Querido diário…
Estou cansada. Não daquele cansaço físico que o corpo reclama, mas daquele silêncio abafado que cresce dentro do peito. Cansada de fugir, de olhar por cima do ombro, de não saber onde termina o que sou e começa o que esperam de mim.
Mas hoje... algo mudou. Pela primeira vez em muito tempo, não me senti louca.
Sempre soube que havia algo em mim — algo estranho, fora do lugar. Quando criança, chamavam de esquisitice. Quando adolescente, virou um alvo. A garota magricela e calada que preferia o canto da sala aos olhares cruéis no corredor.
Theo era a minha âncora. A única voz que se erguia entre as zombarias para me defender.
E, embora seja grata, há uma parte de mim que se envergonha por nunca ter sido capaz de lutar sozinha.
Será que sou assim desde o princípio? Alguém que precisa ser salva?
Quero mudar isso. Quero me ver com olhos diferentes. Se há mesmo seres celestiais me procurando, então que venham. Mas que me encontrem preparada.
Uma batida suave ecoa na porta. Meu diário ainda aberto sobre os joelhos. Fecho-o num estalo, sem tempo de esconder as palavras que escrevi.
— Interessante — diz Alec, com aquele meio sorriso que sempre carrega uma lembrança.
— Ah, olá, estranho! — Tento parecer leve, mas por dentro meu coração ainda pulsa apressado.
— Minha irmã também escrevia em um diário.
— É uma forma de organizar a bagunça aqui dentro — respondo, apontando para a cabeça. Ele se senta ao meu lado e por um momento o quarto parece menor, mais íntimo, como se houvesse algo não dito pairando entre nós.
— Ivy… — Ele hesita. — Quer que eu te chame de Diana?
— Não. Ainda é estranho, mas... estou me acostumando — digo com um sorriso frágil.
— Não quero que pense que estou virando sua vida de cabeça para baixo.
— Você não virou, Alec. Você abriu as janelas. Trouxe luz. Trouxe… verdades que eu sempre senti, mas nunca consegui provar. — Toco sua mão sem pensar. É um gesto pequeno, mas nele há uma confissão muda de afeto, de necessidade.
— E olhar pra você agora… — Ele suspira. — Ela teria tanto orgulho da mulher que você se tornou.
O silêncio que se segue não é desconfortável. É denso. Quase sagrado.
— Preciso ir. Mas volto amanhã. Prometo.
— Não vá. — Minha voz sai mais baixa do que gostaria. E mais carente do que admito.
É quase patético o quanto preciso que ele fique. Mas tem algo nele que me ancora, que silencia o caos.
Ele hesita. Talvez também sinta isso.
— Tudo bem. Fico mais um pouco.
Sorrio, sem jeito.
— Seria estranho eu deitar em seu colo?
Ele ri. Aquele riso que guarda memórias que ainda não recuperei.
— Você costumava fazer isso o tempo todo. Quando te fazia dormir. — Ele abre os braços num convite silencioso. Me aproximo, devagar, e me deixo afundar no calor de seu colo.
Quando sua mão começa a deslizar pelos meus cabelos, um arrepio percorre minha nuca. Mas não é medo. É… conforto. É como voltar para casa.
— É estranho. Me sinto tão segura assim com você. Como se meu corpo lembrasse do que minha mente ainda tenta entender.
— Alguns hábitos vivem na alma, Ivy. Não na memória.
Fecho os olhos, absorvendo cada palavra. Cada gesto. Cada silêncio.
— Tive um sonho essa noite… ou talvez tenha sido uma lembrança.
— Me conta.
— Eu estava em um balanço. E minha mãe me empurrava. Nós ríamos. Falávamos sobre coisas simples. Você estava lá, observando. Era tão real que doeu acordar.
— O balanço de Hallstatt?
— Sim. Quando voltei lá com Theo, ainda estava lá… o balanço. Me atrevi a subir nele de novo. Mas as cordas arrebentaram. Cai como uma idiota.
— Se machucou?
— Só o orgulho.
Ele ri, e por um instante, voltamos a ser dois adolescentes fugindo do tempo.
— Estar aqui assim com você… traz tudo de volta. Sinto que se eu fechar os olhos com força, vou ouvir a risada de Sophie ecoando no quintal.
— Eu também queria que ela estivesse aqui — sussurro.
O momento é quebrado por uma batida insistente na porta. Ergo a cabeça com pesar.
— Posso falar com ela? — Theo aparece na porta nós observando. Sua voz firme, mas tensa.
— Nos falamos amanhã, Theo.
— Só um minuto, Ivy. — Há urgência em sua voz. Mas hoje, não posso, não quero.
— Amanhã, Theo. Por favor.
— Está bem — ele responde, resignado. Ou talvez machucado.
Silêncio.
— Ele é insistente — Alec comenta.
— As coisas mudaram entre nós. Eu mudei. Mas... não quero perdê-lo.
— Não perca. O laço de vocês era algo bonito. Verdadeiro.
Me sento devagar, o peito pesado com sentimentos que não sei nomear.
Alec me observa, atento. E por um momento, sinto que ele vê tudo o que escondo — até o que eu mesma não consigo ver.
Talvez eu esteja começando a lembrar.
Ou talvez… esteja apenas começando a sentir.
A noite caiu com um peso morno sobre meus ombros, como se o ar tivesse ficado mais espesso desde a última vez que respirei sem pensar nele. Theo.
Ainda era difícil digerir o que aconteceu — e talvez mais difícil ainda aceitar o que restou entre nós: estilhaços de confiança que já não se encaixam como antes.
— Estou magoada com ele... — confessei, a voz baixa, quase um sussurro preso entre os lábios e o peito. — Não consigo esconder isso. Não sei se posso voltar a confiar nele. Acho que nosso elo foi quebrado.
Alec não me julgou. Ele apenas assentiu, com a serenidade de quem já caminhou por caminhos parecidos.
— Sei como se sente. Também passei por algo do tipo... mas você pode mudar isso.
Palavras gentis, mas será que mudar algo tão partido ainda é possível?
Suspirei, mas algo em sua expressão me instigou. Uma ternura discreta quando mencionava minha mãe. Uma delicadeza quase culposa.
— Posso te fazer uma pergunta? — perguntei, com cautela. Alec arqueou uma sobrancelha, sorrindo de leve.
— Pergunte.
— Você e minha mãe... vocês tinham algo?
O silêncio dele foi carregado. Quase ouvi o som de lembranças se abrindo atrás dos olhos.
— Tivemos, sim — respondeu, finalmente. — Antes do seu pai. Mas depois, por respeito à memória dele, achei que não era certo reatarmos. Contudo... sempre amei Sophie. E se me perguntar se ainda a amo... a resposta é sim.
Suas palavras foram diretas, mas sem amargura. Não havia vergonha, só uma honestidade que me comoveu mais do que esperava.
— E não teve mais ninguém em sua vida durante todos esses anos?
— Ninguém.
Algo no jeito como ele disse isso me tocou profundamente. Como alguém pode viver tantos anos fiel a um sentimento que não pôde florescer?
— Contudo, enquanto te procurava... às vezes ia até Boston.
— Fazer o quê?
— Ver se uma velha amiga estava bem. Mas ela não sabe disso.
Alec se levantou então, como quem entende que a hora de partir chegou, mas sem pressa, com aquele tipo de presença que não some quando a pessoa vai embora.
— Agora eu realmente preciso ir, Ivy. — Ele sorriu diante do meu olhar pidão. — Não faz essa carinha. Amanhã eu volto, prometo.
— Tudo bem. Preciso de um banho também... hoje o dia foi agitado.
— Durma bem. E pensa no que te disse.
Assenti em silêncio, e ele desapareceu pela janela com a leveza de quem conhece as sombras.
Fiquei alguns segundos encarando o espaço vazio, depois olhei para o diário jogado sobre o travesseiro. Fechei-o com cuidado, como se selasse ali uma parte do dia, e fui para o banheiro.
A água quente caiu sobre minha pele como um abraço que eu não sabia que precisava. E ali, sozinha, em meio ao vapor e ao cansaço, deixei os pensamentos virem.
Alec estava certo sobre uma coisa. Parte de mim ainda ama Theo. Mas amor não é o suficiente quando a confiança desmorona.
Talvez eu quisesse que ele lutasse por mim. Talvez ainda queira. Ou talvez eu só deseje que ele olhe nos meus olhos e diga a verdade — sem rodeios, sem defesas.
Vesti meu pijama com mãos trêmulas, ainda envolta na névoa quente do banho, e saí do quarto em silêncio.
Cada passo pelo corredor era como atravessar um campo minado de lembranças.
Parei diante da porta dele. Hesitei. Respirei fundo.
E bati.
Porque mesmo que meu coração esteja em pedaços, eu ainda precisava entender se alguma peça dele ainda cabia ao lado do meu.
A porta do quarto de Theo está entreaberta, como se me convidasse a entrar... ou a desistir. Bato de leve, minha voz quase falha.
— Theo? Estou aqui... queria conversar.
Nenhuma resposta. O vazio responde com um silêncio que pesa como chumbo. Empurro a porta, e o quarto revela apenas a ausência dele — e a bagunça que é tão dele quanto suas respostas curtas.
Meu peito aperta. Sinto o cheiro dele ainda ali, uma mistura de madeira e vento. Mas ele já foi embora. De novo.
Desço as escadas tentando não parecer perdida. Mas estou. Totalmente.
Azrael está no escritório, sério como sempre. Melissa na cozinha, mexendo em alguma panela como se cozinhar fosse sua fuga emocional.
E eu... não sei mais como chamá-la. Melissa. Mãe. Estranha. A mulher que me amou antes de contar a verdade.
— Você viu o Theo? — minha voz escapa sem força.
— Ele subiu pra falar com você — ela responde, gentil, sem saber o quanto me dói essa palavra. “Você”.
— Ele não está mais lá em cima. — Tento parecer indiferente, mas falho. Fico evidente demais quando me sinto descartável.
— Ele deve ter saído, você sabe como ele é… precisa do próprio tempo.
Ela está certa. Eu também. Mas isso não resolve nada.
— Tudo bem… se ele aparecer, pode pedir pra ele me encontrar no meu quarto?
— Posso, sim. — Ela sorri de leve, mas antes que eu possa virar as costas, ela me chama com uma doçura que quebra qualquer barreira:
— Ivy?
Me viro, hesitante. Ela me olha com olhos que conhecem minha dor, mas não podem aliviá-la.
— Eu sei que hoje foi demais pra sua cabecinha… — ela sorri como se ainda fosse minha mãe, como se eu ainda fosse pequena. — Mas só queria que soubesse que, mesmo assim… eu e Azrael amamos você.
Aquelas palavras me atravessam como um sopro quente numa noite gelada. E de repente, o orgulho já não parece tão importante.
— Me desculpa… se fui dura. Não era minha intenção machucar. Só... doeu.
— Está tudo bem, meu amor. Eu entendo. Só me preocupo com o que vem daqui pra frente.
Ela tem razão em se preocupar. A estrada à frente parece feita de cacos.
— Vai ficar tudo bem. — Tento acreditar enquanto falo. Talvez, se eu repetir mais vezes, isso vire verdade.
Me viro para ir embora, mas algo me prende. Talvez seja o sentimento de culpa, ou o fato de ainda querer pertencer. Me aproximo dela, hesitante, e deixo um beijo em sua bochecha.
— Durma bem.
— Você também, querida.
Subo as escadas me sentindo um pouco menos partida, mas longe de inteira. Me deito na cama, mas a inquietação cresce como um incêndio silencioso. O teto parece me observar, e tudo em mim grita por algo que me acalme — ou que me tire daqui.
Theo.
Levanto como se movida por um ímpeto inexplicável. Visto qualquer coisa, pego a jaqueta, as chaves da moto, e saio pela noite. O vento gelado me acerta o rosto como uma bofetada desperta.
Preciso encontrar ele. Não por respostas. Mas por mim.
Preciso saber se ainda existe algo entre nós que valha o esforço. Se o que se quebrou pode ser reconstruído... ou se tudo que sobrou foi o som oco do que fomos.
Theo.
Levanto como se movida por um ímpeto inexplicável. Visto qualquer coisa, pego a jaqueta, as chaves da moto, e saio pela noite. O vento gelado me acerta o rosto como uma bofetada desperta.
Preciso encontrar ele. Não por respostas. Mas por mim.
Preciso saber se ainda existe algo entre nós que valha o esforço. Se o que se quebrou pode ser reconstruído... ou se tudo que sobrou foi o som oco do que fomos.
A noite parecia me engolir a cada quilômetro que eu avançava. As luzes da cidade ficaram para trás, substituídas por sombras e faróis solitários. O vento cortava meu rosto com uma frieza quase simbólica — como se o mundo quisesse esfriar o que eu não conseguia conter por dentro.
Por que estou procurando por ele?
Por que não consigo simplesmente dormir e esperar o dia seguinte, como qualquer pessoa racional faria?
Mas eu não era racional. Não quando se tratava dele.
A estrada me levou até onde nem minha consciência imaginava ir. O asfalto abriu espaço para uma parada iluminada por luzes amareladas, meio tremeluzentes, como se até elas estivessem cansadas daquela noite. Um bar de beira de estrada. Carros estacionados de forma torta. Sons abafados de risadas, rock antigo e copos tilintando.
Desci da moto com um aperto no peito que nem o vento mais frio conseguiu dissipar. Entrei.
O cheiro de cigarro impregnava tudo. Era um lugar onde o tempo parecia ter parado, onde ninguém queria lembrar do amanhã. Caminhoneiros, motoqueiros, mulheres de olhos delineados e sorrisos viciados em promessas vazias. Um lugar de fuga.
Meus olhos o encontraram antes que eu pudesse respirar.
No balcão.
Theo.
O corpo meio inclinado, os dedos segurando um copo, o sorriso fácil estampado no rosto. Ele não parecia perdido.
Parecia… satisfeito.
E então ela.
Uma mulher de vestido curto, botas e uma risada rouca.
Ela o beijou — sem hesitação, sem medo.
E ele correspondeu. Com vontade.
Com gosto.
Eu parei. Senti o chão sumir debaixo dos meus pés.
Ela se afastou, rindo.
— Droga… você beija como o inferno prometido. Cuidado com os corações que vai colecionar.
Ele riu.
Despreocupado. Pleno.
E eu?
Eu fiquei ali.
Estática.
Como se a cena me atravessasse.
Como se aquilo não fizesse sentido e, ao mesmo tempo, fizesse todo o sentido do mundo.
Afinal… ele não era mais meu irmão, era?
Mas por que doía tanto?
Por que meu peito parecia preso numa prisão invisível?
A raiva tentou se vestir de orgulho, mas tropeçou no desconcerto que me inundava. Respirei fundo, engoli seco e caminhei até ele com passos firmes demais para o que eu estava sentindo.
— Eu, preocupada com você… e te encontro muito bem, por sinal. — minha voz saiu mais ácida do que planejei. E menos firme do que desejei.
Ele virou.
O sorriso desapareceu.
— Ivy…?
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Atualizado até capítulo 108
Comments
Mariele Cordeiro Soares
Claro que não ele é um Vampiro eles não envelhece fica do msm jeito por toda internidade
2024-09-28
0
Naide Berger
Mas no livro 1 é a mesma foto do Alec, não mudou nada
2024-01-31
1
Silvia Araújo
eita
2022-11-12
2