A manhã estava cinza.
O céu parecia cansado, e o ar, pesado demais para uma cidade viva.
Lara estacionou o carro diante da igreja onde acontecia o velório da primeira vítima — o ator que, segundo todos os exames, havia morrido “sem motivo”.
Ela não era de frequentar velórios.
Mas algo naquele caso ainda a incomodava.
Talvez fosse o fato de ter visto o mesmo olhar vazio agora duas vezes.
Ou talvez fosse o medo de encontrar de novo aquele homem — M.
O salão estava cheio.
Rostos tristes, câmeras discretas, jornalistas tentando se esconder atrás de colunas.
No centro, o caixão cercado por flores brancas.
O corpo parecia dormir.
Tão calmo que era quase indecente chamá-lo de morto.
Lara respirou fundo e caminhou entre as pessoas.
Alguns cochicharam ao reconhecê-la.
Outros apenas desviaram o olhar, como se a presença de uma detetive ali fosse um mau presságio.
Ela parou diante do caixão por um instante.
Olhou o rosto do homem.
Sem ferimentos. Sem dor.
Apenas ausência.
— Estranho, não é? — disse uma voz atrás dela.
Lara fechou os olhos por um segundo.
Não precisava virar pra saber.
Ele estava ali.
M, de terno preto impecável, as mãos cruzadas nas costas, o mesmo ar de quem pertencia a outro tempo.
— Você não devia estar aqui — disse ela, baixinho, sem olhar pra ele.
— Eu sempre estou onde o fim está. — respondeu ele, tranquilo. — E hoje, o fim tem flores.
Ela o encarou.
— Está seguindo meus passos?
— Não. — Ele deu um meio sorriso. — Só vim dar meus pêsames. Afinal, foi um erro meu.
Lara respirou fundo.
— Você não sente culpa, sente?
— Sinto. — ele disse, depois de uma pausa. — O que você acha que me mantém aqui há milênios?
Antes que ela pudesse responder, uma mulher de meia-idade se aproximou.
Os olhos vermelhos de tanto chorar, a expressão confusa e curiosa.
— Com licença… — disse a mulher. — Vocês são da polícia?
Lara endireitou a postura.
— Sim, senhora. Eu sou a detetive Lara Mendes.
A mulher assentiu devagar, os olhos marejados.
— E ele?
Lara abriu a boca pra responder, mas M foi mais rápido:
— Secretário dela. — disse com naturalidade. — Cuidamos dos relatórios juntos.
Lara o olhou com raiva silenciosa.
Ele apenas sorriu, disfarçando sob uma postura respeitosa.
A mãe do falecido limpou as lágrimas.
— Eu só quero entender… ele parecia tão bem, sabe? Não estava doente. Estava feliz.
Lara segurou o olhar dela.
— A senhora lembra se ele reclamou de algo estranho nos dias antes da morte?
A mulher pensou por um momento.
— Ele falou que andava sonhando com o mesmo homem. Um homem de terno preto. Disse que, no sonho, o homem ficava parado olhando pra ele. E que toda vez que acordava, sentia frio.
Lara sentiu um arrepio subir pela espinha.
Ela não precisou olhar para saber que M estava observando-a.
E que estava calado de propósito.
— E… — continuou a mulher — uma noite antes de… de acontecer, ele disse que o sonho tinha sido diferente. Que o homem tinha falado com ele.
— Falado o quê? — perguntou Lara, quase num sussurro.
A mulher enxugou as lágrimas.
— “Até logo.” — respondeu. — Foi só isso que ele disse.
Silêncio.
O tipo de silêncio que pesa.
Lara agradeceu, tocando de leve o braço da mãe.
— Se lembrar de qualquer outra coisa, me procure, por favor.
A mulher assentiu e se afastou lentamente.
M esperou alguns segundos antes de falar.
— Sonhos são janelas abertas. Às vezes, alguém olha de volta.
— Foi você? — perguntou Lara, fria.
— Eu não entro sem ser chamado. — respondeu ele. — Mas alguém entrou.
Ela virou-se, irritada.
— Você sempre fala em enigmas. Quer me ajudar ou confundir?
— Ajudar. — disse ele, sério agora. — Mas o que você chama de ajuda pode não parecer ajuda.
Lara suspirou, cansada.
— Sabe o que parece? Uma enorme perda de tempo.
M inclinou a cabeça, observando o caixão.
— O tempo é a única coisa que eu entendo perfeitamente, detetive.
Antes que ela pudesse responder, o celular vibrou no bolso.
Ela olhou a tela: Delegacia Central.
Atendeu.
— Mendes.
A voz do sargento soou apressada do outro lado.
— Detetive, apareceu uma testemunha. Diz que viu algo na noite da morte da cantora. Tá aqui agora.
Lara endireitou a postura.
— Mantenha ela lá. Estou a caminho.
Desligou e guardou o telefone.
— Preciso ir. — disse, virando-se para M.
Ele arqueou uma sobrancelha.
— Acha mesmo que vai conseguir respostas lá?
— Prefiro respostas humanas às suas. — respondeu, seca.
Ele riu baixinho.
— Tudo bem. Mas lembre-se: às vezes, a verdade veste carne só pra enganar melhor.
Lara já estava saindo quando ele completou:
— Ah, e… se ela disser que viu uma sombra, acredite.
Ela se virou, irritada.
— Você fala demais.
— É um defeito antigo. — disse ele, sorrindo.
Lara saiu da igreja sem olhar pra trás.
Mas, enquanto atravessava a calçada, teve a sensação de que ele ainda estava ali, observando-a — e que, de algum modo, sabia mais sobre a testemunha do que ela.
Do lado de dentro, M ficou parado em silêncio diante do caixão.
Olhou para o rosto inerte e murmurou algo baixo, quase um lamento:
— Desculpe, garoto. O erro não foi seu.
Depois, fechou os olhos.
Por um instante, o ar ao redor dele pareceu escurecer — como se a sombra quisesse engoli-lo — e então ele simplesmente desapareceu.
Lara dirigia pela avenida, o som da chuva batendo no para-brisa.
O telefone ainda vibrava no painel, mostrando mensagens do sargento pedindo pressa.
Mas o que ecoava na cabeça dela não era a ligação.
Era a voz da mãe do ator.
“Ele sonhou com um homem de preto. E no último sonho, o homem falou ‘até logo’.”
Lara apertou o volante.
Se essa testemunha dissesse algo parecido…
Ela teria que aceitar que talvez M não fosse louco.
Talvez fosse pior.
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Atualizado até capítulo 31
Comments
Mắm tôm
Essa é a melhor história que já li aqui! Não me faça esperar muito, autora!
2025-10-23
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