Terminei de ajustar a jaqueta sobre os ombros e encarei meu reflexo no espelho. O cabelo liso caía suavemente sobre a clavícula, e meus olhos — realçados pelo traço escuro do lápis — pareciam ainda mais intensos sob a luz do fim de tarde. Azul como um céu prestes a desabar. Respirei fundo, tentando silenciar a inquietação que dançava no peito. Sorri de leve, um daqueles sorrisos que disfarçam mais do que revelam, e peguei o capacete. Eu nunca conseguia sair de moto sem a jaqueta — era quase um escudo, uma armadura silenciosa.
Desci as escadas e, como previsto, minha mãe já me observava com aquele olhar que mistura amor e desconfiança. O tipo de olhar que pesa sem precisar de palavras. Ela nunca gostou muito quando eu saía sem avisar. E claro, Theo não disse uma palavra a eles — típico do meu irmão.
— Vai sair, Diana? — a voz dela veio carregada de algo entre o cuidado e o medo. Ela desviou o olhar para o meu pai, que apenas abaixou o jornal com uma expressão silenciosa. Aquilo sempre me incomodava. Essa ânsia em me manter por perto, como se a qualquer momento eu fosse evaporar.
— Theo vai me levar a uma festa local, mãe — respondi, tentando manter o tom sereno. — Não é nada demais.
Antes que ela pudesse rebater, Theo entrou na sala com seu jeito despreocupado de sempre, beijando o topo da cabeça da nossa mãe.
— É aqui perto, senhora superprotetora — disse, com aquele sorriso debochado. — Pode ficar tranquila, eu cuido dela.
Revirei os olhos, mas não consegui conter o sorriso. Theo tinha o dom de aliviar qualquer tensão — e de provocar outras tantas.
— Já conversamos sobre isso, Theo — minha mãe disse, o semblante firme. — Acabamos de chegar, não sabemos como as coisas funcionam por aqui.
— Justamente por isso, vamos explorar — rebateu ele, puxando minha mão como se quisesse me salvar de um cárcere invisível. — Vamos antes que ela mude de ideia e tranque a porta.
— Não vamos demorar, mãe. Eu prometo — falei, sentindo a mão dele apertar a minha com cumplicidade.
— Só tome cuidado, Diana — ela insistiu, agora com os olhos diretamente nos meus. — E se vir aquele garoto... você já sabe o que fazer.
A menção não dita ecoou mais alto do que qualquer nome. Assenti com a cabeça, mesmo sem saber ao certo o que faria se o visse.
— Está bem, mãe.
— Você lembrou de tomar seu remédio? — veio a pergunta final, como um último fio de controle.
— Tomei, mãe — menti com doçura. — Pode ficar tranquila.
Mas por dentro, nada estava tranquilo. E embora não fosse noite ainda, algo em mim já ansiava pela escuridão — como se, lá fora, algo estivesse esperando para acontecer.
O motor da Kawasaki ronronava como um felino inquieto entre as colinas verdes que cercavam a vila. Theo seguia à frente, guiando-me por estradas pouco iluminadas, com aquele jeito despreocupado de quem já havia decorado cada curva da região. Eu o seguia em silêncio — não por falta de assunto, mas por não saber ao certo o que queria sentir naquela noite.
A tal festa acontecia em um vinhedo ao norte, escondido entre árvores baixas e cercado por fileiras disciplinadas de uvas que dançavam ao vento. Nada era extravagante. Não havia glamour, nem tapeçarias douradas, apenas simplicidade e cheiro de terra recém-cortada.
Estacionei entre os carros antigos, prendendo os capacetes à moto com uma corrente curta — mais por hábito do que por medo.
— Espero que ninguém tente roubá-la — comento, tentando parecer relaxada.
Theo lança um olhar preguiçoso ao redor.
— Já olhou quem frequenta esse lugar? O povo daqui idolatra scooters e bicicletas com cestinha. A sua Kawasaki parece um dinossauro japonês entre galinhas caipiras. Só você mesmo para amar uma criatura dessas.
— E quem vive pedindo para pilotá-la mesmo? — respondo, arqueando a sobrancelha.
Ele ri, vencido.
— Uma vez só, não exagera.
Sigo atrás dele, ouvindo o som abafado da música que flutuava pelo vinhedo. Conforme nos aproximamos, noto barracas iluminadas com pequenas lâmpadas penduradas, vendendo tortas caseiras, bebidas doces, especiarias e pães recém-assados. A música é suave, não do tipo que costumo ouvir, mas... tolerável. Tudo ali parece ter sido tirado de uma memória de infância que nunca vivi.
— Fica aqui. — Theo aponta para um espaço próximo a uma cerca de madeira. — Dá para ver tudo. Vou pegar vinho para gente.
Assinto, mas não gosto da ideia de ficar sozinha. Fingir indiferença nunca foi difícil, mas a verdade é que multidões me fazem sentir ainda mais invisível. Há algo de incômodo na forma como as pessoas se reúnem: todas cheias de vida, rindo fácil, dançando sem medo. E eu… sigo um pouco à parte, com o olhar perdido entre as luzes e os copos.
Então ele aparece.
Alto, postura elegante como quem sabe do próprio valor. Olhos escuros, profundos. Cabelos impecáveis, pele clara. Os traços são europeus, mas o sorriso é tipicamente ensaiado — daqueles que se moldam à plateia.
— Olá, bela dama. — Ele fala como se estivesse num palco.
— Oi. — Tento sorrir, mas algo em mim hesita. Há um jogo se formando, e eu odeio quando tentam me jogar antes de me conhecer.
— Primeira vez que te vejo por aqui.
— Nos mudamos ontem. — Respondo sem dar margem para elogios.
— Pietro. — Ele estende a mão.
— Diana. — Aperto-a, mas me surpreendo quando ele a leva aos lábios. Um gesto antiquado, exagerado — quase cômico.
— Lindo nome. Está gostando da festa?
— Ainda decidindo. Qual o motivo da comemoração?
Ele ri, aproximando-se como se fôssemos cúmplices de algo que ainda não existia.
— Agricultores locais celebram a colheita, como num velho ritual de ego. "Meu gado é mais gordo que o seu", esse tipo de disputa infantil.
— Ah. Competição velada sob um véu de tradição. — Comento, levantando uma sobrancelha.
— Algo assim. Mas eu não ligo. O vinhedo é meu, sim. Mas sei do meu valor. Não preciso provar nada.
Nesse momento, Theo reaparece, interrompendo a cena com um copo de vinho e olhos atentos.
— Quem é você? — ele pergunta direto.
— Pietro. — A resposta vem confiante.
— Theo, irmão dela. — Diz com ênfase, como se colocasse uma cerca invisível entre nós.
Tomo o copo e provo o vinho.
— Interessante. Suave, mas encorpado. Tem personalidade. Admito que é bom.
Pietro parece orgulhoso da minha avaliação.
— Eu te disse. Foi um prazer conhecê-los. — Ele se afasta com o mesmo sorriso ensaiado.
Theo observa até ele desaparecer na multidão antes de falar.
— Não posso me afastar dois minutos que você já está fazendo amizades perigosas?
— Você não disse que eu precisava socializar?
— Sim, mas com quem não tem cara de que quer te devorar com os olhos.
— Para de ser ridículo.
Mas por dentro… por dentro algo se agitou. Não por Pietro. Mas pela sensação de ter sido desejada. Pela lembrança de que meu corpo ainda carrega calor, presença, instinto. Anos afastando pessoas criaram uma muralha dentro de mim, e eu me acostumei a viver no topo dela, observando tudo de longe, sem permitir que ninguém escalasse.
Talvez, só talvez… seja hora de descer um degrau.
— Mudando de assunto... — comecei, desviando o olhar para o céu escuro além da janela do carro. — Você nunca achou estranho nossos pais estarem sempre se mudando? Como se fugissem de algo o tempo todo?
— Já me acostumei. — Theo respondeu com um tom indiferente, os olhos fixos na estrada. — Não costumo questioná-los.
— Mas deveríamos. — murmurei, sentindo a inquietação crescer no peito. — Há algo errado nessa história toda. Eles sempre se esquivam quando tento obter respostas... desviam, mentem com sorrisos ou mudam de assunto como se eu fosse uma criança. — Soltei um suspiro lento. — Isso está me consumindo por dentro.
Theo não respondeu. O silêncio entre nós era espesso, denso como a névoa que se formava nos pensamentos que evitávamos encarar.
— E se ele nos encontrar de novo? — perguntei, virando o rosto em sua direção. — O garoto... aquele que sempre aparece como um vulto nas nossas lembranças. Se ele vier atrás de nós, eu não vou fugir, Theo. Não dessa vez.
— O quê? — ele virou brevemente o rosto, surpreso. — Do que está falando?
— Eu vou falar com ele. Preciso entender por que ele nos persegue. O que ele quer de mim. E, principalmente... por que nós estamos fugindo dele.
— Isso é insano, Diana. Você perdeu o juízo? — Seu tom endureceu, como se quisesse cortar minha ideia pela raiz. — Não tem como saber do que ele é capaz. Ele pode estar apenas esperando o momento certo pra...
— Se fosse para me machucar, ele já teria feito isso da última vez que nos cruzamos. — interrompi, olhando-o firme.
— Ele não fez porque eu estava lá, lembra? Eu estava entre vocês! — Theo respondeu, agora visivelmente tenso. Seus dedos apertavam o guidão com força.
— Você não vai me fazer mudar de ideia. — respirei fundo, sentindo aquela certeza latejar por dentro, como um chamado antigo. — Eu sinto que o conheço. Não sei como, nem de onde, mas... ele me é familiar. Há algo dentro de mim que grita quando ele está por perto.
Theo me olhou, os olhos refletindo um misto de medo e frustração.
— Já percebi que não vai recuar, não é?
— Não. — confirmei, voltando o olhar para a estrada escura. — Com ou sem a sua ajuda, eu vou descobrir a verdade.
Acordei como quem emerge de um abismo. A luz da manhã atravessava as cortinas com a delicadeza cortante de navalhas douradas, e a dor em minha cabeça pulsava como um tambor distante, insistente, tecendo uma melodia de alerta que não cessava.
Levantei-me com esforço e caminhei até o banheiro. A água fria tocou meu rosto como se quisesse me acordar para algo mais profundo que o próprio dia. Quando me ergui, o reflexo no espelho não me pareceu estranho — mas também não me pareceu meu. Havia algo nos olhos. Um cansaço que não era físico. Uma urgência que não sabia nomear.
Foi então que o vi. O copo d’água e o comprimido — o maldito comprimido que deveria ter tomado na noite anterior.
— Merda... — murmurei, quase sem som.
Estendi a mão com a mesma naturalidade de sempre. Mas antes que meus dedos o levassem à boca, uma voz cortou o ar como uma lâmina invisível.
“Não tome o remédio.”
Firme. Baixa. Masculina.
Meu coração vacilou. O comprimido tremeu entre meus dedos. Aquela voz… era absurda e, ao mesmo tempo, íntima. Não sei explicar. Era como ouvir uma lembrança antiga ecoando de um sonho que nunca tive.
Olhei para o espelho, encarando a mim mesma. Ou algo além disso. Havia uma presença ali. Um peso nas entrelinhas do meu reflexo.
“Não tome.” Repetiu, não com palavras — mas com certeza.
Obedeci.
Joguei o comprimido no vaso sanitário e dei descarga como quem se desfaz de um segredo. Talvez estivesse cometendo um erro. Mas... e se não fosse? E se esse pequeno gesto fosse a chave para algo maior?
Tomei um analgésico qualquer e desci as escadas para o café da manhã. O sol invadia o ambiente, misturando-se ao aroma de pão aquecido e café recém-passado. Tudo parecia calmo. Calmo demais.
Meu pai estava à mesa, com o olhar perdido na borda da xícara. Seu cabelo castanho-claro estava um pouco bagunçado, como sempre. A barba, curta e aparada com cuidado, dava-lhe um ar de homem prático. Mas o que mais chamava atenção eram os olhos — olhos cor de mel, profundos, sempre marcados por um cansaço que não descansava nunca. Ele sorriu ao me ver, um daqueles sorrisos fáceis que parecem dizer mais do que deveriam.
— Bom dia, princesa. — disse, beijando minha testa como se eu ainda tivesse oito anos.
— Bom dia, pai. — respondi, sentando-me à mesa.
— Se divertiu na noite passada?
— Nem tanto. As pessoas daqui não são tão estranhas quanto nós... — tentei sorrir, mas soou falso até para mim.
Ele riu, aquele riso leve que ele solta quando quer dissipar uma tensão sem nome.
— E seu irmão? Ainda dorme?
— Com a ressaca que estava… provavelmente.
— Não, já estou acordado. — Theo apareceu, sentando-se ao meu lado com cara de sobrevivente.
— Estou cansada de pedir que não beba quando está com sua irmã, Theo. — disse minha mãe, surgindo da cozinha com a autoridade de sempre.
— Foram só dois ou três copos, mãe… — ele resmungou. — Nada grave.
— Mãe, estamos bem. — interrompi. — Foi apenas uma festa idiota de fazendeiros. Nada que valha tanta preocupação.
Ela nos olhou com aquele ar de quem vê além. De quem sabe de coisas que não diz.
— Vamos apenas tomar o café em paz, sim? Depois conversamos, Theo. — disse meu pai, tentando acalmar a situação.
— Tudo bem, tudo bem… mais tarde ouço o sermão completo.
Enquanto os dois discutiam sobre regras e limites, algo dentro de mim se agigantava.
Um pensamento sussurrava entre cada gole de café: “Eles estão escondendo algo. E eu vou descobrir.”
Estou decidida. Não vou mais tomar os comprimidos.
A voz… ela não me amedronta. Me chama. Me desperta.
As dores de cabeça estão se tornando mais frequentes, mas talvez sejam apenas ecos daquilo que fui ensinada a esquecer.
Sinto-me estranha. Como uma peça fora do tabuleiro.
Nada aqui parece verdade. Nem essa casa, nem esse corpo que carrego, nem as ordens que recebo todos os dias como se eu fosse frágil. Como se eu não suportasse saber quem realmente sou.
Quero a verdade. Quero tudo.
E se isso me destruir, ao menos morrerei como quem sou — e não como quem me ensinaram a ser.
...Theodor Damon ...
O corredor estava mergulhado em silêncio, mas dentro de mim, tudo era ruído.
Minhas mãos ardiam — não por dor física, mas pela culpa que eu não conseguia mais ocultar. Cada passo que eu dava naquela casa era como pisar em vidro: uma tentativa frágil de proteger Diana enquanto cortava a mim mesmo em silêncio.
Minha mãe estava diante de mim, com aquele olhar que podia desmoronar muralhas. Mas eu não era mais uma delas. Não para ela.
— Você sabe o que está em jogo aqui, Theo? — A voz dela não tremia. Era feita de gelo e aço. Cada palavra soava como uma sentença.
Engoli em seco. Quantas vezes ouvi aquela mesma pergunta? Quantas vezes deixei que ela me calasse?
— Eu sei. — Minha voz saiu mais baixa do que pretendia, mas havia firmeza nela. — Mas estou exausto de repetir mentiras, de esconder a verdade da única pessoa que mais confia em mim.
Ela se manteve inabalável, como se cada argumento meu fosse apenas mais um sopro contra uma muralha de granito.
— Isso não é proteção, mãe. É cárcere. — Apertei os olhos, sentindo a garganta queimar. — É medo disfarçado de amor. E eu cansei de participar desse teatro.
O silêncio dela me irritava. Sempre usava o silêncio como escudo — e era aí que eu mais me perdia. Porque parte de mim ainda queria acreditar que ela fazia aquilo por amor. Que havia uma lógica. Mas a lógica nunca consolou quem carrega um coração em pedaços.
— Sua função, Theo, é mantê-la segura. Impedir que ela descubra. — Ela não levantou a voz. Mas sua frieza me perfurou como uma adaga.
Revirei os olhos, lutando contra o nó que se formava na garganta. Não era só raiva — era luto. Era amor deformado pela repetição da omissão.
— Ela tem o direito de saber quem é. — Minha voz falhou, mas não cedi. — Tem o direito de saber por quem fomos perseguidos, por que vivemos fugindo… e quem é aquele homem. Aquele que vocês sempre evitam nomear.
Ela desviou o olhar por um breve instante. Pequeno, mas suficiente para eu perceber que, por trás da armadura, ainda havia rachaduras.
— Se ela descobrir… — sussurrou — ela vai procurá-lo. E, se o encontrar, tudo o que protegemos… tudo o que mantivemos em pé com tanto esforço… desmorona.
Dei um passo à frente, sentindo o chão tremer sob minhas certezas.
— Talvez precise desmoronar. Talvez seja isso o que ela precisa para florescer. — Pausa. Encarei minha mãe com olhos cansados. — Vocês a tratam como se fosse feita de porcelana. Mas ela é tempestade. E nenhuma tempestade foi feita para ser contida.
Ela cruzou os braços, erguendo o queixo como se invocasse uma lembrança esquecida.
— Isso não é o que Sophie queria.
Sophie.
O nome caiu como uma pedra no meio do silêncio.
Senti os ombros curvarem sob o peso de memórias que eu ainda não sabia se eram reais ou moldadas pelas histórias sussurradas à noite.
Encostei-me à parede, tentando conter o turbilhão. Meus pensamentos eram gritos abafados. Sophie era a ausência que grita mesmo em meio à multidão. E, por mais que tentassem recriar sua sombra em Diana, eu sabia que eram almas distintas, vontades únicas. E a verdade? Era que Diana jamais seria Sophie — e tampouco deveria ser.
— Sophie está morta, mãe. — murmurei, olhando para o chão como se ali estivesse enterrada a última centelha da nossa infância. — E tudo que restou dela é essa ilusão que vocês cultivam como desculpa para controlar a Diana.
— Não diga isso, ela não está morta.
Ergui os olhos, firme.
— Ela vai descobrir. E quando isso acontecer, quero que se lembre de que eu tentei impedi-los. Eu tentei fazê-los ouvi-la antes que fosse tarde.
Minha mãe não respondeu. Mas não precisava.
Porque, naquele instante, eu soube: a muralha invisível que nos separava já estava ruindo. E quando Diana atravessasse, não haveria retorno.
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Atualizado até capítulo 108
Comments
Mônica Wachholz
com certeza é uma loba muito poderosa
2024-01-16
0
Silvia Araújo
tá confuso
2022-11-12
2
Lais Brito
Diana é a Evy?
2022-06-13
3