4#Nightfall — Anoitecer
A Lua estava cheia naquela noite, suspensa no céu como uma lembrança que se recusa a desaparecer.
Observei-a da janela, imóvel, como quem encara um inimigo que já foi amante. Era bela, indiscutivelmente. Mas havia algo em sua luz pálida que me incomodava — como se ela soubesse demais. Como se, mesmo sendo apenas um satélite, ousasse me observar com aquela falsa luz emprestada.
Sempre a chamaram de feminina, de deusa, de fonte da fertilidade. Mas, para mim, ela sempre pareceu vazia. Um corpo sem essência, refletindo o brilho de outro, como tantas pessoas que já conheci — cheias de formas, mas ocas de verdade.
Dizem que a Lua rege as marés, os ciclos, os segredos do ventre. Que ela é transformação. Mas o que ela transformou em mim, além da minha paciência?
Talvez eu seja injusta. Talvez seja o cansaço, ou essa sensação constante de estar em desacordo com o universo. Não sei. O que sei é que estou farta de símbolos que não me representam. Farta de esperarem que eu dance conforme as fases da Lua, como se fosse uma marionete das estrelas.
Há noites em que quero ser como ela — fria, distante, imperturbável. Mas outras... outras, eu a invejo por sua constância. Ela desaparece, sim, mas sempre volta. Eu, por outro lado, tenho desaparecido em mim mesma sem saber se voltarei inteira.
Olho para o céu e sinto algo estranho — como se aquela esfera silenciosa estivesse me desafiando. Como se perguntasse: "Você vai continuar negando o que é? Vai seguir fingindo que não sente, que não quer, que não precisa?"
E talvez ela esteja certa. Talvez eu precise de algo mais do que este controle cego, esta rigidez que me faz sentir segura, mas não viva.
Respiro fundo.
A verdade é que, por mais que eu despreze sua luz emprestada, ainda é a luz da Lua que me guia nas noites mais escuras.
E, mesmo que eu não acredite em mitos, parte de mim ainda se encanta com a ideia de que ela guarda os segredos das mulheres que ousaram ser mais do que sombras. As selvagens. As que sangram e sobrevivem. As que amam e partem. As que olham para o céu e veem, não um símbolo, mas um espelho.
Talvez eu seja uma delas.
Talvez eu esteja cansada de fingir que não sou.
Sinto o peso do diário entre as mãos como se ele fosse mais que papel e capa de couro — como se carregasse os fragmentos de mim mesma que ninguém mais vê. Me tornei especialista em guardar o que sinto nas entrelinhas, porque aprender a falar com o mundo foi mais difícil do que deveria.
Mas escrever… escrever me entende.
— Escrevendo no seu caderno novamente, Diana? Já é a segunda vez que te vejo com ele nas mãos. — A voz de Theo rompe meu devaneio, enquanto ele me estende um copo de leite.
— Não é um caderno, Theo. É um diário. — Levo o copo com um pequeno sorriso, sem graça. — Depois de tanto tempo sem ninguém com quem conversar, aprendi a transformar o silêncio em palavras. E confesso… é mais libertador do que parece.
Ele ri baixinho, daquele jeito despreocupado que só ele consegue, mesmo quando tudo ao redor está em ruínas.
É estranho invejar essa leveza no meio do caos. Mas eu invejo.
— Saí pra dar uma volta. Conhecer a cidade, sabe?
Pisco devagar, absorvendo suas palavras com um certo desinteresse, mas no fundo... algo em mim anseia por qualquer novidade que não envolva empacotar a vida de novo.
— Não sei se vou aguentar outra mudança. Estou exausta, Theo. Isso está nos matando aos poucos. A cada mudança, deixamos pedaços nossos para trás. Isso... isso não é viver. — Minha voz sai mais baixa do que o previsto. Como se eu estivesse pedindo socorro e ninguém ouvisse.
Theo não rebate de imediato. Só me observa por um instante mais demorado, como se estivesse calculando a forma menos dolorosa de me responder.
— Eu também não gosto, irmãzinha... mas é necessário. — Encosto o diário ao meu lado e encaro o teto, me perguntando se algum dia vou deixar de me sentir uma hóspede dentro da própria existência.
— Até quando, Theo? Até quando vamos fugir como se fôssemos criminosos? Como se aquele garoto fosse um monstro capaz de nos destruir só com um olhar?
Silêncio.
É assim que tudo termina nas nossas conversas: com o silêncio dizendo o que nem nós temos coragem de verbalizar.
Mas, como sempre, Theo muda de assunto antes que nossas dores se tornem incontornáveis.
— Olha o que me entregaram enquanto eu andava. — Ele estende um panfleto amassado.
Leio o título com certo desprezo.
— “Festa da Colheita”? Parece um evento de aposentados.
— Parece uma festa comum pra mim. Estamos no interior, Diana. Aqui não vai ter balada underground nem cafeteria cult. Isso é o que temos. E seria bom você sair desse quarto, respirar um pouco... viver.
Viver.
A palavra me arranha por dentro. Porque viver, pra mim, é o que acontece com os outros.
Eu apenas existo.
— Acabei de desfazer as caixas. Estou com dor nas costas e com a alma cansada.
— Façamos um trato, então: você se arruma e vamos até lá. Se for um tédio, damos meia-volta e partimos pra qualquer outro canto. Mas por favor, não fique aqui... tão ausente. — Ele sorri com uma expressão de provocação. — Você está começando a conversar com as paredes, e isso me assusta um pouco.
Reviro os olhos, mas cedo. Não porque quero ir, mas porque é Theo.
E Theo sempre foi a âncora quando tudo mais parecia prestes a afundar.
— Tá bom, mas se for um fiasco, pego minha moto e te deixo lá com os velhinhos dançantes.
— Vamos juntos, voltamos juntos. Combinado. — Ele sai do quarto fechando a porta, confiante como sempre.
Fico sozinha de novo, e o silêncio volta a sentar ao meu lado.
Pego meu diário e encaro suas páginas como quem encara um espelho. Sinto as palavras fluírem, quase como um desabafo involuntário:
“Sentada aqui, tentando me convencer de que esse lugar pode ser um lar. Mas Laigné é só mais um cenário temporário da peça que virou minha vida. A lua tem as estrelas… eu tenho os restos do que um dia chamei de lar.
E Theo. Theo, com sua alma grande demais pra caber nesse mundo de incertezas.
Ele é quem me impede de me perder completamente.
Se ao menos eu soubesse do que fugimos tanto...”
Fecho o diário com mais força do que deveria e o guardo no fundo do baú, como quem guarda uma ferida ainda aberta.
— Quem sabe aqui… quem sabe aqui a gente fique tempo suficiente pra eu ser dona de mim mesma. Só mais alguns meses e poderei tomar minhas próprias decisões. — Me olho no espelho com a certeza incômoda de que ninguém vai entender quando eu escolher ficar. — Sei que eles vão ficar chateados, mas eu não quero mais fugir.
Não sei se é coragem ou cansaço.
Mas quero parar de correr.
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Atualizado até capítulo 108
Comments
Angela Maria Gil do Nascimento
Já estou gostando, essa explicação sobre o sol e a lua foi muito bonita 😍😍😍😍😍😍😍😍
2024-04-05
0
Silvia Araújo
vai ser linda essa história, espero como as outras
2022-11-12
2
Joelma Oliveira
quase não acreditei qdo esse livro apareceu pra mim hj!! feliz feliz feliz
2022-05-07
4