CAPÍTULO 4 – PENA

Lara não dormiu.

Passou a noite sentada na sala do apartamento, o abajur aceso e a pena negra sobre a mesa de centro.

Por mais que tentasse racionalizar, não havia explicação lógica.

A pena não era de corvo, nem de nenhum pássaro que ela conhecesse.

Era leve, mas quente. Às vezes parecia vibrar, como se tivesse um pulso.

Ela havia tentado deixá-la dentro de um saco plástico, mas o calor atravessava o material.

E, no fundo, ela tinha medo de jogá-la fora.

O relógio marcava duas e quarenta e três da madrugada quando Lara ligou o notebook.

Digitou "penas negras sobrenaturais" no campo de busca, sem acreditar que estava mesmo fazendo isso.

Os resultados eram um mar de teorias malucas — fóruns, blogs, vídeos caseiros.

Mas algo chamou sua atenção: um documentário antigo sobre “os Sete Anjos Caídos”, produzido por uma universidade da Alemanha.

Ela clicou.

A tela mostrou imagens antigas, pinturas de catedrais, textos em latim.

A narração era lenta, solene:

“Quando Lúcifer se rebelou, não foi o único a cair. Alguns anjos foram condenados não por traição, mas por indecisão. Não tomaram partido, e isso foi considerado pecado. Um deles foi encarregado de vigiar o fim da vida humana. Chamavam-no de Mors, o Guardião do Fim.*”

Lara ficou imóvel.

Mors.

“Morte.”

Ela deu pausa no vídeo, sentindo o coração apertar.

As palavras de M voltaram à cabeça:

“Fui um dos que caíram. Fui condenado a andar entre o fim e o começo.”

Por um segundo, ela se perguntou se ele poderia ter lido esse documentário em algum lugar e usado a história pra enganá-la.

Mas o detalhe que a assustava era outro:

A mesma pena negra aparecia nas imagens do vídeo.

Antigas esculturas mostravam o anjo com asas escuras, segurando uma foice, e o narrador continuava:

“Diz-se que, quando Mors se manifesta, deixa uma pena como marca. A prova de que o ciclo foi

quebrado.”

Lara fechou o notebook, tentando afastar o arrepio que subia pela nuca.

No escritório da polícia, ninguém entenderia.

Ninguém acreditaria.

Ela abriu os arquivos do caso da celebridade e o comparou com o da cantora.

Dois corpos, mortes sem causa. Corações parados. Nenhuma toxina. Nenhuma marca.

Havia apenas uma coisa em comum: os olhos abertos, com a mesma expressão vazia — como se tivessem visto algo impossível antes de morrer.

Lara começou a vasculhar as gravações das câmeras do hotel.

Horas e horas de vídeo.

Até que, em um dos frames, notou algo:

Um vulto escuro passando pelo corredor, segundos antes da hora estimada da morte.

Não tinha rosto, nem forma clara — apenas uma sombra alta e fina, que se dissipava como fumaça.

Ela ampliou a imagem, tentando ajustar o contraste.

Nada.

Só o borrão.

Mas quando pausou novamente, por um instante, pareceu ver dois olhos brilhando dentro da sombra.

Ela se recostou na cadeira, exausta, e passou a mão no rosto.

— Eu tô ficando louca. — murmurou.

Mesmo assim, abriu um novo vídeo — dessa vez, um documentário amador sobre “A Morte nas Religiões Antigas.”

Uma voz feminina narrava:

“Em muitas culturas, a Morte não é apenas o fim, mas um mensageiro. Um ser preso entre mundos. Alguns acreditam que ele sente dor quando uma alma morre fora do tempo designado.”

Lara pausou o vídeo novamente.

“Dor”, pensou.

M parecia falar com uma mistura de tédio e tristeza. Talvez fosse isso.

Ou talvez ela estivesse apenas cansada demais para raciocinar direito.

O som do relógio marcava quatro e dezessete quando uma corrente de ar frio percorreu a sala.

A luz do abajur piscou.

Lara ergueu o rosto devagar.

— Eu devia saber…

Ele estava ali.

De pé, encostado na parede da sala, como se sempre tivesse estado.

M sorria.

— Pesquisando sobre mim, detetive?

— Você… — ela se levantou rapidamente. — Como entrou aqui?

— Eu nunca saí. — respondeu ele, dando um passo à frente. — Você só parou de me ver.

Lara engoliu seco, mas manteve a postura.

— Se veio me assustar, não vai conseguir.

— Não vim assustar. Vim avisar. — disse ele, sério agora.

— Avisar o quê?

— As mortes estão se acelerando. — Ele olhou pela janela. — Alguém está matando antes da hora, e isso rasga o equilíbrio.

— O “equilíbrio” — ironizou ela. — Acha que eu vou acreditar nisso?

— Não precisa acreditar. Só precisa ver. — respondeu ele.

Lara cruzou os braços.

— E o que eu deveria ver, exatamente?

Ele olhou para ela, o olhar carregado de algo que parecia pesar antigo.

— Que o assassino não é humano.

Ela ficou em silêncio por alguns segundos, tentando entender se ele estava blefando.

— Você está dizendo que tem outro anjo fazendo isso?

— Não. — M respirou fundo. — Um fragmento do que sobrou de nós. Chamamos de O Que Rasteja. Ele se alimenta das almas que eu não consigo levar.

— Isso soa… insano.

— É. — respondeu ele, simples. — Mas é real.

Ela deu uma risada curta, sem humor.

— E por que eu? Por que você me mostra isso?

Ele a observou por um instante.

— Porque você viu. Tocou. Me prendeu. Ninguém mais consegue.

— Isso não faz sentido.

— Nada do que é verdadeiro faz. — ele disse, aproximando-se.

A distância entre eles era pequena agora.

Ela podia sentir o frio que vinha dele, cortando o ar quente da sala.

— E se eu disser que quero sair disso? — perguntou ela.

M olhou para a pena sobre a mesa.

— Tarde demais. Quando você tocou isso, já se ligou ao que vem a seguir.

Lara seguiu o olhar dele. A pena estava pulsando de novo.

Um brilho negro, como fumaça viva, começou a se mover sobre ela.

Ela recuou.

— O que está acontecendo?

M olhou fixamente para o objeto.

— É um aviso.

— Aviso de quê?

Ele levantou o olhar para ela.

— Que ele já te notou.

O vento atravessou o apartamento, derrubando papéis e espalhando as cortinas.

As luzes piscaram outra vez.

Lara deu um passo atrás, o coração disparado.

— O que… o que significa isso?

M deu um meio sorriso, triste.

— Significa que você agora é parte da história.

E, num piscar de olhos, ele desapareceu.

O abajur voltou a acender, o vento cessou.

Apenas a pena permanecia sobre a mesa, fumegando levemente, como se ainda respirasse.

Lara ficou ali, parada, olhando para ela.

Sem conseguir entender.

Sem saber se tinha medo dele… ou do que viria depois.

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Comments

oddee

oddee

Só queria poder abraçar o autor por ter criado algo tão incrível!

2025-10-23

1

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