4 Verona

Amélia (narrando):

A decisão estava tomada. Não havia mais espaço para hesitação. Se Verona era o próximo palco, então Verona conheceria o peso da minha dor e da minha fúria.

Os olhos de todos ainda estavam sobre mim, mas eu já não me importava. Não era apenas a moglie de Enrico quem falava agora. Era a filha que jurou vingar os pais, a mulher que carregava no peito o peso de uma coroa manchada de sangue.

ENRICO: — Partiremos ao amanhecer. Quero tudo pronto antes que o sol toque as montanhas.

RICCI: — Já deixei dois carros preparados. Carregados e discretos. Se ela estiver em Verona, não escapará.

NINA: — Verona é território arriscado. Há aliados e inimigos, todos misturados. Mas se Lúcia estiver lá… vai deixar rastros mais claros do que em Milão.

Enrico me olhou, e naquele instante eu soube que ele confiava na minha presença tanto quanto confiava nos homens ao lado dele.

AMÉLIA: — Quero estar lá quando a encontrarmos. Não delegarei isso a ninguém.

ENRICO: — Você estará. Verona será testemunha de que ninguém toca na minha moglie sem pagar o preço.

Naquela noite, o casarão não dormiu. Cada corredor parecia vibrar com a preparação. O som metálico das armas sendo revisadas ecoava junto com o bater de malas, passos firmes e vozes abafadas de ordens sendo trocadas.

Subi até o quarto e encontrei minha mala já aberta sobre a cama. Vestidos elegantes jaziam ali, mas não era o que eu precisava. O luto e a guerra pediam outra roupa. Escolhi calças pretas ajustadas, uma blusa de seda escura e um sobretudo longo. A elegância estava no corte, mas a mensagem era clara: eu ia para lutar, não para ser apenas um enfeite ao lado do Don.

Enquanto guardava as peças, senti uma presença atrás de mim.

ENRICO: — Não precisa se esconder atrás de tecidos pesados, moglie. Eu já sei do que você é capaz.

Virei-me para encará-lo. O olhar verde dele queimava, e por um instante, a dor deu lugar à intensidade de algo mais sombrio.

AMÉLIA: — Não é sobre o que você vê. É sobre o que eles verão. Quando eu pisar em Verona, quero que saibam que eu não sou só a esposa do Don. Quero que saibam que eu carrego o sangue Grimaldi.

Ele se aproximou, segurando meu rosto com firmeza.

ENRICO: — E eles vão saber. Ninguém ousará duvidar da força da minha rainha.

Descemos juntos às primeiras horas da manhã. O frio da madrugada cortava o ar, mas dentro de mim, o fogo era inextinguível.

Nina já estava pronta, com os cabelos presos em um coque firme e uma arma presa ao coldre, discreta debaixo do casaco. Ricci fumava um cigarro encostado no carro, mas quando nos viu, apagou-o imediatamente, como se o instante exigisse respeito.

RICCI: — Os carros estão prontos. Verona nos espera.

NINA: — E Lúcia também.

Meus saltos soaram no mármore da entrada, firmes, marcando o compasso da partida. Respirei fundo, olhei para a escuridão da estrada diante de nós e sussurrei, para mim mesma, mas alto o suficiente para que Enrico ouvisse:

AMÉLIA: — Que Verona seja o início do fim.

Ele entrelaçou os dedos nos meus, e seguimos em direção ao carro.

A viagem para Verona não seria apenas uma caçada. Seria a primeira vez que eu mostraria ao mundo que a filha em luto havia sido enterrada junto aos pais. O que restava agora era a moglie do Don.

E ela não perdoava.

Amélia (narrando):

A estrada até Verona foi longa, mas não silenciosa. Cada quilômetro percorrido parecia ecoar a promessa que eu havia feito diante do mapa: eu não descansaria até arrancar a cabeça de Lúcia.

O carro blindado atravessava as curvas da rodovia com firmeza. Ricci estava ao volante, sempre atento, os olhos alternando entre o retrovisor e a estrada. Ao meu lado, Nina permanecia em silêncio, as mãos delicadas repousando sobre o colo, mas seus olhos claros denunciavam a tensão de quem, mesmo não sendo parte desse mundo, já estava envolvida até o pescoço nele.

ENRICO: — Não precisa temer, Nina. Verona é segura para nós.

NINA: — Segura? — Ela hesitou, olhando para mim. — Nada parece seguro desde aquele dia em Milão.

Apertei sua mão discretamente. Nina era mais que minha dama de companhia. Era o último elo com a vida que eu havia perdido, e talvez a única pessoa que ainda enxergasse a Amélia por trás da moglie do Don.

Quando os portões da mansão de Verona se abriram diante de nós, senti um arrepio. A construção imponente, cercada por jardins extensos e colunas de mármore, erguia-se contra o céu nublado como um lembrete de que Enrico era mais do que apenas um homem poderoso em Milão: seu império se estendia além das fronteiras.

Descemos dos carros, e capangas uniformizados já aguardavam para carregar as malas. Foi então que notei a figura parada próximo à escadaria principal. Um homem de cabelos grisalhos, postura firme e olhar cortante. Ele usava um sobretudo escuro, e mesmo antes de abrir a boca, sua presença já falava de poder.

RICCI (murmurando): — É Don Vittorio…

Enrico caminhou até ele sem hesitar, e eu o acompanhei. Assim que os dois se encararam, Vittorio abriu um meio sorriso cansado.

VITTORIO: — Enrico Bellucci… quando soube do que aconteceu, vim imediatamente. Não há dor maior do que enterrar aqueles que nos deram o nome. — Ele se virou para mim, inclinando levemente a cabeça. — Senhora Grimaldi, a sua perda é também minha.

AMÉLIA: — A perda é de todos nós, Don Vittorio. Mas eu não vou chorar eternamente. Quero sangue.

O brilho orgulhoso em seus olhos me fez entender que ele respeitava minha resposta.

ENRICO: — Veio para oferecer condolências… ou armas?

VITTORIO (arqueando a sobrancelha): — As duas coisas. Tenho homens e influência em Verona. E também… tenho informações.

Enrico se aproximou um passo, o ar carregado entre os dois.

ENRICO: — Diga.

Vittorio enfiou a mão no bolso do sobretudo e tirou um envelope pardo, entregando-o nas mãos de Enrico.

Vittorio - Cortarei rodeios. Matteo e Lúcia movimentaram-se rápido quando souberam do que aconteceu em Milão. Estão juntos — e ousados. Não escondem que querem território.

Meu estômago queimou, não de surpresa, mas de reconhecimento. Matteo escolheu um lado. O lado do veneno.

AMÉLIA: — Então Verona não é esconderijo. É tabuleiro.

ENRICO: — Mostre a peça que importa.

Vittorio colocou um envelope pardo sobre a mesa. Enrico abriu. Dentro, três fotos: Matteo entrando em um Alfa Romeo preto, Lúcia ao fundo com óculos escuros; um galpão numerado 31 no Porto Vecchio; e um close de um símbolo pintado na porta — uma serpente prateada.

RICCI: — “La Serpente”. Apareceu nos últimos meses. Célula pequena, violenta, alugada a quem paga mais.

VITTORIO: — Matteo os comprou. E não só eles. — Tocou um ponto no mapa. — Doca Seca C. Amanhã, 22h. Um leilão clandestino de cargas apreendidas. Matteo pretende intermediar a devolução de armamentos para um consórcio de Verona. Lúcia vai aparecer — ela mesma exige vistoria antes de fechar.

O silêncio foi cortante, cheio de fúria contida.

AMÉLIA: — Leilão é fachada. Eles querem consolidar lealdades na nossa cara.

ENRICO: — E vão conseguir… se caminharem até a saída.

RICCI: — Segurança?

VITTORIO: — Perímetro externo com quatro atiradores no alto dos guindastes. Interno dividido em três anéis. O anel do palco será controlado por Matteo. Lúcia chega separada, sem horário fixo. — Ele me encarou. — Ela gosta de fazer os outros esperarem.

AMÉLIA (gelando o sangue): — Então faremos o contrário: faremos Verona esperar por ela… e fechar as portas quando entrar.

Nina inspirou devagar ao meu lado, como quem testa a própria coragem num mundo que não é o dela.

NINA: — O que você precisar, eu organizo. Roupas, acesso, a distância certa… — Ela me olhou, firme. — Não vou atrapalhar.

Toquei sua mão por um segundo. Havia ali uma ternura que me lembrava quem eu tinha sido — e que agora me servia de âncora.

ENRICO: — Ricci, levantamos rotas de fuga. Vittorio, preciso de dois times discretos. Sem marcas. Sem tiros até meu sinal.

RICCI: — Já tenho dois carros gelados e placas trocadas. Coloco um homem dentro do galpão como comprador. Lança o lance alto, fica perto do palco.

VITTORIO: — Eu garanto a queda de energia por três minutos quando você mandar. O bastante para separarmos Matteo da serpente que o acompanha.

A imagem de Lúcia sob luz estourada e som de metal cortando silêncio cintilou na minha mente como uma visão.

AMÉLIA: — Não quero uma fuga. Quero um cerco. — Apontei o mapa. — Três pontos: Guindaste Norte, Saída Lateral B, Túnel de serviço. Quando as luzes caírem, fechamos os três. Matteo perde a retaguarda. Lúcia perde a vantagem do tempo.

ENRICO (os olhos em mim, orgulhosos e sombrios): — A minha moglie não joga. Ela dita regras.

VITTORIO: — Há mais. — Virou outra foto. Matteo de perfil, falando com um homem tatuado. — Fabio Malachia. Ex-carcereiro, agora cão de aluguel. Se Malachia está com Matteo, ele cuida do transporte. Isso significa rotas pelo subsolo do porto.

RICCI: — Túnel de serviço confirmado. Posso infiltrar um dos meus pelo acesso de manutenção, mas preciso do crachá certo.

VITTORIO: — Eu providencio.

Levantei o rosto. A guerra respirava conosco naquela sala.

AMÉLIA: — Matteo veio para me arrancar a coroa antes mesmo que eu a aceitasse. Lúcia quer ver o meu luto ajoelhado. — Endureci a voz. — Amanhã, no Porto Vecchio, eles vão aprender que eu não me ajoelho.

ENRICO (aproximando-se, baixo, só para mim): — Eu te entrego a Verona, se for preciso. Mas a cabeça… é sua.

AMÉLIA: — Sempre foi.

Vittorio recolheu os mapas, já distribuindo ordens com a calma de quem segura o fósforo acima do barril de pólvora.

VITTORIO: — Amanhã, 21h30, nos posicionamos. Às 22h, o leilão começa. Às 22h17, as luzes caem. E às 22h18… — ele olhou para mim — …o destino de Matteo e Lúcia muda de dono.

Nina se ergueu, pronta para cuidar do que me cabia fora das armas: a imagem, a presença, o silêncio que corta mais fundo que facas.

NINA: — Senhora, deixo um traje que diga tudo sem dizer nada.

AMÉLIA (narrando):

Assenti. Não havia mais espaço para o que era pequeno. Em mim, algo se alinhou, como lâmina no estilete. A mansão respirou com a gente. Verona, também.

AMÉLIA: — Que escutem: amanhã a cidade pertence aos mortos que eu honro — e aos vivos que eu escolho derrubar.

E, pela primeira vez desde o cemitério, senti que a dor tinha um destino. Nome e endereço. Doca Seca C. Galpão 31.

Eu iria. E quando as luzes apagassem, não haveria dúvida sobre quem caminharia de volta para a noite.

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!