CAPÍTULO 5 – VELÓRIO

A manhã estava cinza.

O céu parecia cansado, e o ar, pesado demais para uma cidade viva.

Lara estacionou o carro diante da igreja onde acontecia o velório da primeira vítima — o ator que, segundo todos os exames, havia morrido “sem motivo”.

Ela não era de frequentar velórios.

Mas algo naquele caso ainda a incomodava.

Talvez fosse o fato de ter visto o mesmo olhar vazio agora duas vezes.

Ou talvez fosse o medo de encontrar de novo aquele homem — M.

O salão estava cheio.

Rostos tristes, câmeras discretas, jornalistas tentando se esconder atrás de colunas.

No centro, o caixão cercado por flores brancas.

O corpo parecia dormir.

Tão calmo que era quase indecente chamá-lo de morto.

Lara respirou fundo e caminhou entre as pessoas.

Alguns cochicharam ao reconhecê-la.

Outros apenas desviaram o olhar, como se a presença de uma detetive ali fosse um mau presságio.

Ela parou diante do caixão por um instante.

Olhou o rosto do homem.

Sem ferimentos. Sem dor.

Apenas ausência.

— Estranho, não é? — disse uma voz atrás dela.

Lara fechou os olhos por um segundo.

Não precisava virar pra saber.

Ele estava ali.

M, de terno preto impecável, as mãos cruzadas nas costas, o mesmo ar de quem pertencia a outro tempo.

— Você não devia estar aqui — disse ela, baixinho, sem olhar pra ele.

— Eu sempre estou onde o fim está. — respondeu ele, tranquilo. — E hoje, o fim tem flores.

Ela o encarou.

— Está seguindo meus passos?

— Não. — Ele deu um meio sorriso. — Só vim dar meus pêsames. Afinal, foi um erro meu.

Lara respirou fundo.

— Você não sente culpa, sente?

— Sinto. — ele disse, depois de uma pausa. — O que você acha que me mantém aqui há milênios?

Antes que ela pudesse responder, uma mulher de meia-idade se aproximou.

Os olhos vermelhos de tanto chorar, a expressão confusa e curiosa.

— Com licença… — disse a mulher. — Vocês são da polícia?

Lara endireitou a postura.

— Sim, senhora. Eu sou a detetive Lara Mendes.

A mulher assentiu devagar, os olhos marejados.

— E ele?

Lara abriu a boca pra responder, mas M foi mais rápido:

— Secretário dela. — disse com naturalidade. — Cuidamos dos relatórios juntos.

Lara o olhou com raiva silenciosa.

Ele apenas sorriu, disfarçando sob uma postura respeitosa.

A mãe do falecido limpou as lágrimas.

— Eu só quero entender… ele parecia tão bem, sabe? Não estava doente. Estava feliz.

Lara segurou o olhar dela.

— A senhora lembra se ele reclamou de algo estranho nos dias antes da morte?

A mulher pensou por um momento.

— Ele falou que andava sonhando com o mesmo homem. Um homem de terno preto. Disse que, no sonho, o homem ficava parado olhando pra ele. E que toda vez que acordava, sentia frio.

Lara sentiu um arrepio subir pela espinha.

Ela não precisou olhar para saber que M estava observando-a.

E que estava calado de propósito.

— E… — continuou a mulher — uma noite antes de… de acontecer, ele disse que o sonho tinha sido diferente. Que o homem tinha falado com ele.

— Falado o quê? — perguntou Lara, quase num sussurro.

A mulher enxugou as lágrimas.

— “Até logo.” — respondeu. — Foi só isso que ele disse.

Silêncio.

O tipo de silêncio que pesa.

Lara agradeceu, tocando de leve o braço da mãe.

— Se lembrar de qualquer outra coisa, me procure, por favor.

A mulher assentiu e se afastou lentamente.

M esperou alguns segundos antes de falar.

— Sonhos são janelas abertas. Às vezes, alguém olha de volta.

— Foi você? — perguntou Lara, fria.

— Eu não entro sem ser chamado. — respondeu ele. — Mas alguém entrou.

Ela virou-se, irritada.

— Você sempre fala em enigmas. Quer me ajudar ou confundir?

— Ajudar. — disse ele, sério agora. — Mas o que você chama de ajuda pode não parecer ajuda.

Lara suspirou, cansada.

— Sabe o que parece? Uma enorme perda de tempo.

M inclinou a cabeça, observando o caixão.

— O tempo é a única coisa que eu entendo perfeitamente, detetive.

Antes que ela pudesse responder, o celular vibrou no bolso.

Ela olhou a tela: Delegacia Central.

Atendeu.

— Mendes.

A voz do sargento soou apressada do outro lado.

— Detetive, apareceu uma testemunha. Diz que viu algo na noite da morte da cantora. Tá aqui agora.

Lara endireitou a postura.

— Mantenha ela lá. Estou a caminho.

Desligou e guardou o telefone.

— Preciso ir. — disse, virando-se para M.

Ele arqueou uma sobrancelha.

— Acha mesmo que vai conseguir respostas lá?

— Prefiro respostas humanas às suas. — respondeu, seca.

Ele riu baixinho.

— Tudo bem. Mas lembre-se: às vezes, a verdade veste carne só pra enganar melhor.

Lara já estava saindo quando ele completou:

— Ah, e… se ela disser que viu uma sombra, acredite.

Ela se virou, irritada.

— Você fala demais.

— É um defeito antigo. — disse ele, sorrindo.

Lara saiu da igreja sem olhar pra trás.

Mas, enquanto atravessava a calçada, teve a sensação de que ele ainda estava ali, observando-a — e que, de algum modo, sabia mais sobre a testemunha do que ela.

Do lado de dentro, M ficou parado em silêncio diante do caixão.

Olhou para o rosto inerte e murmurou algo baixo, quase um lamento:

— Desculpe, garoto. O erro não foi seu.

Depois, fechou os olhos.

Por um instante, o ar ao redor dele pareceu escurecer — como se a sombra quisesse engoli-lo — e então ele simplesmente desapareceu.

Lara dirigia pela avenida, o som da chuva batendo no para-brisa.

O telefone ainda vibrava no painel, mostrando mensagens do sargento pedindo pressa.

Mas o que ecoava na cabeça dela não era a ligação.

Era a voz da mãe do ator.

“Ele sonhou com um homem de preto. E no último sonho, o homem falou ‘até logo’.”

Lara apertou o volante.

Se essa testemunha dissesse algo parecido…

Ela teria que aceitar que talvez M não fosse louco.

Talvez fosse pior.

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Comments

Mắm tôm

Mắm tôm

Essa é a melhor história que já li aqui! Não me faça esperar muito, autora!

2025-10-23

2

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