Capítulo 19

O chão frio era liso como um porcelanato, ainda que a penumbra não permitisse Cibele observar os detalhes nem do piso e tampouco das colunas colossais que sustentavam teto tão alto. Tal qual templo egípcio, imenso e oblongo, amplo o bastante para ecoar nas distantes paredes sua respiração, vazio de móveis e de sentido. Chamas dançantes e débeis tremelicavam ao longe, sobre um tablado elevado que contava com uma pequena escadaria defronte, alguém se sentava num trono de mármore. Mármore? Como sabia? Havia muitos passos entre ela e o suposto rei para que pudesse falar com propriedade da qualidade do material.

E não, isso não incomodava mais do que os pensamentos que escorriam como tinta nas paredes da mente, falavam sobre poder. Como Deus, o único e verdadeiro Deus, em contraposição as crenças politeístas, onde vários deuses, saudáveis e animados, se divertiam às custas de suas brincadeiras e dramas. O que havia de errado em haver mais de um homem importante no mundo? Por que um só Deus quando havia suficiente espaço no universo para milhares deles?

A cada passo adiante aproximava-se do suposto rei, relaxado em seu hipotético trono. Cada passo apresentava um novo pensamento, uma nova hipótese. Havia espaço para tudo e nenhum homem ou lobisomem deveria se considerar dono do mundo. Ainda que fossem os ditos medíocres que os elegessem. Havia um prazer quase erótico na submissão. Havia conforto em não ter de se preocupar com o que não queria. E disseram haver um propósito, afirmaram que um grande homem se fazia ao imortalizar seu nome, pois que a imortalidade era um desejo profundo em consequência ao medo da finitude.

“O corpo humano tem prazo de validade, tal como um carro velho que se desgasta e já não se move pelo combustível da alma.” — A voz era perturbadora, falava dentro e fora dela.

Havia certo deleite em servir, em se sentir útil, em cuidar do mundo, das pessoas e dos outros seres, mesmo os lobisomens careciam de cuidados. Difícil despir-se do egoísmo e entregar-se a devoção, em doar-se em prol do bem do outro. Não, não era sobre um rei em seu poderoso trono, nem sobre um Deus solitário no palácio da eternidade. Era sobre o coletivo, aprender a ser feliz através da felicidade dos outros.

— Cibele, minha filha — disse o rei assim que seus pés tocou o primeiro degrau do tablado. — Estou feliz que veio.

A chama do candelabro criava sombras no rosto quadrado com traços indígenas e reluzia nas pupilas dilatadas rodeadas por um vermelho carmesim e intenso. Em sua fronte pendia um diadema cravejado de pedras preciosas e da orelha escorria sobre o ombro forte e desnudo uma longa pena branca. Não poderia ser seu pai, ainda que nunca o tivesse conhecido, pois o homem a sua frente não devia ter poucos anos a mais do que ela, jovem e atraente, e ainda assim o desconhecido era familiar. E tal pensamento o fez rir, como se pudesse ouvir.

— Eu sou seu pai ainda que não tenha me deitado com sua mãe com este corpo.

— Do que está falando?

— Da hereditariedade do espírito.

— E o que isso significa?

— Sob o apanágio das Hierarquias Divinas, — disse o homem com cabeça de chacal, logo abaixo do tablado — devido a soberba e maldade de teu povo, ó Makrar, declaro que tuas iniquidades não mais se alastrarão, e tuas filhas e filhos padecerão pelo ventre seco, pois não se multiplicarão na Terra, senão pelo útero humano ao qual deverão se submeter e dignificar. Aprenderão sob a evidência da diminuição dos teus, de que jamais serão coisa alguma senão pela generosidade humana. Eis que os condeno ao infrutuoso destino até que não reste um único Makrar neste mundo.

Cibele fitou o ser antropomórfico com certo terror e incredulidade. De onde veio? Estava escondido em algum canto escuro? Agachado atrás da plataforma? Embora não pudesse precisar, lembrava o deus Anúbis dos egípcios, ao menos foi a única imagem que veio à mente ao tentar explicar para si o que experimentava. E como se estivesse num cinema, acima do trono de seu suposto pai, assistiu cenas degradantes, lobisomens devoravam homens sem a menor misericórdia. Os que não eram devorados, seguiam em fila indiana, atados um ao outro por uma corda no pescoço, guiados por bestas hostis e esnobes para dentro de uma cidade murada onde seriam escravizados.

— Esses são os Makrar — disse o antropomorfo ao subir as escadas. — Acreditavam-se superiores a todos os seres e povos, até mesmo os deuses. Não respeitavam os seres, nem a natureza, poderosos demais, os mais poderosos entre as raças de lobisomens, escravizavam e dizimavam outros povos e espécies para construir suas cidades magníficas, acumulando pedras preciosas e metais raros que sempre amaram e deram mais valor do que qualquer outra forma ou expressão de vida. Eu e seu pai acabamos com isso.

— Um erro da criação, os descendentes dos Atlantes, os primeiros lobisomens — disse o rei.

— Está me dizendo que Pierre é descendente de uma raça de lobisomens pós-diluviana?

— Como você — o rei sorriu, debochado. E acrescentou antes que Cibele pudesse reclamar de tal alegação. — Eu me chamo Pietro, mas já me chamei Ayin, Azazel, o Lobo Cruel, o Alfa Diabo. E sou seu pai, sempre o mesmo pai, desde os primórdios de sua existência. Se eu vivo, você vive.

E um colar flamejou nas mãos dela, materializado a partir do nada, como num passe de mágica. Ao redor, casas em chamas, a fumaça sufocava, pessoas desesperadas corriam por ruas estreitas de terra batida. As bestas rufavam, tão alto os rosnados e suas respirações, que Cibele sentiu-se cercada, não somente pelas poças profundas e viscosas de sangue e o calor asfixiante do incêndio, encolhia-se, horrorizada, em meio ao caos de cadáveres dilacerados e lobisomens ferozes, nauseada pelo cheiro brutal de dejetos, sangue, fumaça e metal.

A fera era imensa e corpulenta, de pelos negros e fartos, olhos vermelhos brilhavam como lâmpadas, tingiam a cabeça lupina com a tênue luz que dançava mais adiante dos contornos dos cílios, como se uma chama carmesim se espalhasse para além dos glóbulos oculares. Bateu com as patas contra o peito de Cibele, e a derrubou de costas sobre uma poça de sangue. Aturdida com o golpe e a situação inesperada, fechou as pálpebras para evitar que a saliva que despencava profusamente da boca bestial a cegasse. E gritou de dor e horror quando as mandíbulas poderosas se fecharam em seu ombro e esfarelou a clavícula em estalidos angustiantes e dolorosos, como um galho se quebrando em várias partes ao mesmo tempo, e sentiu, com certo desespero, a mesma dor fulminante que a mortificou após a mordida de Vicente.

Sonolenta e indisposta, abriu os olhos. Os tons terrosos das paredes, as alcovas que formavam um círculo ao centro, a sensação de estar dentro de uma colmeia, o aroma azedo do ar viciado, a dor dos movimentos do corpo e uma leve falta de ar, fizeram Cibele se lembrar de que estava no Quarto da Noiva.

As imagens oníricas se sobrepunham como se ainda estivesse sonhando, e a cama, aromatizada por ervas medicinais que a amparava não parecia mais real do que as lembranças de seu sonho. Fechou os olhos outra vez, e relaxou no sofrimento, não importava se no mundo real ou onírico, a realidade era penosa demais, e desmanchava-se sobre Cibele como se ambos os mundos, onírico e humano, fossem o mesmo. Cochilou outra vez.

— Linaet... Linaet... Acorde. — Alguém dava leves tapinhas na bochecha de Cibele.

A luz intensa a cegou, todo o quarto abundava numa brancura ofuscante. As vozes alegres das crianças, que brincavam ao lado de fora, chegavam em seus ouvidos em tal volume que tinha a impressão de que alguém a tivesse cercado com potentes caixas de som como as usadas em shows de banda de rock. A cabeça latejava, bem como o ombro machucado pelo lobisomem que a atacara na cidade em chamas, e uma zonzeira, tal qual de uma ressaca alcoólica, turvava a razão.

— Cibele, acorde. — A voz era de Sasha, num volume tão alto que produzia pontadas de dores dentro da cabeça.

— Fale baixo — Cibele pediu, educada. — Minha cabeça dói, por favor, Sasha, fale baixo. — E não era só a voz de Sasha, as outras mulheres no quarto falavam como se usassem megafones. — Há algo de errado com minha audição — Cibele concluiu em voz alta ao, dolorosamente, se sentar. — Eu posso ouvir tudo. Posso ouvir até mesmo um córrego distante, muito abaixo de todas as pedras que compõem essa montanha.

— Do que está falando? — Sasha perguntou tão logo se sentou ao lado.

— Eu posso ouvir os lobos — Cibele sussurrou. — Eu ouço a respiração deles. Estão dormindo. É dia. Sei que é de manhã porque posso ouvir os pássaros em seus voos, o farfalhar dos galhos onde pousam, o som das raízes das gramíneas se prendendo entre as fendas da cordilheira. — Segurou as mãos de Sasha, desorientada e ao mesmo tempo alegre, sussurrou. — Sasha, eu ouço como os lobos. Só que é horrível. Os sons altos e agudos me dão dor de cabeça e me irritam.

Sasha não pôde se conter em si de tanta alegria.

— Ó Cibele, que maravilha! Se pode ouvir o som das raízes das gramas, pode se guiar pelos sons para nos tirar daqui.

Cibele concordou com a cabeça e esboçou um sorriso amarelo.

— Acho que preciso me treinar. É muito confuso, posso identificar os diferentes tons e timbres, categorizar o que são, mas não sei de onde vem, pois se misturam, nem sei se o que ouço é real ou uma alucinação auditiva, e parece vir de todas as direções. Deve haver alguma forma de controlar, de se focar num único som e fazer todos os outros desaparecerem, mas não consigo.

— É por causa da mordida, não é? Está se transformando num deles, não está?

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!