CAPÍTULO 3 – SOMBRAS

A chuva caía fina sobre a cidade.

As ruas pareciam mais escuras do que de costume.

Lara Mendes estava parada diante da janela de sua sala, observando as gotas escorrerem pelo vidro.

O interrogatório de M ainda ecoava na mente dela.

Suas palavras, o sorriso calmo, o olhar que parecia atravessar tudo.

Mas o que a deixava mais inquieta era o relatório: nenhum registro, nenhuma identidade, nenhuma explicação.

O homem simplesmente não existia.

E mesmo assim, ela o havia algemado, ouvido, tocado.

Sentido o frio que parecia vir dele, como se o ar ao redor tivesse outra temperatura.

O som do telefone quebrou o silêncio.

— Detetive Mendes. — atendeu, firme.

— Temos outro corpo. — disse o sargento do outro lado da linha. — Mesmo padrão do ator. Saudável, sem causa aparente.

Lara sentiu um peso no peito.

— Local?

— Hotel Atlas, cobertura.

Ela desligou sem responder. Pegou o casaco, o distintivo, e saiu.

O Hotel Atlas era um prédio antigo, de luxo discreto.

Luzes amareladas, cheiro de tapete molhado e perfume caro.

No corredor do último andar, o som das vozes da perícia se misturava ao clique das câmeras fotográficas.

O corpo estava na cama, lençóis brancos impecáveis.

Uma mulher — cantora famosa, vinte e nove anos.

Mesma expressão tranquila, mesmo vazio de explicações.

Lara olhou em volta. Nenhum sinal de luta, nenhuma entrada forçada.

Tudo limpo, ordenado, frio.

Ela anotava os detalhes quando sentiu o mesmo arrepio da outra noite.

O ar ficou pesado.

Um perfume de terra úmida e vento frio tomou o ambiente.

Virou-se devagar.

Ele estava ali.

Encostado na parede, de terno preto, mãos nos bolsos, o mesmo sorriso.

— Chegou rápido. — disse ele, como se estivesse esperando por ela.

Lara cerrou os olhos.

— Você foi liberado há três horas. E já está em outra cena de morte.

— Não é minha culpa. — respondeu, calmo. — Eu só sigo o chamado.

— E por coincidência, o chamado é sempre o mesmo tipo de morte.

— Coincidências não existem. — ele disse. — Nem para os vivos.

Lara se aproximou.

— Está me seguindo?

— Eu poderia perguntar o mesmo. — respondeu ele, olhando o corpo. — Você realmente acha que sou o assassino?

— Acho que você aparece em lugares errados, nas horas erradas, e fala como um lunático.

Ele riu.

— Já me chamaram de muita coisa. Lunático é leve.

Ela se manteve firme.

— Fala a verdade. Você matou essa mulher?

— Não. Ela foi tirada de mim. — disse ele, com seriedade. — Outra vez.

— “Tirada”?

— Cada vida tem um tempo escrito. Quando alguém a encurta, o mundo se desequilibra.

Lara cruzou os braços.

— E você sabe quem está “encurtando”?

Ele ficou em silêncio por um instante, como se escutasse algo distante.

— Ainda não. Mas sinto o rastro.

— O rastro do quê?

— Do medo. — respondeu, olhando para o nada. — Toda alma arrancada cedo demais deixa o medo no ar. E eu o sinto.

Lara deu um passo à frente.

— Isso tudo é conversa pra me confundir.

Ele voltou o olhar para ela.

— Não preciso te confundir, detetive. Você já duvida de si mesma.

Ela o encarou, tentando manter o controle.

— Está preso novamente.

— Por quê? — perguntou, sorrindo. — Por estar fazendo meu trabalho?

— Por estar onde não devia estar.

Ela fez sinal para um dos peritos.

— Alguém leva esse homem pra fora, agora.

Mas o perito olhou para ela, confuso.

— Que homem, chefe?

Lara virou-se rapidamente.

M ainda estava lá, bem diante dela.

Mas para os outros, era como se o ar estivesse vazio.

O perito continuou:

— Só a senhora aqui, detetive.

Ela piscou, confusa. Olhou novamente para M.

Ele estava sorrindo.

— Eles não podem me ver. — disse ele, calmo. — Só quem já me tocou pode.

Lara recuou um passo.

— Isso é impossível.

— É o tipo de coisa que o impossível adora ser. — respondeu ele.

Ela sentiu o coração acelerar. O ambiente parecia se fechar em volta dela.

Tudo estava frio, o som distante, como se o mundo tivesse ficado menor.

M se aproximou, devagar, a voz baixa.

— Você acha que ainda está no controle, Lara. Mas não está. Há algo grande se movendo, e você está no meio disso agora.

Ela engoliu seco.

— Se isso for uma ameaça…

— Não é. — ele interrompeu, com gentileza. — É um aviso.

Ele parou a poucos passos dela.

Os olhos dele pareciam refletir luzes que não existiam na sala.

— Quando Lúcifer caiu, arrastou consigo anjos que não lutaram. Fui um deles. Fui condenado a andar entre o fim e o começo. A Morte não é um castigo. É uma função.

Lara ficou imóvel, o ar travado no peito.

— Você acredita mesmo nisso tudo? — perguntou.

Ele a olhou com algo que parecia pena.

— Eu não acredito. Eu lembro.

Por um instante, o silêncio dominou o quarto.

O som da chuva lá fora parecia distante demais, quase irreal.

Lara piscou, e ele já não estava mais lá.

O corpo ainda jazia sobre a cama, mas agora havia algo diferente.

Uma pena negra — longa, brilhante, e quente ao toque — repousava sobre o peito da vítima.

Ela a pegou devagar, observando o brilho escuro sob a luz fraca.

Uma pena que não deveria existir.

O perito voltou para a sala.

— Chefe, a senhora tá bem?

Lara fechou a mão em volta da pena.

— Tô. — mentiu. — Só preciso de ar.

Saiu do quarto, descendo o corredor em passos rápidos.

O vento da noite entrou pelas janelas abertas, frio e pesado.

Lá fora, na rua vazia, algo a fez parar.

Do outro lado da calçada, M estava encostado em um poste, observando-a.

Sorria, como se soubesse de tudo.

Lara ficou parada por um instante, sem se mover.

Então ele ergueu a mão, num gesto leve, e desapareceu.

Simples assim.

Ela respirou fundo, tentando se convencer de que havia imaginado tudo.

Mas quando abriu a mão, a pena ainda estava ali.

Escura. Real. Queimando levemente na pele.

E pela primeira vez em muito tempo, a detetive Lara Mendes sentiu medo de algo que não conseguia explicar.

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