A chuva caía fina sobre a cidade.
As ruas pareciam mais escuras do que de costume.
Lara Mendes estava parada diante da janela de sua sala, observando as gotas escorrerem pelo vidro.
O interrogatório de M ainda ecoava na mente dela.
Suas palavras, o sorriso calmo, o olhar que parecia atravessar tudo.
Mas o que a deixava mais inquieta era o relatório: nenhum registro, nenhuma identidade, nenhuma explicação.
O homem simplesmente não existia.
E mesmo assim, ela o havia algemado, ouvido, tocado.
Sentido o frio que parecia vir dele, como se o ar ao redor tivesse outra temperatura.
O som do telefone quebrou o silêncio.
— Detetive Mendes. — atendeu, firme.
— Temos outro corpo. — disse o sargento do outro lado da linha. — Mesmo padrão do ator. Saudável, sem causa aparente.
Lara sentiu um peso no peito.
— Local?
— Hotel Atlas, cobertura.
Ela desligou sem responder. Pegou o casaco, o distintivo, e saiu.
O Hotel Atlas era um prédio antigo, de luxo discreto.
Luzes amareladas, cheiro de tapete molhado e perfume caro.
No corredor do último andar, o som das vozes da perícia se misturava ao clique das câmeras fotográficas.
O corpo estava na cama, lençóis brancos impecáveis.
Uma mulher — cantora famosa, vinte e nove anos.
Mesma expressão tranquila, mesmo vazio de explicações.
Lara olhou em volta. Nenhum sinal de luta, nenhuma entrada forçada.
Tudo limpo, ordenado, frio.
Ela anotava os detalhes quando sentiu o mesmo arrepio da outra noite.
O ar ficou pesado.
Um perfume de terra úmida e vento frio tomou o ambiente.
Virou-se devagar.
Ele estava ali.
Encostado na parede, de terno preto, mãos nos bolsos, o mesmo sorriso.
— Chegou rápido. — disse ele, como se estivesse esperando por ela.
Lara cerrou os olhos.
— Você foi liberado há três horas. E já está em outra cena de morte.
— Não é minha culpa. — respondeu, calmo. — Eu só sigo o chamado.
— E por coincidência, o chamado é sempre o mesmo tipo de morte.
— Coincidências não existem. — ele disse. — Nem para os vivos.
Lara se aproximou.
— Está me seguindo?
— Eu poderia perguntar o mesmo. — respondeu ele, olhando o corpo. — Você realmente acha que sou o assassino?
— Acho que você aparece em lugares errados, nas horas erradas, e fala como um lunático.
Ele riu.
— Já me chamaram de muita coisa. Lunático é leve.
Ela se manteve firme.
— Fala a verdade. Você matou essa mulher?
— Não. Ela foi tirada de mim. — disse ele, com seriedade. — Outra vez.
— “Tirada”?
— Cada vida tem um tempo escrito. Quando alguém a encurta, o mundo se desequilibra.
Lara cruzou os braços.
— E você sabe quem está “encurtando”?
Ele ficou em silêncio por um instante, como se escutasse algo distante.
— Ainda não. Mas sinto o rastro.
— O rastro do quê?
— Do medo. — respondeu, olhando para o nada. — Toda alma arrancada cedo demais deixa o medo no ar. E eu o sinto.
Lara deu um passo à frente.
— Isso tudo é conversa pra me confundir.
Ele voltou o olhar para ela.
— Não preciso te confundir, detetive. Você já duvida de si mesma.
Ela o encarou, tentando manter o controle.
— Está preso novamente.
— Por quê? — perguntou, sorrindo. — Por estar fazendo meu trabalho?
— Por estar onde não devia estar.
Ela fez sinal para um dos peritos.
— Alguém leva esse homem pra fora, agora.
Mas o perito olhou para ela, confuso.
— Que homem, chefe?
Lara virou-se rapidamente.
M ainda estava lá, bem diante dela.
Mas para os outros, era como se o ar estivesse vazio.
O perito continuou:
— Só a senhora aqui, detetive.
Ela piscou, confusa. Olhou novamente para M.
Ele estava sorrindo.
— Eles não podem me ver. — disse ele, calmo. — Só quem já me tocou pode.
Lara recuou um passo.
— Isso é impossível.
— É o tipo de coisa que o impossível adora ser. — respondeu ele.
Ela sentiu o coração acelerar. O ambiente parecia se fechar em volta dela.
Tudo estava frio, o som distante, como se o mundo tivesse ficado menor.
M se aproximou, devagar, a voz baixa.
— Você acha que ainda está no controle, Lara. Mas não está. Há algo grande se movendo, e você está no meio disso agora.
Ela engoliu seco.
— Se isso for uma ameaça…
— Não é. — ele interrompeu, com gentileza. — É um aviso.
Ele parou a poucos passos dela.
Os olhos dele pareciam refletir luzes que não existiam na sala.
— Quando Lúcifer caiu, arrastou consigo anjos que não lutaram. Fui um deles. Fui condenado a andar entre o fim e o começo. A Morte não é um castigo. É uma função.
Lara ficou imóvel, o ar travado no peito.
— Você acredita mesmo nisso tudo? — perguntou.
Ele a olhou com algo que parecia pena.
— Eu não acredito. Eu lembro.
Por um instante, o silêncio dominou o quarto.
O som da chuva lá fora parecia distante demais, quase irreal.
Lara piscou, e ele já não estava mais lá.
O corpo ainda jazia sobre a cama, mas agora havia algo diferente.
Uma pena negra — longa, brilhante, e quente ao toque — repousava sobre o peito da vítima.
Ela a pegou devagar, observando o brilho escuro sob a luz fraca.
Uma pena que não deveria existir.
O perito voltou para a sala.
— Chefe, a senhora tá bem?
Lara fechou a mão em volta da pena.
— Tô. — mentiu. — Só preciso de ar.
Saiu do quarto, descendo o corredor em passos rápidos.
O vento da noite entrou pelas janelas abertas, frio e pesado.
Lá fora, na rua vazia, algo a fez parar.
Do outro lado da calçada, M estava encostado em um poste, observando-a.
Sorria, como se soubesse de tudo.
Lara ficou parada por um instante, sem se mover.
Então ele ergueu a mão, num gesto leve, e desapareceu.
Simples assim.
Ela respirou fundo, tentando se convencer de que havia imaginado tudo.
Mas quando abriu a mão, a pena ainda estava ali.
Escura. Real. Queimando levemente na pele.
E pela primeira vez em muito tempo, a detetive Lara Mendes sentiu medo de algo que não conseguia explicar.
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Atualizado até capítulo 31
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