Lara não dormiu.
Passou a noite sentada na sala do apartamento, o abajur aceso e a pena negra sobre a mesa de centro.
Por mais que tentasse racionalizar, não havia explicação lógica.
A pena não era de corvo, nem de nenhum pássaro que ela conhecesse.
Era leve, mas quente. Às vezes parecia vibrar, como se tivesse um pulso.
Ela havia tentado deixá-la dentro de um saco plástico, mas o calor atravessava o material.
E, no fundo, ela tinha medo de jogá-la fora.
O relógio marcava duas e quarenta e três da madrugada quando Lara ligou o notebook.
Digitou "penas negras sobrenaturais" no campo de busca, sem acreditar que estava mesmo fazendo isso.
Os resultados eram um mar de teorias malucas — fóruns, blogs, vídeos caseiros.
Mas algo chamou sua atenção: um documentário antigo sobre “os Sete Anjos Caídos”, produzido por uma universidade da Alemanha.
Ela clicou.
A tela mostrou imagens antigas, pinturas de catedrais, textos em latim.
A narração era lenta, solene:
“Quando Lúcifer se rebelou, não foi o único a cair. Alguns anjos foram condenados não por traição, mas por indecisão. Não tomaram partido, e isso foi considerado pecado. Um deles foi encarregado de vigiar o fim da vida humana. Chamavam-no de Mors, o Guardião do Fim.*”
Lara ficou imóvel.
Mors.
“Morte.”
Ela deu pausa no vídeo, sentindo o coração apertar.
As palavras de M voltaram à cabeça:
“Fui um dos que caíram. Fui condenado a andar entre o fim e o começo.”
Por um segundo, ela se perguntou se ele poderia ter lido esse documentário em algum lugar e usado a história pra enganá-la.
Mas o detalhe que a assustava era outro:
A mesma pena negra aparecia nas imagens do vídeo.
Antigas esculturas mostravam o anjo com asas escuras, segurando uma foice, e o narrador continuava:
“Diz-se que, quando Mors se manifesta, deixa uma pena como marca. A prova de que o ciclo foi
quebrado.”
Lara fechou o notebook, tentando afastar o arrepio que subia pela nuca.
No escritório da polícia, ninguém entenderia.
Ninguém acreditaria.
Ela abriu os arquivos do caso da celebridade e o comparou com o da cantora.
Dois corpos, mortes sem causa. Corações parados. Nenhuma toxina. Nenhuma marca.
Havia apenas uma coisa em comum: os olhos abertos, com a mesma expressão vazia — como se tivessem visto algo impossível antes de morrer.
Lara começou a vasculhar as gravações das câmeras do hotel.
Horas e horas de vídeo.
Até que, em um dos frames, notou algo:
Um vulto escuro passando pelo corredor, segundos antes da hora estimada da morte.
Não tinha rosto, nem forma clara — apenas uma sombra alta e fina, que se dissipava como fumaça.
Ela ampliou a imagem, tentando ajustar o contraste.
Nada.
Só o borrão.
Mas quando pausou novamente, por um instante, pareceu ver dois olhos brilhando dentro da sombra.
Ela se recostou na cadeira, exausta, e passou a mão no rosto.
— Eu tô ficando louca. — murmurou.
Mesmo assim, abriu um novo vídeo — dessa vez, um documentário amador sobre “A Morte nas Religiões Antigas.”
Uma voz feminina narrava:
“Em muitas culturas, a Morte não é apenas o fim, mas um mensageiro. Um ser preso entre mundos. Alguns acreditam que ele sente dor quando uma alma morre fora do tempo designado.”
Lara pausou o vídeo novamente.
“Dor”, pensou.
M parecia falar com uma mistura de tédio e tristeza. Talvez fosse isso.
Ou talvez ela estivesse apenas cansada demais para raciocinar direito.
O som do relógio marcava quatro e dezessete quando uma corrente de ar frio percorreu a sala.
A luz do abajur piscou.
Lara ergueu o rosto devagar.
— Eu devia saber…
Ele estava ali.
De pé, encostado na parede da sala, como se sempre tivesse estado.
M sorria.
— Pesquisando sobre mim, detetive?
— Você… — ela se levantou rapidamente. — Como entrou aqui?
— Eu nunca saí. — respondeu ele, dando um passo à frente. — Você só parou de me ver.
Lara engoliu seco, mas manteve a postura.
— Se veio me assustar, não vai conseguir.
— Não vim assustar. Vim avisar. — disse ele, sério agora.
— Avisar o quê?
— As mortes estão se acelerando. — Ele olhou pela janela. — Alguém está matando antes da hora, e isso rasga o equilíbrio.
— O “equilíbrio” — ironizou ela. — Acha que eu vou acreditar nisso?
— Não precisa acreditar. Só precisa ver. — respondeu ele.
Lara cruzou os braços.
— E o que eu deveria ver, exatamente?
Ele olhou para ela, o olhar carregado de algo que parecia pesar antigo.
— Que o assassino não é humano.
Ela ficou em silêncio por alguns segundos, tentando entender se ele estava blefando.
— Você está dizendo que tem outro anjo fazendo isso?
— Não. — M respirou fundo. — Um fragmento do que sobrou de nós. Chamamos de O Que Rasteja. Ele se alimenta das almas que eu não consigo levar.
— Isso soa… insano.
— É. — respondeu ele, simples. — Mas é real.
Ela deu uma risada curta, sem humor.
— E por que eu? Por que você me mostra isso?
Ele a observou por um instante.
— Porque você viu. Tocou. Me prendeu. Ninguém mais consegue.
— Isso não faz sentido.
— Nada do que é verdadeiro faz. — ele disse, aproximando-se.
A distância entre eles era pequena agora.
Ela podia sentir o frio que vinha dele, cortando o ar quente da sala.
— E se eu disser que quero sair disso? — perguntou ela.
M olhou para a pena sobre a mesa.
— Tarde demais. Quando você tocou isso, já se ligou ao que vem a seguir.
Lara seguiu o olhar dele. A pena estava pulsando de novo.
Um brilho negro, como fumaça viva, começou a se mover sobre ela.
Ela recuou.
— O que está acontecendo?
M olhou fixamente para o objeto.
— É um aviso.
— Aviso de quê?
Ele levantou o olhar para ela.
— Que ele já te notou.
O vento atravessou o apartamento, derrubando papéis e espalhando as cortinas.
As luzes piscaram outra vez.
Lara deu um passo atrás, o coração disparado.
— O que… o que significa isso?
M deu um meio sorriso, triste.
— Significa que você agora é parte da história.
E, num piscar de olhos, ele desapareceu.
O abajur voltou a acender, o vento cessou.
Apenas a pena permanecia sobre a mesa, fumegando levemente, como se ainda respirasse.
Lara ficou ali, parada, olhando para ela.
Sem conseguir entender.
Sem saber se tinha medo dele… ou do que viria depois.
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Atualizado até capítulo 31
Comments
oddee
Só queria poder abraçar o autor por ter criado algo tão incrível!
2025-10-23
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