2 Entre a dor e o desejo

Eu ainda sentia o perfume das flores que invadiram a mansão, misturado ao cheiro pesado da chuva que escorria pelas janelas. Aquele quarto era o único lugar onde eu podia ser apenas eu. Não a esposa do Don, não a filha órfã, não a herdeira que todos observavam. Apenas Amélia.

Enrico fechou as cortinas, deixando apenas a penumbra e o reflexo da tempestade iluminando nossas sombras nas paredes. Ele se aproximou devagar, como se pudesse sentir cada fissura em mim.

AMÉLIA (pensamento): Eu estava quebrada, mas ele… ele sempre soube colar minhas partes do jeito mais brutal.

Quando ajoelhou-se diante de mim, seus olhos verdes encontraram os meus. Não havia consolo neles, apenas a promessa silenciosa de que me faria esquecer — nem que fosse por alguns minutos — a dor que queimava meu peito.

ENRICO: — Vieni qui, mia moglie…

Seu sotaque grave me atingiu como um golpe. Puxei o ar, mas antes que pudesse responder, ele tomou meus lábios com uma urgência que não pedia permissão. O beijo era áspero, exigente, como se arrancasse de mim toda a fragilidade que eu ainda ousava carregar.

Senti as mãos dele deslizando pelo meu corpo, rasgando lentamente o tecido do vestido preto que ainda trazia o cheiro do cemitério. O barulho do pano cedendo ecoou no quarto como um juramento de guerra.

AMÉLIA (pensamento): Ele queria me despir não só de roupas, mas de luto. Transformar dor em força.

— Enrico… — sussurrei contra sua boca, os dedos cravados em seus ombros.

Ele não respondeu. Apenas me ergueu nos braços, deitando-me na cama com a delicadeza que contrastava com a fúria em seu toque. Seus lábios desceram pelo meu pescoço, deixando rastros ardentes que se misturavam ao gosto salgado das minhas lágrimas.

ENRICO: — O mundo lá fora pode esperar. Hoje você é só minha, Amélia.

E eu me deixei levar.

Cada beijo, cada investida dele, arrancava de mim não só gemidos sufocados, mas também pedaços da dor que me consumia. O corpo respondia mesmo em luto, porque a paixão que nos unia era mais forte que qualquer cova aberta.

A cada movimento, a cada choque de pele contra pele, eu sentia minha alma sendo arrancada do abismo e empurrada de volta à vida. Não era apenas desejo. Era sobrevivência.

Quando finalmente me desfiz em seus braços, sabia que algo havia mudado. A dor ainda estava ali, latejando. Mas, ao lado dele, eu me sentia pronta para suportar o inferno.

AMÉLIA (pensamento): Ele me possuiu como se fosse guerra. E eu o recebi como se fosse redenção.

Enrico deitou-se ao meu lado, o peito arfando, os olhos ainda ardendo. Virou-se para mim e passou os dedos em meu rosto, como se quisesse gravar minha expressão naquele instante.

ENRICO: — Você é minha moglie… e juro que ninguém vai tirar você de mim.

Abracei-o forte, o coração acelerado, e pela primeira vez desde a morte dos meus pais, deixei que o sono me alcançasse.

Mas eu sabia: quando amanhecesse, a guerra começaria.

Adormeci nos braços de Enrico, sentindo o calor dele segurar as partes de mim que já estavam quebradas. A noite não foi silenciosa; os ecos da tragédia ainda me perseguiam, mas, junto deles, havia também o peso do corpo dele me lembrando que eu ainda estava viva.

Quando a manhã chegou, a cama já estava fria. Estendi a mão pelo lençol, procurando por ele, mas encontrei apenas o vazio. Enrico havia saído cedo, como sempre. Enquanto eu ainda lutava para respirar, ele já se movia para transformar dor em guerra.

Sentei-me devagar e caminhei até o banheiro. A cada passo, o espelho devolvia uma versão diferente de mim: olhos vermelhos, cabelo despenteado, a camisola colada ao corpo. Não era a mesma mulher. A filha, a herdeira, havia sido enterrada junto com meus pais.

Deixei a seda escorregar pelos ombros e entrei no box. A água quente caiu pesada sobre a minha pele, como se pudesse lavar o luto que grudava em mim. Encostei a testa contra o vidro embaçado, deixando que as lágrimas se misturassem ao vapor. Sofrer não traria meus pais de volta. Mas me reerguer… isso sim me daria a única coisa que restava: vingança.

Passei as mãos pelos cabelos encharcados, sentindo a raiva pulsar junto com meu sangue. Cada gota que caía parecia uma contagem regressiva até o momento em que eu teria Lúcia diante de mim.

Saí do banho, vesti um robe de seda preta e o amarrei firme na cintura. No espelho, meus olhos ainda carregavam o vermelho do choro, mas por trás deles havia algo novo, frio, letal. Eles não veriam uma mulher destruída. Veriam uma moglie pronta para lutar.

Sobre a penteadeira, encontrei um bilhete escrito na caligrafia firme de Enrico.

“Reunião na biblioteca. Apenas os leais. Te espero quando estiver pronta.

— E.”

Fechei os olhos por um instante, segurando o papel contra o peito. Ele sabia que eu precisava de tempo, mas também sabia que eu não ficaria para trás.

Soltei os cabelos ainda úmidos pelos ombros, respirei fundo e me encarei no espelho. Não era apenas luto que refletia de volta. Era a promessa de sangue.

Eu não recuaria.

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Comments

LEIDIMAR Alves de Jesus

LEIDIMAR Alves de Jesus

vamos Amélia vc consegue derrubar essas cobras

2025-09-07

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