enfim encontrava palavras.

À noite, enquanto preparava o jantar, Silvia ouviu o barulho do carro na garagem. Lavou as mãos com calma, secou com um pano limpo, e colocou os talheres sobre a mesa.

Júnior entrou. Estava com o rosto sério, mas menos contido que o habitual.

— Está bonita hoje — comentou, tirando o paletó.

Silvia ergueu o rosto.

— Obrigada.

— Estive pensando… talvez possamos tornar a recepção da Sabrina algo mais simbólico. Uma festa pequena. Apenas algumas pessoas próximas. Um gesto de recomeço.

Ela o olhou por um momento. Um gesto de recomeço.

Era fascinante como ele transformava tudo em teatro. Como manipulava a realidade para que se encaixasse em sua narrativa pessoal. Como mascarava sua perversidade com palavras bonitas e frases ensaiadas.

— O que acha? — ele perguntou, ao notar seu silêncio.

— Acho… perfeito — disse ela, sorrindo.

E naquele momento, decidiu que a festa seria mesmo simbólica.

Mas não da maneira que ele imaginava.

Silvia passou os dias seguintes como uma atriz treinada. Começou a preparar o figurino. Um vestido novo, discreto, mas elegante. Cuidou dos cabelos, da pele, da postura. Começou a caminhar com a cabeça mais erguida, o olhar mais direto. Não para chamar atenção — mas para lembrar a si mesma de quem era. Do que estava se tornando.

O pen drive com o vídeo agora estava escondido sob a base falsa de uma caixinha de música. E ela já sabia quando o usaria.

O que Júnior não sabia é que a mulher que ele tentou controlar durante três anos estava se armando no silêncio. E que sua queda seria lenta, dolorosa e pública.

Silvia não dançava mais com os pés.

Mas aprendera a dançar com a verdade.

E estava apenas ensaiando seus primeiros passos.

Capítulos
1 Capítulo 1 — O Palco Vazio
2 Capítulo 2 — Três Anos em Silêncio
3 Capítulo 3 — A Verdade no Papel
4 Capítulo 4 — O Vídeo
5 Capítulo 5 — Cássio
6 Capítulo 6 — A Casa dos Três
7 Capítulo 7 — A Incômoda Presença
8 Capítulo 8 — O Espelho
9 Capítulo 9 — O Convite
10 Capítulo 10 — Os Ensaios da Verdade
11 Capítulo 11 — A Primeira Valsa
12 Capítulo 12 — O Último Ensaio
13 Capítulo 13 — A Véspera
14 Capítulo 14 — A Festa
15 Capítulo 15 — A Queda
16 Capítulo 16 — A Reconstrução
17 Capítulo 17 — Um Lugar para Respirar
18 Capítulo 18 — Voz
19 Capítulo 19 — Rastros
20 Capítulo 20 — A Mulher do Espelho
21 Capítulo 21 — A Casa que Renasceu
22 Capítulo 22 — As Paredes Têm Memória
23 Capítulo 23 — A Primeira Fresta
24 Capítulo 24 — O Documento Vivo
25 Capítulo 25 — Vozes em Silêncio
26 Capítulo 26 — O Peso do Nome
27 Capítulo 27 — O Tabuleiro Vira
28 Capítulo 28 — A Máscara Cai
29 Capítulo 29 — O Lobo Sai da Toca
30 Capítulo 30 — O Jogo Inverte
31 Capítulo 31 — O Cerco Fecha
32 Capítulo 32 — A Queda do Rei
33 Capítulo 33 — Última Dança da Farsa
34 Capítulo 34 — A Sombra que Sangra
35 Capítulo 35 — A Noite em que Tudo Queimou
36 Capítulo 36 — Corações em Movimento
37 Capítulo 37 — O Julgamento
38 Capítulo 38 — A Última Página do Silêncio
39 Capítulo 39 — Um Corpo Inteiro de Novo
40 Capítulo 40 — O Primeiro Amanhã
41 Capítulo 41 — A Carta que Nunca Chegou
42 Capítulo 42 — A Cor do Futuro
43 Capítulo 43 — O Último Silêncio de Júnior
44 Capítulo 44 — O Nome da Fundação
45 Capítulo 45 — A Primeira Apresentação
46 Capítulo 46 — O Retorno de Sabrina
47 Capítulo 47 — Vozes que Ecoam
48 Capítulo 48 — Depois da Última Cortina
49 Epílogo — A Dança do Tempo
Capítulos

Atualizado até capítulo 49

1
Capítulo 1 — O Palco Vazio
2
Capítulo 2 — Três Anos em Silêncio
3
Capítulo 3 — A Verdade no Papel
4
Capítulo 4 — O Vídeo
5
Capítulo 5 — Cássio
6
Capítulo 6 — A Casa dos Três
7
Capítulo 7 — A Incômoda Presença
8
Capítulo 8 — O Espelho
9
Capítulo 9 — O Convite
10
Capítulo 10 — Os Ensaios da Verdade
11
Capítulo 11 — A Primeira Valsa
12
Capítulo 12 — O Último Ensaio
13
Capítulo 13 — A Véspera
14
Capítulo 14 — A Festa
15
Capítulo 15 — A Queda
16
Capítulo 16 — A Reconstrução
17
Capítulo 17 — Um Lugar para Respirar
18
Capítulo 18 — Voz
19
Capítulo 19 — Rastros
20
Capítulo 20 — A Mulher do Espelho
21
Capítulo 21 — A Casa que Renasceu
22
Capítulo 22 — As Paredes Têm Memória
23
Capítulo 23 — A Primeira Fresta
24
Capítulo 24 — O Documento Vivo
25
Capítulo 25 — Vozes em Silêncio
26
Capítulo 26 — O Peso do Nome
27
Capítulo 27 — O Tabuleiro Vira
28
Capítulo 28 — A Máscara Cai
29
Capítulo 29 — O Lobo Sai da Toca
30
Capítulo 30 — O Jogo Inverte
31
Capítulo 31 — O Cerco Fecha
32
Capítulo 32 — A Queda do Rei
33
Capítulo 33 — Última Dança da Farsa
34
Capítulo 34 — A Sombra que Sangra
35
Capítulo 35 — A Noite em que Tudo Queimou
36
Capítulo 36 — Corações em Movimento
37
Capítulo 37 — O Julgamento
38
Capítulo 38 — A Última Página do Silêncio
39
Capítulo 39 — Um Corpo Inteiro de Novo
40
Capítulo 40 — O Primeiro Amanhã
41
Capítulo 41 — A Carta que Nunca Chegou
42
Capítulo 42 — A Cor do Futuro
43
Capítulo 43 — O Último Silêncio de Júnior
44
Capítulo 44 — O Nome da Fundação
45
Capítulo 45 — A Primeira Apresentação
46
Capítulo 46 — O Retorno de Sabrina
47
Capítulo 47 — Vozes que Ecoam
48
Capítulo 48 — Depois da Última Cortina
49
Epílogo — A Dança do Tempo

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