Acordei com o gosto de sangue na boca.
Não era sangue de verdade. Era o gosto do medo que eu tinha engolido ontem à noite.
Ou talvez fosse o remédio que Scarlet me deu.
Ou talvez… fosse o começo de uma nova vida que eu não pedi, mas que me foi jogada nos braços como um bebê chorando.
Me sentei na cama devagar, as costas doendo, os olhos inchados.
O quarto era lindo. Teto alto, cortinas brancas, cheiro de lavanda.
Mas tudo parecia falso. Como se eu tivesse entrado num sonho que não era meu.
Minha mãe tá morta.
A frase voltou. Fria. Definitiva.
E com ela, a imagem: o tiro. O corpo dela caindo. O sangue se espalhando no chão de madeira como um rio vermelho.
— Não — sussurrei, apertando os olhos com as mãos.
— Por favor, não de novo.
Mas não adiantava pedir. A memória não me soltava.
Levantei. Fui até o espelho. Meu rosto tava pálido, os olhos fundos, o cabelo uma bagunça.
Parecia uma fantasma.
Será que é isso que eu sou agora?
Saí do quarto sem fazer barulho. O corredor tava silencioso, só o som do meu pé descalço no mármore frio.
Desci as escadas devagar, como se cada degrau fosse uma promessa que eu não sabia se queria cumprir.
Foi aí que o cheiro me atingiu.
Café. Pão quente. Canela.
O mesmo cheiro da casa da minha mãe nas manhãs de domingo.
Meu estômago embrulhou.
Ela não vai mais fazer café pra mim.
— Bom dia — uma voz grave me fez parar no meio da escada.
Era ele.
Anthony.
De camisa branca, manga arregaçada, segurando uma xícara fumegante.
Tinha olheiras. Parecia que não tinha dormido.
Mas os olhos… os olhos dele tava fixos em mim como se eu fosse a única coisa real no mundo.
— Bom dia — respondi, minha voz rouca de tanto chorar.
— Você devia ter descansado mais — ele disse, subindo os degraus até ficar na minha frente.
— Não consigo dormir. Toda vez que fecho os olhos… eu vejo ela.
Ele assentiu, como se entendesse.
— Eu também perdi alguém. Meu pai. Foi o Levi que matou ele.
Meu coração parou.
— Por quê?
— Por traição. Por orgulho. Por ser da máfia. — Ele deu um gole no café, os olhos distantes. — Às vezes, o sangue que a gente carrega é mais pesado que o corpo.
Ficamos em silêncio por um tempo. Só o som do vento lá fora.
— Por que você me salvou? — perguntei, olhando direto nos olhos dele.
— Você não me conhecia. Podia ter deixado eu morrer lá.
Ele me encarou por um longo segundo. Depois, disse:
— Porque quando eu te vi amarrada naquela cadeira… eu vi minha mãe.
— Sua mãe?
— Ela também foi sequestrada. Antes de eu nascer. Meu pai pagou o resgate, mas ela nunca foi a mesma. Morreu de tristeza dois anos depois.
Então é por isso que ele me salvou.
Não por heroísmo.
Por memória.
— Obrigada — sussurrei.
— Não precisa me agradecer. — Ele estendeu a xícara pra mim. — Quer café?
Aceitei. O calor da xícara nas minhas mãos me fez sentir viva de novo.
— Você tá com fome? — ele perguntou, descendo a escada comigo.
— Não sei. Meu estômago tá embrulhado.
— Coma mesmo assim. Seu corpo precisa de força.
Na cozinha, Flora tava preparando ovos e torradas.
— Bom dia, Alicia — ela disse, sorrindo. — Já deixei tudo pronto pra você.
— Obrigada, Flora.
Me sentei à mesa. Anthony se sentou ao meu lado, tão perto que eu sentia o calor do braço dele.
— Você pensa que vai pegar o Levi? — perguntei, mexendo o café sem beber.
— Vou. Ele vai pagar por tudo que fez.
— E se ele te matar?
— Então eu morro sabendo que tentei te proteger.
Minhas mãos tremeram.
Por que ele fala isso com tanta calma?
— Você não tem medo?
— Tenho. Todo dia. Mas o medo não pode mandar na gente. Senão a gente vira prisioneiro antes mesmo de ser sequestrado.
Olhei pra ele.
E pela primeira vez, eu vi:
Ele não era um monstro.
Não era um herói.
Era um homem quebrado tentando fazer a coisa certa num mundo que só ensina a matar.
— Eu quero ajudar — eu disse, firme.
— Você não precisa fazer isso.
— Preciso sim. Minha mãe morreu por causa dele. Eu não vou ficar sentada esperando você resolver tudo.
Ele me olhou por um longo tempo. Depois, sorriu — triste, mas real.
— Você é igual à sua mãe. Teimosa. Corajosa. Cheia de fogo.
— Você conhecia ela?
— Só de ouvir falar. Minha mãe e ela eram amigas. Conversavam por telefone. Até… até o dia em que tudo desmoronou.
— Depois que meu pai morreu, minha mãe se fechou. Se afastou de todo mundo. Até da sua mãe.
— Ela ficaria feliz em saber que estamos conversando.
— Com certeza. — Ele pegou minha mão por cima da mesa. Só um toque. Mas foi o suficiente pra eu sentir que, talvez…
Talvez eu não tivesse perdido tudo.
— Você tá com frio? — ele perguntou, notando que eu tava tremendo.
— Não é frio. É… tudo. É demais.
— Respira, Alicia. Só respira.
E eu respirei.
Fundo. Lento. Como se estivesse aprendendo de novo.
— Eu não sei quem eu sou agora — confessei, as lágrimas voltando.
— Minha mãe se foi. Meu pai é da máfia. E eu… eu nem sei se mereço estar viva.
— Você merece — ele disse, firme. — Mais do que qualquer pessoa que eu conheço.
— Por quê?
— Porque mesmo depois de tudo… você ainda tá aqui. Ainda tá lutando. Ainda tá perguntando “por quê” em vez de só aceitar.
Ficamos em silêncio de novo. Mas dessa vez, o silêncio não doía.
Era confortável. Como um abraço sem toque.
— Eu trabalhava em uma confeitaria — eu disse, de repente.
— Queria abrir a minha própria um dia.
— Um dia você tem que fazer um bolo pra mim — ele brincou. — Pra ver se é bom.
— Assim você me deixa sem graça.
— Sério, Alicia. Seu sonho é importante. Não deixa o ódio roubar isso de você.
— Meu mundo acabou, Anthony.
— Não. Seu mundo só tá começando de novo. Só que agora… você não tá mais sozinha.
E naquele instante, eu senti algo que eu não sentia desde que era criança:
esperança.
Foi aí que Scarlet entrou na cozinha, sorrindo.
— Que cena linda — ela disse, piscando pra mim. — Vocês dois parecem feitos um pro outro.
— Mãe — Anthony resmungou, mas tava sorrindo.
— O que foi? Uma mãe não pode sonhar com netos?
Corri os olhos pra baixo, envergonhada.
Mas Anthony apertou minha mão de leve, como se dissesse: tudo bem.
— Você vai ficar bem aqui, Alicia — Scarlet disse, servindo-se de café. — E se precisar de qualquer coisa… qualquer coisa mesmo… é só chamar.
— Obrigada — murmurei.
— Agora, coma. — Ela apontou pro prato. — Flora fez ovos mexidos com queijo, seu favorito.
— Como você sabe?
— Sua mãe me contou tudo sobre você. Até que você dormia com um ursinho chamado Bolinho.
Ri. De verdade.
E pela primeira vez desde que minha mãe morreu…
eu me senti em casa.
Mas então, no meio do café, o telefone tocou.
Flora atendeu.
— Alô? Casa dos Duarte… Ah, senhora Giovanna.
Meu corpo inteiro congelou.
Giovanna.
A secretária de Anthony.
— Ele tá ocupado — Flora disse, olhando pra Scarlet.
— Pode ligar mais tarde?
Scarlet pegou o telefone.
— Boa tarde, Giovanna. Meu filho tá ocupado com a minha futura nora.
— Futura nora? — a voz dela saiu fina, quase um chiado.
— Isso mesmo. — Scarlet sorriu, maliciosa. — E se eu fosse você, não ligava mais aqui. A menos que queira falar comigo.
Desligou.
— Essa mulher tá tramando alguma coisa — ela disse, séria. — Fiquem de olho.
Anthony franziu a testa.
— Giovanna sempre foi leal.
— Até o amor entrar no caminho — Scarlet respondeu, olhando pra mim. — E o ciúme… o ciúme transforma até anjo em cobra.
Senti um arrepio.
Será que ela tá certa?
— Não se preocupe — Anthony disse, segurando minha mão de novo. — Ninguém vai te machucar. Não enquanto eu estiver vivo.
E eu acreditei nele.
Porque naquele momento, com o sol entrando pela janela, o cheiro de café no ar e a mão dele na minha…
eu soube que, mesmo no meio do caos… o amor ainda encontrava um jeito de florescer.
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Atualizado até capítulo 24
Comments
Mariliaa vitoria
parabéns por essa história lindíssima e maravilhosa, toda essa criatividade, não pode deixar de ser aplaudida de pé. você é fenomenal. É olha que a história, ainda está, praticamente no começo 🥰❤️
2025-10-06
2
Margarete Lucas
Pelo visto sua história é exatamente como gosto!! Você não faz rodeios,vai direto ao ponto! Mal comecei e já adorando!!
2025-10-07
0
Margarete Lucas
De onde Alicia conhece a secretária do Antony para congelar ao ouvir seu nome? Ela nunca tinha ouvido falar de nenhum deles! Agora não entendi nada autora, mas talvez mais adiante eu entenda....
2025-10-07
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