A sala de interrogatório cheirava a metal, café velho e desconfiança.
Lara Mendes estava sentada de frente para o homem que dizia ser a Morte.
Ele continuava calmo.
As mãos algemadas sobre a mesa.
O olhar fixo nela — um olhar escuro, sereno, que não piscava com frequência.
Nenhum sinal de medo, culpa ou nervosismo.
Era como se estivesse ali por curiosidade.
Lara abriu a pasta de documentos e ligou o gravador.
— Nome completo.
Ele sorriu.
— M.
— Nome completo. — repetiu ela, firme.
— Só M. — respondeu, divertido. — É tudo o que uso há eras.
Lara respirou fundo.
— Idade.
— Você quer em anos humanos ou eternos?
Ela o encarou em silêncio.
Ele riu baixinho.
— Ok, sem graça. Digamos que eu sou… velho o suficiente pra lembrar quando o tempo ainda não tinha nome.
Lara anotou no papel.
— Isso não é uma resposta.
— É o mais perto que você vai conseguir. — disse ele, apoiando o queixo nas mãos.
Lara olhou os papéis diante dela. Nenhum documento, nenhuma impressão digital válida, nada no sistema.
— Sem registro de nascimento. Sem RG. Sem digitais conhecidas.
— É quase como se você não existisse.
Ele inclinou a cabeça.
— E talvez seja exatamente isso.
Ela ignorou o comentário.
— Qual a sua relação com Caio Duarte, a vítima?
— Nenhuma. — respondeu ele. — Eu só vim buscá-lo. Mas alguém foi mais rápido.
— “Buscá-lo”? — ela franziu o cenho. — Quer explicar o que isso significa?
— Quando chega a hora de uma alma partir, eu apareço. É um trabalho solitário, mas limpo.
Lara soltou uma risada curta, sem humor.
— Então você é um ceifador.
— Esse é o apelido moderno. Eu prefiro “anjo do limite”.
Ela o observou com calma.
— Anjo? É isso que está dizendo que é?
Ele olhou para o teto, como se lembrasse de algo distante.
— Não exatamente. Eu fui um. Há muito tempo.
Lara cruzou os braços.
— E o que aconteceu?
— Digamos que eu escolhi o lado errado.
— O lado errado?
Ele apoiou-se na mesa e falou com voz mais baixa, quase um sussurro:
— Quando Lúcifer se rebelou contra o Criador, o céu tremeu. Metade dos anjos caiu. Eu não lutei. Só observei. Mas, ainda assim, fui arrastado pela queda.
Ela o encarava, tentando manter a expressão neutra.
— E virou a Morte. — completou, com ironia.
— Não “virei”. Fui nomeado. — disse ele, sério agora. — Alguém precisava cuidar do que restava. O Criador me deu um papel simples: conduzir os que partem.
Lara anotava, mas suas mãos tremiam levemente.
Ele falava com tanta convicção que era difícil saber se estava mentindo ou apenas acreditava demais na própria loucura.
— Isso é religião, delírio ou poesia? — ela perguntou, seca.
Ele sorriu.
— É história. A sua também faz parte dela, só ainda não percebeu.
Ela ignorou a provocação.
— Onde você estava nas últimas vinte e quatro horas?
— Em todo lugar. — respondeu ele. — Em um hospital, em um acidente de carro, num quarto de velhinha que partiu enquanto dormia. O turno foi longo.
Lara bateu a caneta contra a mesa.
— Sabe que nada disso faz sentido, certo?
— Faz pra mim. — disse ele. — E pra quem já partiu também.
Ela se recostou na cadeira, exausta.
Ele continuava calmo, firme, olhando-a como se soubesse algo sobre ela que ninguém mais sabia.
— Você parece muito tranquilo pra um suspeito de homicídio. — ela disse.
— Eu não mato. — respondeu. — Eu só chego quando o trabalho já está feito.
— Mas você disse que alguém está “adiantando” mortes.
— Sim. E isso me preocupa. O mundo precisa de equilíbrio. Quando alguém morre fora da hora, o fio do tempo se desfaz um pouco. — Ele fez um gesto leve com os dedos, como se mostrasse um fio se rompendo no ar. — É assim que o caos começa.
Lara ficou em silêncio.
Parte dela queria rir, outra parte queria sair daquela sala.
Mas algo nela — algo pequeno e incômodo — sentia medo.
Ela olhou para os papéis, tentando se concentrar.
— Você tem algum documento, algo que prove quem é?
— Nenhum humano precisa de provas de mim. Eles me veem no fim. E acreditam.
— Aqui não é o fim. É a delegacia central.
— Às vezes é o mesmo lugar. — disse ele, sorrindo.
Ela levantou-se, impaciente.
— Espere aqui. Vou confirmar sua história.
— Boa sorte. — disse ele, ainda sentado, observando-a sair.
...ΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩ...
Lara atravessou o corredor até a recepção.
O policial de plantão estava diante do computador, mastigando chiclete.
— Preciso que rode o nome “M”. Sem sobrenome. Nenhum documento. Tenta usar o reconhecimento facial também.
O policial assentiu e começou a digitar.
As luzes do monitor piscavam, barulhos do sistema sendo carregado.
Depois de alguns segundos, ele olhou pra ela, confuso.
— Não tem nada, chefe. Nenhum registro, nenhuma correspondência. É como se o cara não existisse.
— Tenta de novo.
Ele tentou. Trocou bancos de dados. Usou o sistema nacional, o internacional, o biométrico.
Nada.
— Nem impressão digital, nem histórico de passagem, nem CPF, nem RG. Nada mesmo. — disse o policial. — Nem rosto correspondente em base de dados.
Lara ficou parada, olhando pra tela.
A ficha estava completamente vazia.
O homem que ela tinha algemado, que falava, respirava e olhava pra ela com tanta ironia…
simplesmente não existia.
Um arrepio percorreu sua espinha.
Voltou devagar para a sala de interrogatório.
Ele continuava sentado, tranquilo, como se soubesse o resultado.
— Nada? — perguntou ele, antes mesmo que ela abrisse a boca.
Lara o encarou.
— Quem é você de verdade?
Ele sorriu, com os olhos quase gentis.
— Eu já disse. Sou o que chega quando tudo termina. Sou o intervalo entre o último suspiro e o silêncio.
— Isso não é possível. — disse ela, firme.
— O impossível é só uma palavra que os vivos usam pra se sentirem seguros. — respondeu ele, sem ironia.
Lara engoliu em seco.
A sala parecia menor agora. O ar, mais frio.
Por um momento, ela achou ter visto uma sombra se mover atrás dele — mas piscou e não havia nada.
— Você não me assusta. — ela mentiu.
Ele inclinou a cabeça, sorrindo.
— Ainda não.
Lara respirou fundo e desligou o gravador.
— A conversa acabou.
...ΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩ...
— Acredite, detetive… — disse ele, enquanto ela saía da sala. — Ela está só começando.
Do lado de fora, Lara apoiou as mãos na parede fria do corredor.
O coração batia mais rápido do que ela queria admitir.
Ela já tinha enfrentado assassinos, psicopatas, corruptos e mentirosos.
Mas nunca alguém que não existia.
Olhou de volta pela janela da sala de interrogatório.
Ele continuava ali, imóvel, sorrindo.
E, por um instante, o reflexo do vidro mostrou algo que não era humano — uma sombra imensa e antiga, pairando atrás dele.
Lara piscou.
E a imagem sumiu.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 31
Comments
.🌱Pomhy.☕
Mal posso esperar para recomendar essa leitura aos meus amigos.
2025-10-22
1