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4#Nightfall — Anoitecer

Livro 1 - Lua Nova : Influência da Lua

A Lua estava cheia naquela noite, suspensa no céu como uma lembrança que se recusa a desaparecer.

Observei-a da janela, imóvel, como quem encara um inimigo que já foi amante. Era bela, indiscutivelmente. Mas havia algo em sua luz pálida que me incomodava — como se ela soubesse demais. Como se, mesmo sendo apenas um satélite, ousasse me observar com aquela falsa luz emprestada.

Sempre a chamaram de feminina, de deusa, de fonte da fertilidade. Mas, para mim, ela sempre pareceu vazia. Um corpo sem essência, refletindo o brilho de outro, como tantas pessoas que já conheci — cheias de formas, mas ocas de verdade.

Dizem que a Lua rege as marés, os ciclos, os segredos do ventre. Que ela é transformação. Mas o que ela transformou em mim, além da minha paciência?

Talvez eu seja injusta. Talvez seja o cansaço, ou essa sensação constante de estar em desacordo com o universo. Não sei. O que sei é que estou farta de símbolos que não me representam. Farta de esperarem que eu dance conforme as fases da Lua, como se fosse uma marionete das estrelas.

Há noites em que quero ser como ela — fria, distante, imperturbável. Mas outras... outras, eu a invejo por sua constância. Ela desaparece, sim, mas sempre volta. Eu, por outro lado, tenho desaparecido em mim mesma sem saber se voltarei inteira.

Olho para o céu e sinto algo estranho — como se aquela esfera silenciosa estivesse me desafiando. Como se perguntasse: "Você vai continuar negando o que é? Vai seguir fingindo que não sente, que não quer, que não precisa?"

E talvez ela esteja certa. Talvez eu precise de algo mais do que este controle cego, esta rigidez que me faz sentir segura, mas não viva.

Respiro fundo.

A verdade é que, por mais que eu despreze sua luz emprestada, ainda é a luz da Lua que me guia nas noites mais escuras.

E, mesmo que eu não acredite em mitos, parte de mim ainda se encanta com a ideia de que ela guarda os segredos das mulheres que ousaram ser mais do que sombras. As selvagens. As que sangram e sobrevivem. As que amam e partem. As que olham para o céu e veem, não um símbolo, mas um espelho.

Talvez eu seja uma delas.

Talvez eu esteja cansada de fingir que não sou.

Sinto o peso do diário entre as mãos como se ele fosse mais que papel e capa de couro — como se carregasse os fragmentos de mim mesma que ninguém mais vê. Me tornei especialista em guardar o que sinto nas entrelinhas, porque aprender a falar com o mundo foi mais difícil do que deveria.

Mas escrever… escrever me entende.

— Escrevendo no seu caderno novamente, Diana? Já é a segunda vez que te vejo com ele nas mãos. — A voz de Theo rompe meu devaneio, enquanto ele me estende um copo de leite.

— Não é um caderno, Theo. É um diário. — Levo o copo com um pequeno sorriso, sem graça. — Depois de tanto tempo sem ninguém com quem conversar, aprendi a transformar o silêncio em palavras. E confesso… é mais libertador do que parece.

Ele ri baixinho, daquele jeito despreocupado que só ele consegue, mesmo quando tudo ao redor está em ruínas.

É estranho invejar essa leveza no meio do caos. Mas eu invejo.

— Saí pra dar uma volta. Conhecer a cidade, sabe?

Pisco devagar, absorvendo suas palavras com um certo desinteresse, mas no fundo... algo em mim anseia por qualquer novidade que não envolva empacotar a vida de novo.

— Não sei se vou aguentar outra mudança. Estou exausta, Theo. Isso está nos matando aos poucos. A cada mudança, deixamos pedaços nossos para trás. Isso... isso não é viver. — Minha voz sai mais baixa do que o previsto. Como se eu estivesse pedindo socorro e ninguém ouvisse.

Theo não rebate de imediato. Só me observa por um instante mais demorado, como se estivesse calculando a forma menos dolorosa de me responder.

— Eu também não gosto, irmãzinha... mas é necessário. — Encosto o diário ao meu lado e encaro o teto, me perguntando se algum dia vou deixar de me sentir uma hóspede dentro da própria existência.

— Até quando, Theo? Até quando vamos fugir como se fôssemos criminosos? Como se aquele garoto fosse um monstro capaz de nos destruir só com um olhar?

Silêncio.

É assim que tudo termina nas nossas conversas: com o silêncio dizendo o que nem nós temos coragem de verbalizar.

Mas, como sempre, Theo muda de assunto antes que nossas dores se tornem incontornáveis.

— Olha o que me entregaram enquanto eu andava. — Ele estende um panfleto amassado.

Leio o título com certo desprezo.

— “Festa da Colheita”? Parece um evento de aposentados.

— Parece uma festa comum pra mim. Estamos no interior, Diana. Aqui não vai ter balada underground nem cafeteria cult. Isso é o que temos. E seria bom você sair desse quarto, respirar um pouco... viver.

Viver.

A palavra me arranha por dentro. Porque viver, pra mim, é o que acontece com os outros.

Eu apenas existo.

— Acabei de desfazer as caixas. Estou com dor nas costas e com a alma cansada.

— Façamos um trato, então: você se arruma e vamos até lá. Se for um tédio, damos meia-volta e partimos pra qualquer outro canto. Mas por favor, não fique aqui... tão ausente. — Ele sorri com uma expressão de provocação. — Você está começando a conversar com as paredes, e isso me assusta um pouco.

Reviro os olhos, mas cedo. Não porque quero ir, mas porque é Theo.

E Theo sempre foi a âncora quando tudo mais parecia prestes a afundar.

— Tá bom, mas se for um fiasco, pego minha moto e te deixo lá com os velhinhos dançantes.

— Vamos juntos, voltamos juntos. Combinado. — Ele sai do quarto fechando a porta, confiante como sempre.

Fico sozinha de novo, e o silêncio volta a sentar ao meu lado.

Pego meu diário e encaro suas páginas como quem encara um espelho. Sinto as palavras fluírem, quase como um desabafo involuntário:

“Sentada aqui, tentando me convencer de que esse lugar pode ser um lar. Mas Laigné é só mais um cenário temporário da peça que virou minha vida. A lua tem as estrelas… eu tenho os restos do que um dia chamei de lar.

E Theo. Theo, com sua alma grande demais pra caber nesse mundo de incertezas.

Ele é quem me impede de me perder completamente.

Se ao menos eu soubesse do que fugimos tanto...”

Fecho o diário com mais força do que deveria e o guardo no fundo do baú, como quem guarda uma ferida ainda aberta.

— Quem sabe aqui… quem sabe aqui a gente fique tempo suficiente pra eu ser dona de mim mesma. Só mais alguns meses e poderei tomar minhas próprias decisões. — Me olho no espelho com a certeza incômoda de que ninguém vai entender quando eu escolher ficar. — Sei que eles vão ficar chateados, mas eu não quero mais fugir.

Não sei se é coragem ou cansaço.

Mas quero parar de correr.

Livro 1- Lua Nova : Dor e Sussurro

Terminei de ajustar a jaqueta sobre os ombros e encarei meu reflexo no espelho. O cabelo liso caía suavemente sobre a clavícula, e meus olhos — realçados pelo traço escuro do lápis — pareciam ainda mais intensos sob a luz do fim de tarde. Azul como um céu prestes a desabar. Respirei fundo, tentando silenciar a inquietação que dançava no peito. Sorri de leve, um daqueles sorrisos que disfarçam mais do que revelam, e peguei o capacete. Eu nunca conseguia sair de moto sem a jaqueta — era quase um escudo, uma armadura silenciosa.

Desci as escadas e, como previsto, minha mãe já me observava com aquele olhar que mistura amor e desconfiança. O tipo de olhar que pesa sem precisar de palavras. Ela nunca gostou muito quando eu saía sem avisar. E claro, Theo não disse uma palavra a eles — típico do meu irmão.

— Vai sair, Diana? — a voz dela veio carregada de algo entre o cuidado e o medo. Ela desviou o olhar para o meu pai, que apenas abaixou o jornal com uma expressão silenciosa. Aquilo sempre me incomodava. Essa ânsia em me manter por perto, como se a qualquer momento eu fosse evaporar.

— Theo vai me levar a uma festa local, mãe — respondi, tentando manter o tom sereno. — Não é nada demais.

Antes que ela pudesse rebater, Theo entrou na sala com seu jeito despreocupado de sempre, beijando o topo da cabeça da nossa mãe.

— É aqui perto, senhora superprotetora — disse, com aquele sorriso debochado. — Pode ficar tranquila, eu cuido dela.

Revirei os olhos, mas não consegui conter o sorriso. Theo tinha o dom de aliviar qualquer tensão — e de provocar outras tantas.

— Já conversamos sobre isso, Theo — minha mãe disse, o semblante firme. — Acabamos de chegar, não sabemos como as coisas funcionam por aqui.

— Justamente por isso, vamos explorar — rebateu ele, puxando minha mão como se quisesse me salvar de um cárcere invisível. — Vamos antes que ela mude de ideia e tranque a porta.

— Não vamos demorar, mãe. Eu prometo — falei, sentindo a mão dele apertar a minha com cumplicidade.

— Só tome cuidado, Diana — ela insistiu, agora com os olhos diretamente nos meus. — E se vir aquele garoto... você já sabe o que fazer.

A menção não dita ecoou mais alto do que qualquer nome. Assenti com a cabeça, mesmo sem saber ao certo o que faria se o visse.

— Está bem, mãe.

— Você lembrou de tomar seu remédio? — veio a pergunta final, como um último fio de controle.

— Tomei, mãe — menti com doçura. — Pode ficar tranquila.

Mas por dentro, nada estava tranquilo. E embora não fosse noite ainda, algo em mim já ansiava pela escuridão — como se, lá fora, algo estivesse esperando para acontecer.

O motor da Kawasaki ronronava como um felino inquieto entre as colinas verdes que cercavam a vila. Theo seguia à frente, guiando-me por estradas pouco iluminadas, com aquele jeito despreocupado de quem já havia decorado cada curva da região. Eu o seguia em silêncio — não por falta de assunto, mas por não saber ao certo o que queria sentir naquela noite.

A tal festa acontecia em um vinhedo ao norte, escondido entre árvores baixas e cercado por fileiras disciplinadas de uvas que dançavam ao vento. Nada era extravagante. Não havia glamour, nem tapeçarias douradas, apenas simplicidade e cheiro de terra recém-cortada.

Estacionei entre os carros antigos, prendendo os capacetes à moto com uma corrente curta — mais por hábito do que por medo.

— Espero que ninguém tente roubá-la — comento, tentando parecer relaxada.

Theo lança um olhar preguiçoso ao redor.

— Já olhou quem frequenta esse lugar? O povo daqui idolatra scooters e bicicletas com cestinha. A sua Kawasaki parece um dinossauro japonês entre galinhas caipiras. Só você mesmo para amar uma criatura dessas.

— E quem vive pedindo para pilotá-la mesmo? — respondo, arqueando a sobrancelha.

Ele ri, vencido.

— Uma vez só, não exagera.

Sigo atrás dele, ouvindo o som abafado da música que flutuava pelo vinhedo. Conforme nos aproximamos, noto barracas iluminadas com pequenas lâmpadas penduradas, vendendo tortas caseiras, bebidas doces, especiarias e pães recém-assados. A música é suave, não do tipo que costumo ouvir, mas... tolerável. Tudo ali parece ter sido tirado de uma memória de infância que nunca vivi.

— Fica aqui. — Theo aponta para um espaço próximo a uma cerca de madeira. — Dá para ver tudo. Vou pegar vinho para gente.

Assinto, mas não gosto da ideia de ficar sozinha. Fingir indiferença nunca foi difícil, mas a verdade é que multidões me fazem sentir ainda mais invisível. Há algo de incômodo na forma como as pessoas se reúnem: todas cheias de vida, rindo fácil, dançando sem medo. E eu… sigo um pouco à parte, com o olhar perdido entre as luzes e os copos.

Então ele aparece.

Alto, postura elegante como quem sabe do próprio valor. Olhos escuros, profundos. Cabelos impecáveis, pele clara. Os traços são europeus, mas o sorriso é tipicamente ensaiado — daqueles que se moldam à plateia.

— Olá, bela dama. — Ele fala como se estivesse num palco.

— Oi. — Tento sorrir, mas algo em mim hesita. Há um jogo se formando, e eu odeio quando tentam me jogar antes de me conhecer.

— Primeira vez que te vejo por aqui.

— Nos mudamos ontem. — Respondo sem dar margem para elogios.

— Pietro. — Ele estende a mão.

— Diana. — Aperto-a, mas me surpreendo quando ele a leva aos lábios. Um gesto antiquado, exagerado — quase cômico.

— Lindo nome. Está gostando da festa?

— Ainda decidindo. Qual o motivo da comemoração?

Ele ri, aproximando-se como se fôssemos cúmplices de algo que ainda não existia.

— Agricultores locais celebram a colheita, como num velho ritual de ego. "Meu gado é mais gordo que o seu", esse tipo de disputa infantil.

— Ah. Competição velada sob um véu de tradição. — Comento, levantando uma sobrancelha.

— Algo assim. Mas eu não ligo. O vinhedo é meu, sim. Mas sei do meu valor. Não preciso provar nada.

Nesse momento, Theo reaparece, interrompendo a cena com um copo de vinho e olhos atentos.

— Quem é você? — ele pergunta direto.

— Pietro. — A resposta vem confiante.

— Theo, irmão dela. — Diz com ênfase, como se colocasse uma cerca invisível entre nós.

Tomo o copo e provo o vinho.

— Interessante. Suave, mas encorpado. Tem personalidade. Admito que é bom.

Pietro parece orgulhoso da minha avaliação.

— Eu te disse. Foi um prazer conhecê-los. — Ele se afasta com o mesmo sorriso ensaiado.

Theo observa até ele desaparecer na multidão antes de falar.

— Não posso me afastar dois minutos que você já está fazendo amizades perigosas?

— Você não disse que eu precisava socializar?

— Sim, mas com quem não tem cara de que quer te devorar com os olhos.

— Para de ser ridículo.

Mas por dentro… por dentro algo se agitou. Não por Pietro. Mas pela sensação de ter sido desejada. Pela lembrança de que meu corpo ainda carrega calor, presença, instinto. Anos afastando pessoas criaram uma muralha dentro de mim, e eu me acostumei a viver no topo dela, observando tudo de longe, sem permitir que ninguém escalasse.

Talvez, só talvez… seja hora de descer um degrau.

— Mudando de assunto... — comecei, desviando o olhar para o céu escuro além da janela do carro. — Você nunca achou estranho nossos pais estarem sempre se mudando? Como se fugissem de algo o tempo todo?

— Já me acostumei. — Theo respondeu com um tom indiferente, os olhos fixos na estrada. — Não costumo questioná-los.

— Mas deveríamos. — murmurei, sentindo a inquietação crescer no peito. — Há algo errado nessa história toda. Eles sempre se esquivam quando tento obter respostas... desviam, mentem com sorrisos ou mudam de assunto como se eu fosse uma criança. — Soltei um suspiro lento. — Isso está me consumindo por dentro.

Theo não respondeu. O silêncio entre nós era espesso, denso como a névoa que se formava nos pensamentos que evitávamos encarar.

— E se ele nos encontrar de novo? — perguntei, virando o rosto em sua direção. — O garoto... aquele que sempre aparece como um vulto nas nossas lembranças. Se ele vier atrás de nós, eu não vou fugir, Theo. Não dessa vez.

— O quê? — ele virou brevemente o rosto, surpreso. — Do que está falando?

— Eu vou falar com ele. Preciso entender por que ele nos persegue. O que ele quer de mim. E, principalmente... por que nós estamos fugindo dele.

— Isso é insano, Diana. Você perdeu o juízo? — Seu tom endureceu, como se quisesse cortar minha ideia pela raiz. — Não tem como saber do que ele é capaz. Ele pode estar apenas esperando o momento certo pra...

— Se fosse para me machucar, ele já teria feito isso da última vez que nos cruzamos. — interrompi, olhando-o firme.

— Ele não fez porque eu estava lá, lembra? Eu estava entre vocês! — Theo respondeu, agora visivelmente tenso. Seus dedos apertavam o guidão com força.

— Você não vai me fazer mudar de ideia. — respirei fundo, sentindo aquela certeza latejar por dentro, como um chamado antigo. — Eu sinto que o conheço. Não sei como, nem de onde, mas... ele me é familiar. Há algo dentro de mim que grita quando ele está por perto.

Theo me olhou, os olhos refletindo um misto de medo e frustração.

— Já percebi que não vai recuar, não é?

— Não. — confirmei, voltando o olhar para a estrada escura. — Com ou sem a sua ajuda, eu vou descobrir a verdade.

Acordei como quem emerge de um abismo. A luz da manhã atravessava as cortinas com a delicadeza cortante de navalhas douradas, e a dor em minha cabeça pulsava como um tambor distante, insistente, tecendo uma melodia de alerta que não cessava.

Levantei-me com esforço e caminhei até o banheiro. A água fria tocou meu rosto como se quisesse me acordar para algo mais profundo que o próprio dia. Quando me ergui, o reflexo no espelho não me pareceu estranho — mas também não me pareceu meu. Havia algo nos olhos. Um cansaço que não era físico. Uma urgência que não sabia nomear.

Foi então que o vi. O copo d’água e o comprimido — o maldito comprimido que deveria ter tomado na noite anterior.

— Merda... — murmurei, quase sem som.

Estendi a mão com a mesma naturalidade de sempre. Mas antes que meus dedos o levassem à boca, uma voz cortou o ar como uma lâmina invisível.

“Não tome o remédio.”

Firme. Baixa. Masculina.

Meu coração vacilou. O comprimido tremeu entre meus dedos. Aquela voz… era absurda e, ao mesmo tempo, íntima. Não sei explicar. Era como ouvir uma lembrança antiga ecoando de um sonho que nunca tive.

Olhei para o espelho, encarando a mim mesma. Ou algo além disso. Havia uma presença ali. Um peso nas entrelinhas do meu reflexo.

“Não tome.” Repetiu, não com palavras — mas com certeza.

Obedeci.

Joguei o comprimido no vaso sanitário e dei descarga como quem se desfaz de um segredo. Talvez estivesse cometendo um erro. Mas... e se não fosse? E se esse pequeno gesto fosse a chave para algo maior?

Tomei um analgésico qualquer e desci as escadas para o café da manhã. O sol invadia o ambiente, misturando-se ao aroma de pão aquecido e café recém-passado. Tudo parecia calmo. Calmo demais.

Meu pai estava à mesa, com o olhar perdido na borda da xícara. Seu cabelo castanho-claro estava um pouco bagunçado, como sempre. A barba, curta e aparada com cuidado, dava-lhe um ar de homem prático. Mas o que mais chamava atenção eram os olhos — olhos cor de mel, profundos, sempre marcados por um cansaço que não descansava nunca. Ele sorriu ao me ver, um daqueles sorrisos fáceis que parecem dizer mais do que deveriam.

— Bom dia, princesa. — disse, beijando minha testa como se eu ainda tivesse oito anos.

— Bom dia, pai. — respondi, sentando-me à mesa.

— Se divertiu na noite passada?

— Nem tanto. As pessoas daqui não são tão estranhas quanto nós... — tentei sorrir, mas soou falso até para mim.

Ele riu, aquele riso leve que ele solta quando quer dissipar uma tensão sem nome.

— E seu irmão? Ainda dorme?

— Com a ressaca que estava… provavelmente.

— Não, já estou acordado. — Theo apareceu, sentando-se ao meu lado com cara de sobrevivente.

— Estou cansada de pedir que não beba quando está com sua irmã, Theo. — disse minha mãe, surgindo da cozinha com a autoridade de sempre.

— Foram só dois ou três copos, mãe… — ele resmungou. — Nada grave.

— Mãe, estamos bem. — interrompi. — Foi apenas uma festa idiota de fazendeiros. Nada que valha tanta preocupação.

Ela nos olhou com aquele ar de quem vê além. De quem sabe de coisas que não diz.

— Vamos apenas tomar o café em paz, sim? Depois conversamos, Theo. — disse meu pai, tentando acalmar a situação.

— Tudo bem, tudo bem… mais tarde ouço o sermão completo.

Enquanto os dois discutiam sobre regras e limites, algo dentro de mim se agigantava.

Um pensamento sussurrava entre cada gole de café: “Eles estão escondendo algo. E eu vou descobrir.”

Estou decidida. Não vou mais tomar os comprimidos.

A voz… ela não me amedronta. Me chama. Me desperta.

As dores de cabeça estão se tornando mais frequentes, mas talvez sejam apenas ecos daquilo que fui ensinada a esquecer.

Sinto-me estranha. Como uma peça fora do tabuleiro.

Nada aqui parece verdade. Nem essa casa, nem esse corpo que carrego, nem as ordens que recebo todos os dias como se eu fosse frágil. Como se eu não suportasse saber quem realmente sou.

Quero a verdade. Quero tudo.

E se isso me destruir, ao menos morrerei como quem sou — e não como quem me ensinaram a ser.

...Theodor Damon ...

O corredor estava mergulhado em silêncio, mas dentro de mim, tudo era ruído.

Minhas mãos ardiam — não por dor física, mas pela culpa que eu não conseguia mais ocultar. Cada passo que eu dava naquela casa era como pisar em vidro: uma tentativa frágil de proteger Diana enquanto cortava a mim mesmo em silêncio.

Minha mãe estava diante de mim, com aquele olhar que podia desmoronar muralhas. Mas eu não era mais uma delas. Não para ela.

— Você sabe o que está em jogo aqui, Theo? — A voz dela não tremia. Era feita de gelo e aço. Cada palavra soava como uma sentença.

Engoli em seco. Quantas vezes ouvi aquela mesma pergunta? Quantas vezes deixei que ela me calasse?

— Eu sei. — Minha voz saiu mais baixa do que pretendia, mas havia firmeza nela. — Mas estou exausto de repetir mentiras, de esconder a verdade da única pessoa que mais confia em mim.

Ela se manteve inabalável, como se cada argumento meu fosse apenas mais um sopro contra uma muralha de granito.

— Isso não é proteção, mãe. É cárcere. — Apertei os olhos, sentindo a garganta queimar. — É medo disfarçado de amor. E eu cansei de participar desse teatro.

O silêncio dela me irritava. Sempre usava o silêncio como escudo — e era aí que eu mais me perdia. Porque parte de mim ainda queria acreditar que ela fazia aquilo por amor. Que havia uma lógica. Mas a lógica nunca consolou quem carrega um coração em pedaços.

— Sua função, Theo, é mantê-la segura. Impedir que ela descubra. — Ela não levantou a voz. Mas sua frieza me perfurou como uma adaga.

Revirei os olhos, lutando contra o nó que se formava na garganta. Não era só raiva — era luto. Era amor deformado pela repetição da omissão.

— Ela tem o direito de saber quem é. — Minha voz falhou, mas não cedi. — Tem o direito de saber por quem fomos perseguidos, por que vivemos fugindo… e quem é aquele homem. Aquele que vocês sempre evitam nomear.

Ela desviou o olhar por um breve instante. Pequeno, mas suficiente para eu perceber que, por trás da armadura, ainda havia rachaduras.

— Se ela descobrir… — sussurrou — ela vai procurá-lo. E, se o encontrar, tudo o que protegemos… tudo o que mantivemos em pé com tanto esforço… desmorona.

Dei um passo à frente, sentindo o chão tremer sob minhas certezas.

— Talvez precise desmoronar. Talvez seja isso o que ela precisa para florescer. — Pausa. Encarei minha mãe com olhos cansados. — Vocês a tratam como se fosse feita de porcelana. Mas ela é tempestade. E nenhuma tempestade foi feita para ser contida.

Ela cruzou os braços, erguendo o queixo como se invocasse uma lembrança esquecida.

— Isso não é o que Sophie queria.

Sophie.

O nome caiu como uma pedra no meio do silêncio.

Senti os ombros curvarem sob o peso de memórias que eu ainda não sabia se eram reais ou moldadas pelas histórias sussurradas à noite.

Encostei-me à parede, tentando conter o turbilhão. Meus pensamentos eram gritos abafados. Sophie era a ausência que grita mesmo em meio à multidão. E, por mais que tentassem recriar sua sombra em Diana, eu sabia que eram almas distintas, vontades únicas. E a verdade? Era que Diana jamais seria Sophie — e tampouco deveria ser.

— Sophie está morta, mãe. — murmurei, olhando para o chão como se ali estivesse enterrada a última centelha da nossa infância. — E tudo que restou dela é essa ilusão que vocês cultivam como desculpa para controlar a Diana.

— Não diga isso, ela não está morta.

Ergui os olhos, firme.

— Ela vai descobrir. E quando isso acontecer, quero que se lembre de que eu tentei impedi-los. Eu tentei fazê-los ouvi-la antes que fosse tarde.

Minha mãe não respondeu. Mas não precisava.

Porque, naquele instante, eu soube: a muralha invisível que nos separava já estava ruindo. E quando Diana atravessasse, não haveria retorno.

Livro 1- Lua Nova : A Dor da Verdade

🎵 Trilha Sonora: Hurricane - Fleurie"

...Diana Damon...

Querido diário,

Sonhei novamente.

Desta vez, não havia o peso de pesadelos — mas também não havia paz. Era uma casa que nunca vi desperta, mas que, ao adormecer, sinto como lar.

Eu era uma criança no balanço, rindo ao vento, enquanto a voz de uma mulher — suave como o sopro da primavera — me embalava com frases doces, quase canções.

"Assim você vai acabar voando, meu amor."

Essas palavras ecoaram com tamanha nitidez que, ao despertar, por um instante, jurei que ainda estavam no ar do meu quarto. O problema é que não vi seu rosto. Nunca vejo. Mas a sensação de pertencimento, de amor… ela me envolve com uma melancolia que não sei explicar.

Então, ali, no limite entre o sonho e o abismo da consciência, ele apareceu. O mesmo garoto. De novo. Parado próximo à casa, como um fantasma à espreita — familiar, porém inalcançável.

Não sei se minha mente está me pregando peças ou se estou finalmente me lembrando do que tentam esconder de mim.

Estou cansada de viver na penumbra das verdades abafadas.

Hoje… hoje não vou esperar mais.

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Minha mãe entrou no quarto pouco depois, trazendo na voz aquele mesmo tom doce que ela usa quando quer me dissuadir de alguma coisa. Quase sempre funciona. Hoje não.

— Estou preocupada com você, Diana.

Ela se sentou ao meu lado. Por um instante, deixei que a ilusão do cuidado me tocasse. Mas bastou uma pergunta minha, e lá veio o velho suspiro — o prelúdio das evasivas.

— Vamos te contar, querida… Mas não agora.

Claro. Sempre “não agora”.

Engoli o incômodo e escondi meu diário. Algumas verdades não são segredos — são cicatrizes. E mesmo que ela dissesse que era por amor, havia algo egoísta na forma como meus pais nos protegiam.

Pedi desculpas com o olhar, mas já havia tomado minha decisão.

Se eles não me dariam respostas, eu mesma as encontraria.

... ⚜️...

O motor da moto ronronava como se também guardasse segredos.

Atravessei as estradas sinuosas rumo ao sul, sentindo o vento cortar minha pele e levar embora, por alguns minutos, o peso das dúvidas.

A Riccia era sempre silenciosa. A torre decadente na colina observava o mundo em ruínas como um guardião cansado — e era exatamente o que eu precisava.

Subi, sentei entre as pedras cobertas de musgo e respirei fundo. Lá embaixo, o mundo continuava a girar, mas ali em cima, eu estava suspensa, entre o ontem e o que ainda não entendo.

Então, ouvi.

— Desta vez foi mais fácil te encontrar.

Levantei-me num impulso, e quando o vi, tudo em mim silenciou.

Ele caminhava entre os escombros como um felino faminto: elegante, controlado… e perigosamente calmo.

A pele era de um branco quase translúcido, como seda ao luar. Os cabelos castanhos, cortados com precisão, emolduravam um rosto de traços finos, aristocráticos, como se esculpido por mãos antigas.

Mas o que me fez hesitar foram os olhos. De um castanho intenso rubro.

Rubro.

Não em tom de sangue violento, mas de rubi — como brasas contidas, ardendo em segredo.

— Não pensei que me encontraria tão rápido assim — murmurei, mais para mim mesma do que para ele.

— Não fuja desta vez, eu não vou te machucar, Ivy.

Ivy.

A palavra bateu em mim como uma lembrança que não era minha.

— Quem? Meu nome é Diana.

Ele arqueou uma sobrancelha, sem surpresa.

— Certo, Diana. Entendi. Mas não fuja.

— Não era minha intenção fugir desta vez.

— O que te fez mudar de ideia?

— Estou cansada. Cansada de perguntas sem respostas. Eu quero entender.

Um leve sorriso surgiu em seus lábios. Não era zombeteiro. Era o tipo de sorriso de quem carrega um segredo há muito tempo e finalmente encontra alguém digno de ouvi-lo.

— Isso… facilita muito pra mim.

A brisa da colina soprava, mas dentro de mim era tempestade.

Eu não sabia o que ele queria, mas sei que, naquele instante, nada mais me parecia tão necessário quanto ouvir o que ele tinha a dizer.

Mesmo que isso me destruísse.

O ar ao meu redor parecia mais denso, como se o próprio tempo me observasse com cautela.

— Então pode começar, garoto. Só não entendo… como você parece o mesmo depois de todos esses anos? — murmurei, tentando não vacilar diante daquela presença enigmática. A desconfiança ardia sob minha pele.

Ele soltou um suspiro profundo, o tipo de suspiro que vem de alguém que carrega séculos nos ombros.

— Isso é simples, Diana. Mas precisamos ir devagar. — Sua voz soava como algo que eu já conhecia, mesmo que a memória não me entregasse a origem. — E foi bom você ter me ouvido… não ter tomado o remédio.

Engoli em seco. Uma lembrança latejava na minha nuca, mas era um vulto fugidio. — Eu não tinha certeza se a voz na minha cabeça era real. Mas arrisquei. — Falei mais para mim mesma do que para ele. O coração batia num compasso desordenado, como se reconhecesse antes de mim.

— Esse foi o primeiro passo para me encontrar. — Ele sorriu, como quem assiste um enigma prestes a se abrir.

— Acho que mereço saber seu nome. — Minha voz falhou na borda da pergunta.

— Alecsander Barton, mas por favor, me chame de Alec. — Ele falou, como se estivesse libertando um eco antigo. — Eu sei que, de alguma forma, você se lembra de mim.

Uma sensação me percorreu por inteiro. Era como se meu espírito tentasse tocar algo que minha mente ainda não alcançava.

— Eu não me lembro… — sussurrei. — Mas meu corpo inteiro diz que conheço você. Como se estivéssemos ligados por algo que ninguém mais vê.

— Porque estamos. — Alec deu um passo à frente. — E eu posso te ajudar a lembrar. Mas precisa confiar em mim, Diana.

— Como? — dei um passo instintivo para trás, mesmo sentindo o magnetismo inexplicável entre nós.

— Eu vou me aproximar.

E foi nesse exato instante que tudo ao redor pareceu ser engolido por uma rajada de vento invisível.

Theo surgiu do nada, como se o próprio tempo o tivesse trazido. Seu rosto carregava um desespero familiar, mas dessa vez com uma fúria contida.

— Diana, fica longe desse cara! — Ele se pôs entre nós como um escudo humano. — Não deixa que ele te toque.

Fiquei paralisada. Como ele havia chegado tão rápido? E por que parecia… tão aterrorizado?

— Você sabe que eu não vou machucá-la, Theodor. — Alec murmurou, com uma calma quase perigosa.

Theo cerrou os punhos, seu corpo inteiro tremia. — Você não entende, Diana. Você não pode confiar nele. Ele não é quem diz ser.

— Theo, não me coloca nessa posição. Eu preciso saber a verdade. — Minha voz soou firme, mas por dentro… eu estava desmoronando. Algo em Alec me chamava. E algo em Theo tentava me prender.

— Ela precisa saber — Alec insistiu. — Quanto mais tempo ela perde, mais os Arcanjos se aproximam.

— Arcanjos? — Minha voz saiu num sussurro. Um arrepio me percorreu as costas.

Theo virou-se para mim num movimento súbito. — Não escuta ele, Diana. Apenas… confia em mim.

Mas como confiar em quem só oferece silêncio?

O olhar de Alec se tornou feroz por um segundo. Ele se inclinou levemente, como quem prestes a se lançar. Theo percebeu. E então… tudo mudou.

Como num piscar de olhos, o mundo se desfez.

Quando voltei a respirar, estávamos em meu quarto. Meu coração batia em um ritmo insano. A janela aberta deixava o vento brincar com as cortinas, como se zombasse da minha confusão.

— O quê...? Como você fez isso? — Me afastei dele. — O que você está escondendo de mim, Theo?

Ele não respondeu de imediato. Olhou o corredor. Trancou a porta. O silêncio gritou entre nós.

— Eles ainda não voltaram — disse ele, baixo, como se cada palavra queimasse sua língua. — Nossos pais. Estão te procurando.

— Procurando? Por quê? — Minha voz estava embargada. — Quem sou eu, Theo? Quem é Alec? Por que eu me sinto dividida entre algo que não entendo?

Ele abaixou o olhar, como quem carrega um fardo que nunca quis segurar.

E naquele momento, entendi. As respostas sempre estiveram ali, entre os silêncios. E a verdade… a verdade estava prestes a sangrar.

O silêncio entre nós era mais ensurdecedor do que qualquer grito.

Eu o olhava.

E já não via meu irmão — via um cúmplice de um teatro que eu não aceitava mais interpretar.

— Você vai me dizer o que sabe. Agora. — minha voz cortou o ar, firme, crua, impaciente. Segurei seu braço, não com raiva, mas com urgência. — Desembucha.

Theo recuou um passo, os olhos alarmados como se tivesse ouvido uma ameaça onde só havia desespero.

— Eu vou te contar, Diana... mas agora não. Eles vão voltar.

Eles. Sempre eles. As sombras atrás da cortina, os donos da verdade que nunca me pertenceu.

— Já chega! — gritei.

A palavra explodiu de dentro, antes que eu pudesse contê-la. Theo arregalou os olhos. Eu nunca havia gritado com ele — e isso dizia tudo.

Naquele instante, ele percebeu: eu tinha deixado de ser a menina que esperava respostas; eu era a mulher que exigia a verdade.

— Você vai me levar de volta ou eu mesma volto a pé.

— Certo... mas se acalme.

Não havia mais calma em mim. Só cansaço. Um cansaço velho, que eu carregava sem saber, como se fosse herança genética.

— Estou exausta de mentiras. De cada gesto calculado. De cada silêncio cúmplice. Vocês me criaram num palco. E até agora, acho que só o Alec teve coragem de ser verdadeiro comigo.

Theo empalideceu.

— Você confia mais nele do que em mim, Diana?

Houve um silêncio. E ele doeu.

— Nem sei se este é realmente meu nome.

Ele baixou os olhos. Aquela verdade o atingiu como um soco.

— Certo...

A voz do meu pai ecoou lá embaixo, cortando o momento.

— Theo, você está aí em cima? Encontrou Diana?

— Me leva de volta, Theo. Por favor.

Ele me olhou como se buscasse forças para trair um pacto. Então assentiu, segurando minha mão.

Fechei os olhos e, como antes, o mundo girou.

Quando abri, estávamos diante de um lago. O reflexo da água tremia como se soubesse demais.

— Que lugar é esse? — perguntei.

Havia algo naquele ar que me fazia arder por dentro. Como se a memória estivesse à espreita, prestes a despertar.

— Vínhamos muito aqui quando éramos pequenos. Você amava esse lugar. — disse ele, quase em sussurro. — Brincávamos ali, com um barco de controle remoto. O barco era meu... mas você o sequestrava.

Ele riu com a lembrança, mas eu não consegui acompanhá-lo.

Porque a sensação que me invadia não era de alegria — era de vazio.

— E onde fica a casa?

— Vou te levar até lá.

— Espero que seja caminhando. — forcei um sorriso. Ele retribuiu com um riso frágil.

Enquanto andávamos sob as árvores, o som das folhas secas sob nossos pés era quase terapêutico. Mas o silêncio entre nós era denso, como névoa.

— Sabe... eu nunca quis mentir pra você. Mas meus pais sempre disseram que era para te proteger.

— Seus pais, Theo? Você sempre diz “meus pais”, e não “nossos”. — As palavras saíram afiadas, antes que eu pudesse filtrá-las.

Ele parou de andar. Ficou imóvel por segundos. O vento soprou forte, como se quisesse apagar a cena.

Theo suspirou — e o som desse suspiro pareceu mais velho que ele.

— Isso... isso não cabe a mim contar. — sua voz estava falha. — Por favor, não me obrigue.

Olhei para ele. O irmão que cresceu ao meu lado. O único rosto familiar na multidão de máscaras que me rodeia.

E pela primeira vez... eu me perguntei se ele também não era uma.

Por mais que eu deseje arrancar a verdade à força, algo em mim diz que não devo. Forçá-lo seria como quebrar uma vidraça já trincada — e mesmo que eu queira ver o que há por trás, o que restaria de nós?

— Eu não vou te pressionar. Só... quanto mais descubro, mais me afundo. Por que não me lembro de nada?

— Porque não é comigo que você deve conversar sobre isso. Mas se quer saber o que há nos comprimidos... — Theo hesita. Ele sabe que está cruzando uma linha. — Verbena e orquídea negra.

Esses nomes ecoam na minha mente como feitiços antigos. Não me dizem nada, e ao mesmo tempo... sinto que deveriam.

— Não faço ideia para que servem essas ervas.

— A verbena te afastava do Alec. A orquídea... para que não se lembrasse. Se eu te explicasse tudo agora, só te confundiria ainda mais.

Confusão. É tudo o que tenho sentido desde que acordei nesse mundo de meias-verdades. Mas algo muda em mim assim que saímos da floresta. Meu coração dispara, quase como um aviso sagrado.

Ali está ela.

A casa do meu sonho.

A realidade e o sonho se sobrepõem como véus finos. O tempo a castigou, mas eu a reconheço como se tivesse sido moldada na minha alma.

— Ela existe... Então era real... — sussurro, caminhando rápido até a árvore imensa no jardim. — O balanço ainda está aqui.

Meus dedos tocam a corda desgastada e sinto uma vertigem emocional. Um riso escapa, entrecortado pelas lágrimas. É como se eu me visse ali, anos atrás, e tudo tivesse sido arrancado sem aviso.

— Isso é surreal...

— Diana... você não está pensando em se sentar aí, está? Esse balanço... vai—

Sento. Balanço uma, duas vezes... E então, a corda se parte. Caio no chão, a risada me tomando inteira. Pela primeira vez em dias, sinto algo parecido com liberdade. Theo corre até mim, preocupado, mas estendo a mão para ele com um sorriso verdadeiro.

— Estou bem. Melhor do que estive há muito tempo. Podemos entrar?

Ele hesita. O olhar se prende à porta da casa como se fosse um portão para um passado que deveria permanecer enterrado.

— Não sei se é uma boa ideia...

— Vai me dizer que tem medo de ratos? De fantasmas? Eu preciso entrar.

Ele cede. Pega uma pedra entre os arbustos, retira uma chave escondida nela e destranca a porta.

— Só... tome cuidado.

O cheiro de abandono me invade assim que cruzamos o limiar. Poeira, tempo e silêncio. Tudo parece suspenso, como se o lugar tivesse prendido o ar para me esperar.

Sobre a lareira, retratos envoltos em fuligem. Um deles me chama. Meus dedos se movem sozinhos, limpando o vidro com a manga da blusa.

Sou eu. Menor, mais frágil, mas é inegável. Uma mulher repousa a mão em meu ombro com ternura. Os traços dela refletem os meus — cabelos, tom de pele, até o formato do rosto. Mas seus olhos... são de um azul profundo, quase violeta. Os meus, mais esverdeados, não carregam aquela tempestade.

— Quem é ela, Theo? — minha voz quase falha. Não é uma pergunta qualquer. É um pedido desesperado.

Ele fecha os olhos por um segundo, os lábios pressionados num silêncio cruel.

— Me responde, por favor. Na floresta você falou "meus pais". Theo... eles não são meus pais, são?

O silêncio dele confirma o que eu temia.

Recuo.

Algo em mim desaba com fúria contida. Não é só pela mentira. É pela confiança traída. Pela cumplicidade falsa. Pela ferida aberta que sangra sem nome.

— Você também? Como pôde...? Eu confiei em você.

— Diana... vamos voltar, por favor. Isso tudo vai te machucar.

— Eu estou machucada, Theo! E essa... — levanto o porta-retrato. — Essa era minha casa. Não vou a lugar nenhum. Você sim. Vai embora!

Corro até a porta, mas o mundo gira. De repente, tudo muda de lugar, e estamos de volta na sala da outra casa. Do nada. Theo usou os poderes. Me sinto traída de novo.

Mel e Rael estão ali. Os rostos misturam alívio e culpa. Mel nota o quadro em minhas mãos e seus olhos se arregalam.

— Theo... o que você fez?

Não espero a resposta. Subo as escadas com o coração pulsando como um tambor de guerra. Tranco a porta e me encosto contra ela. O quadro ainda em minhas mãos. A imagem ainda queimando minha retina.

Espero que Theo não atravesse a porta. Se me ama... se ainda restar algo verdadeiro entre nós... ele vai respeitar meu silêncio.

Sento no chão, abraçada à moldura, e sussurro para ninguém:

— Quem é você? Por que me tiraram de você?

A resposta virá. Nem que eu tenha que arrancá-la de cada parede dessa casa.

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