CAPÍTULO 2 – INTERROGATÓRIO

A sala de interrogatório cheirava a metal, café velho e desconfiança.

 Lara Mendes estava sentada de frente para o homem que dizia ser a Morte.

Ele continuava calmo.

 As mãos algemadas sobre a mesa.

 O olhar fixo nela — um olhar escuro, sereno, que não piscava com frequência.

 Nenhum sinal de medo, culpa ou nervosismo.

Era como se estivesse ali por curiosidade.

Lara abriu a pasta de documentos e ligou o gravador.

 — Nome completo.

Ele sorriu.

 — M.

— Nome completo. — repetiu ela, firme.

— Só M. — respondeu, divertido. — É tudo o que uso há eras.

Lara respirou fundo.

 — Idade.

— Você quer em anos humanos ou eternos?

Ela o encarou em silêncio.

 Ele riu baixinho.

— Ok, sem graça. Digamos que eu sou… velho o suficiente pra lembrar quando o tempo ainda não tinha nome.

Lara anotou no papel.

 — Isso não é uma resposta.

— É o mais perto que você vai conseguir. — disse ele, apoiando o queixo nas mãos.

Lara olhou os papéis diante dela. Nenhum documento, nenhuma impressão digital válida, nada no sistema.

 — Sem registro de nascimento. Sem RG. Sem digitais conhecidas.

 — É quase como se você não existisse.

Ele inclinou a cabeça.

 — E talvez seja exatamente isso.

Ela ignorou o comentário.

 — Qual a sua relação com Caio Duarte, a vítima?

— Nenhuma. — respondeu ele. — Eu só vim buscá-lo. Mas alguém foi mais rápido.

— “Buscá-lo”? — ela franziu o cenho. — Quer explicar o que isso significa?

— Quando chega a hora de uma alma partir, eu apareço. É um trabalho solitário, mas limpo.

Lara soltou uma risada curta, sem humor.

 — Então você é um ceifador.

— Esse é o apelido moderno. Eu prefiro “anjo do limite”.

Ela o observou com calma.

 — Anjo? É isso que está dizendo que é?

Ele olhou para o teto, como se lembrasse de algo distante.

 — Não exatamente. Eu fui um. Há muito tempo.

Lara cruzou os braços.

 — E o que aconteceu?

— Digamos que eu escolhi o lado errado.

— O lado errado?

Ele apoiou-se na mesa e falou com voz mais baixa, quase um sussurro:

 — Quando Lúcifer se rebelou contra o Criador, o céu tremeu. Metade dos anjos caiu. Eu não lutei. Só observei. Mas, ainda assim, fui arrastado pela queda.

Ela o encarava, tentando manter a expressão neutra.

— E virou a Morte. — completou, com ironia.

— Não “virei”. Fui nomeado. — disse ele, sério agora. — Alguém precisava cuidar do que restava. O Criador me deu um papel simples: conduzir os que partem.

Lara anotava, mas suas mãos tremiam levemente.

 Ele falava com tanta convicção que era difícil saber se estava mentindo ou apenas acreditava demais na própria loucura.

— Isso é religião, delírio ou poesia? — ela perguntou, seca.

Ele sorriu.

 — É história. A sua também faz parte dela, só ainda não percebeu.

Ela ignorou a provocação.

 — Onde você estava nas últimas vinte e quatro horas?

— Em todo lugar. — respondeu ele. — Em um hospital, em um acidente de carro, num quarto de velhinha que partiu enquanto dormia. O turno foi longo.

Lara bateu a caneta contra a mesa.

 — Sabe que nada disso faz sentido, certo?

— Faz pra mim. — disse ele. — E pra quem já partiu também.

Ela se recostou na cadeira, exausta.

 Ele continuava calmo, firme, olhando-a como se soubesse algo sobre ela que ninguém mais sabia.

— Você parece muito tranquilo pra um suspeito de homicídio. — ela disse.

— Eu não mato. — respondeu. — Eu só chego quando o trabalho já está feito.

— Mas você disse que alguém está “adiantando” mortes.

— Sim. E isso me preocupa. O mundo precisa de equilíbrio. Quando alguém morre fora da hora, o fio do tempo se desfaz um pouco. — Ele fez um gesto leve com os dedos, como se mostrasse um fio se rompendo no ar. — É assim que o caos começa.

Lara ficou em silêncio.

 Parte dela queria rir, outra parte queria sair daquela sala.

 Mas algo nela — algo pequeno e incômodo — sentia medo.

Ela olhou para os papéis, tentando se concentrar.

 — Você tem algum documento, algo que prove quem é?

— Nenhum humano precisa de provas de mim. Eles me veem no fim. E acreditam.

— Aqui não é o fim. É a delegacia central.

— Às vezes é o mesmo lugar. — disse ele, sorrindo.

Ela levantou-se, impaciente.

 — Espere aqui. Vou confirmar sua história.

— Boa sorte. — disse ele, ainda sentado, observando-a sair.

...ΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩ...

Lara atravessou o corredor até a recepção.

 O policial de plantão estava diante do computador, mastigando chiclete.

— Preciso que rode o nome “M”. Sem sobrenome. Nenhum documento. Tenta usar o reconhecimento facial também.

O policial assentiu e começou a digitar.

 As luzes do monitor piscavam, barulhos do sistema sendo carregado.

Depois de alguns segundos, ele olhou pra ela, confuso.

 — Não tem nada, chefe. Nenhum registro, nenhuma correspondência. É como se o cara não existisse.

— Tenta de novo.

Ele tentou. Trocou bancos de dados. Usou o sistema nacional, o internacional, o biométrico.

 Nada.

— Nem impressão digital, nem histórico de passagem, nem CPF, nem RG. Nada mesmo. — disse o policial. — Nem rosto correspondente em base de dados.

Lara ficou parada, olhando pra tela.

 A ficha estava completamente vazia.

O homem que ela tinha algemado, que falava, respirava e olhava pra ela com tanta ironia…

 simplesmente não existia.

Um arrepio percorreu sua espinha.

Voltou devagar para a sala de interrogatório.

 Ele continuava sentado, tranquilo, como se soubesse o resultado.

— Nada? — perguntou ele, antes mesmo que ela abrisse a boca.

Lara o encarou.

 — Quem é você de verdade?

Ele sorriu, com os olhos quase gentis.

 — Eu já disse. Sou o que chega quando tudo termina. Sou o intervalo entre o último suspiro e o silêncio.

— Isso não é possível. — disse ela, firme.

— O impossível é só uma palavra que os vivos usam pra se sentirem seguros. — respondeu ele, sem ironia.

Lara engoliu em seco.

 A sala parecia menor agora. O ar, mais frio.

 Por um momento, ela achou ter visto uma sombra se mover atrás dele — mas piscou e não havia nada.

— Você não me assusta. — ela mentiu.

Ele inclinou a cabeça, sorrindo.

 — Ainda não.

Lara respirou fundo e desligou o gravador.

 — A conversa acabou.

...ΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩ...

— Acredite, detetive… — disse ele, enquanto ela saía da sala. — Ela está só começando.

Do lado de fora, Lara apoiou as mãos na parede fria do corredor.

 O coração batia mais rápido do que ela queria admitir.

Ela já tinha enfrentado assassinos, psicopatas, corruptos e mentirosos.

 Mas nunca alguém que não existia.

Olhou de volta pela janela da sala de interrogatório.

 Ele continuava ali, imóvel, sorrindo.

 E, por um instante, o reflexo do vidro mostrou algo que não era humano — uma sombra imensa e antiga, pairando atrás dele.

Lara piscou.

 E a imagem sumiu.

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Comments

.🌱Pomhy.☕

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Mal posso esperar para recomendar essa leitura aos meus amigos.

2025-10-22

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