O café da manhã tava frio quando o telefone tocou.
Eu tava sentada à mesa, com um bolinho de canela na mão — o mesmo que minha mãe fazia nas manhãs de domingo. O cheiro me trouxe de volta pra casa. Pra ela. Pra antes de tudo desmoronar.
— Alô? — era a voz de Romeu, rouca, apressada.
Scarlet atendeu.
— Sim, Romeu. Tá tudo pronto. Só família. Às três.
Ela desligou e me olhou.
— Hoje é o dia, Alicia.
Meu estômago embrulhou.
Hoje é o dia em que enterro minha mãe.
A roupa que Scarlet escolheu pra mim era preta, simples, elegante. Nada de rendas, nada de brilho. Só luto. Só dor.
— Você tá linda — ela disse, ajeitando o colarinho do vestido.
Eu não respondi. Só encarei o tecido como se ele tivesse culpa por tudo.
Minha mãe odiava preto. Dizia que lembrava morte.
Mas agora… agora a morte tava aqui. E eu não podia fugir dela.
Scarlet não disse nada bonito. Só me abraçou. Apertou meu ombro com força, como se quisesse dizer: eu tô aqui, e não vou soltar.
E naquele abraço, eu senti:
Hoje não é dia de palavras.
É dia de segurar a mão de alguém e rezar pra não desmoronar.
Desci as escadas devagar. Anthony tava na porta, de terno escuro, gravata preta, olhos cansados.
— Pronta? — ele perguntou.
— Nunca vou estar pronta pra isso.
Ele não disse nada. Só estendeu a mão.
E eu segurei.
Porque naquele momento, com o coração batendo como se quisesse fugir do peito…
ele era a única âncora que eu tinha.
O cemitério era pequeno. Cheio de árvores antigas, folhas secas no chão, e um silêncio tão pesado que parecia gritar.
O caixão era branco.
Minha mãe odiava branco. Dizia que era cor de ausência.
Mas agora… agora parecia certo.
Puro. Inocente. Como ela.
Fiquei parada ao lado, sem chorar. Sem falar. Só olhando.
Ela tá aí dentro.
Minha mãe tá aí dentro.
E eu não posso tirar ela de lá.
— Alicia… — Romeu se aproximou, hesitante.
— Posso ficar aqui com você?
— Você não devia estar aqui — respondi, sem olhar pra ele.
— Foi por sua causa que ela morreu.
— Eu sei — ele sussurrou. — E vou carregar isso pro resto da vida.
Fiquei em silêncio.
O vento soprou. Uma folha caiu no caixão.
— Ela nunca falou mal de você — eu disse, de repente.
— Mesmo quando eu perguntava por que você sumiu… ela só dizia: “Seu pai fez o que achou melhor.”
— Porque eu pedi pra ela mentir — ele confessou, com a voz quebrada.
— Eu tava com medo. Medo de que o Levi descobrisse que eu tinha uma filha. Medo de que ele usasse você contra mim.
— Então você nos abandonou pra nos proteger?
— Sim.
— Proteger? — ri, amarga. — Olha onde isso nos levou.
Ele abaixou a cabeça. As mãos tremiam.
— Eu não espero que me perdoe. Só… só queria estar aqui hoje. Por ela. Por você.
Olhei pra ele.
E pela primeira vez, vi:
Não era um monstro.
Era um homem quebrado.
Assim como eu.
Será que o perdão começa com um olhar?
— Fique — eu disse, baixinho.
— Mas não fique perto demais.
Ele assentiu, os olhos cheios de lágrimas que não caíram.
A cerimônia foi curta. Um padre que eu nunca vi. Flores que eu não escolhi. Palavras bonitas que não consolavam.
Quando todos foram embora, fiquei sozinha diante do túmulo.
— Mãe… — sussurrei, ajoelhando na grama úmida.
— Eu não sei o que fazer sem você aqui.
O vento parou. O mundo ficou mudo.
— Quem vai me ensinar a fazer bolo de cenoura agora?
— Quem vai me abraçar quando eu tiver pesadelo?
— Quem vai me dizer que tá tudo bem chorar?
Minhas lágrimas finalmente vieram. Quentes. Grossas. Silenciosas.
— Eu prometo… — minha voz tremeu.
— Eu prometo que não vou deixar o Levi sair impune.
Foi aí que senti.
Uma mão no meu ombro. Leve. Firme. Familiar.
— Você não tá sozinha nisso — Anthony disse, ajoelhando ao meu lado.
— Eu sei — respondi, segurando a mão dele.
— Mas a vingança… ela tem que ser minha.
— Então eu vou te ensinar a lutar. A atirar. A sobreviver.
— E se eu me perder no caminho?
— Eu te trago de volta.
Olhei nos olhos dele.
E pela primeira vez desde que minha mãe morreu…
eu acreditei que talvez, só talvez, eu conseguisse seguir em frente.
Na volta pra casa, Romeu dirigia em silêncio. Scarlet dormia no banco de trás. Anthony segurava minha mão, os dedos entrelaçados como se soubesse que eu precisava de algo pra me segurar no mundo.
— O que você vai fazer agora? — ele perguntou, baixinho.
— Quero aprender tudo. Quero saber como a máfia funciona. Quero entender o jogo.
— É perigoso.
— Minha mãe morreu por ser inocente demais. Eu não vou cometer o mesmo erro.
Ele me olhou por um longo tempo. Depois, sorriu — triste, mas real.
— Amanhã começamos.
— Sério?
— Sério. Você vai ser a mulher mais perigosa que o Levi já conheceu.
— E se eu não for forte o bastante?
— Você já é. Só não sabe ainda.
Naquela noite, não consegui dormir.
Fiquei na varanda, olhando pro céu. As estrelas pareciam mais brilhantes.
Será que você tá me vendo, mãe?
— Não vai dormir? — Anthony apareceu com dois copos de chá.
— Não consigo. Toda vez que fecho os olhos… eu vejo ela caindo.
Ele se sentou ao meu lado. Não falou nada. Só ficou ali. Presente.
— Você acha que ela me perdoaria por querer vingança? — perguntei.
— Sua mãe te amava mais que qualquer coisa. Ela queria que você fosse feliz.
— Mas como eu vou ser feliz sabendo que o monstro que matou ela tá solto?
— Então a gente não deixa ele solto.
Ficamos em silêncio por um tempo. Só o som dos grilos.
— Anthony…
— Hmm?
— Obrigada por não me deixar cair.
— Eu nunca vou deixar você cair, Alicia.
E naquele momento, com o chá quente na mão e o ombro dele encostado no meu…
eu soube que, mesmo no meio do luto, o futuro ainda podia ter luz.
Mas não era mais o futuro de uma menina.
Era o futuro de uma mulher.
De uma guerreira.
Porque hoje…
enterrei minha infância.
E com ela, enterrada na terra úmida do cemitério, ficou a última parte de mim que ainda acreditava que o mundo era bom.
O que sobrou?
Raiva.
Dor.
E uma promessa sussurrada ao vento:
— Eu volto, mãe.
E quando eu voltar…
o sangue vai lavar tudo.
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Atualizado até capítulo 24
Comments
Hitagi Senjougahara
Fiquei acordada a noite toda para terminar de ler, simplesmente viciante!
2025-08-09
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