Princesa de Sangue e Silêncio

O primeiro grito que dei depois que minha mãe morreu não saiu da garganta.

Saiu do osso.

Daquele lugar fundo onde a dor vira pedra e a pedra vira fogo.

Estavam me arrastando. As costas raspando no asfalto, os cotovelos sangrando, os olhos secos demais pra chorar. Eu tinha parado de respirar. Ou talvez tivesse esquecido como se fazia isso. O mundo tava em câmera lenta, mas o cheiro… o cheiro era rápido demais.

Cigarro. Suor. Gasolina. E o ferro quente da arma encostado na minha nuca.

— Anda logo, princesa — Levi riu, e o som dele me fez encolher como se eu fosse um animal encurralado. — Você não vai morrer hoje. Ainda não.

Princesa.

De novo aquela palavra. Como se eu fosse joia. Como se eu tivesse valor.

Mas eu sabia a verdade: eu era isca. Troféu. Dívida antiga.

Era o sangue do meu pai que ele queria derramar.

Só que meu pai sumiu.

Então sobrou eu.

O carro era preto, com os vidros escuros e o cheiro de couro velho. Me jogaram no banco de trás como se eu fosse lixo. Um dos capangas amarrou minhas mãos com um cordão grosso, áspero, que cortava a pele. Eu não resisti. Não chorei. Só fiquei olhando pela janela, vendo as árvores passarem como sombras.

Minha mãe tá morta.

A frase girava na minha cabeça como um disco riscado.

Minha mãe tá morta. Minha mãe tá morta. Minha mãe tá morta.

E então, uma outra voz, mais baixa, mais perigosa:

Ele vai pagar.

— Por que vocês fizeram isso? — perguntei, sem olhar pra ninguém. Minha voz tava rouca, quase um sussurro.

— Quem são vocês?

Levi, sentado na frente, virou o rosto devagar. Um sorriso torto. Um dente de ouro brilhando na escuridão.

— Você é filha do Romeu Castro, não é? — ele disse, como se estivesse lendo minha alma. — Então você já sabe quem a gente é.

Meu estômago embrulhou.

Romeu Castro.

O nome do homem que me abandonou.

O nome que minha mãe nunca falava em voz alta, só sussurrava quando pensava que eu tava dormindo.

— Ele não é meu pai — respondi, com os dentes cerrados.

— Ele nunca foi nada pra mim.

Levi riu de novo. Um som seco, sem coração.

— Ah, mas ele é. E agora… você é minha.

A mansão era maior do que qualquer coisa que eu já tinha visto. Parecia saída de um filme de terror: paredes altas, grades de ferro, luzes amarelas piscando como olhos doentes. Havia guardas em todo canto. Homens de preto, com fuzis, olhos vazios. Ninguém falava. Só o vento cortando o silêncio.

Me levaram por um corredor frio, de mármore branco manchado de algo escuro — sangue, talvez. Ou vinho. Ou as duas coisas.

Me jogaram numa sala. Pequena. Sem janelas. Só uma cadeira de metal no centro, uma lâmpada pendurada no teto e um espelho que eu sabia que era falso.

— Sente-se — ordenou o capanga.

Eu não me mexi.

— Eu disse: sente-se.

— Vai ter que me amarrar de novo — respondi, olhando direto nos olhos dele.

— Porque eu não vou ajudar vocês a me prender.

Ele bufou, mas não bateu. Só me empurrou com força. Caí na cadeira, as costas batendo no metal frio. Em segundos, minhas mãos e pés estavam amarrados com correias de couro.

Sozinha.

O silêncio era tão pesado que eu ouvia meu próprio coração batendo. Tum. Tum. Tum.

Como um relógio contando os segundos até o fim.

Minha mãe tá morta.

E eu tô viva.

Por quê?

Foi aí que a porta se abriu de novo.

Levi entrou devagar, como se tivesse todo o tempo do mundo. Trazia uma taça de vinho na mão. Usava um terno impecável, sapatos engraxados, cabelo penteado pra trás. Parecia um homem de negócios. Um cavalheiro.

Mas os olhos dele…

Os olhos dele eram de cobra.

— Você tá bonita quanto sua mãe — ele disse, parando bem na minha frente. — Mas acho que ainda posso me divertir com você.

Meu corpo inteiro congelou.

Divertir.

A palavra ecoou como um grito.

— Não encoste em mim, seu monstro! — gritei, puxando as correias com toda a força que tinha.

Ele riu, bebeu um gole de vinho e se inclinou, tão perto que senti o hálito dele no meu rosto.

— Pode gritar o quanto quiser, princesa. Ninguém vai ouvir. E se tentar escapar… — ele fez uma pausa, passando o dedo no meu queixo — as consequências não serão nada boas.

Me afastei o máximo que pude, mas não tinha pra onde correr.

— Por que você fez isso com ela? — sussurrei, com a voz trêmula. — Ela não fez nada pra você.

— Ela tava com o homem errado — ele respondeu, frio. — E você… você tá com o sangue errado nas veias.

Foi então que entendi.

Isso não era sobre mim.

Nunca foi.

Era sobre vingança.

Sobre um passado que eu nem conhecia.

Sobre um pai que fugiu… e deixou minha mãe — e eu — como alvo fácil.

Ele sabia.

Ele sabia que Romeu ia voltar.

E eu era a isca perfeita.

Horas se passaram. Ou dias. Não sei.

O tempo perdeu sentido.

Fiquei ali, amarrada, com sede, com fome, com o corpo dolorido. Mas o pior não era o físico. Era o silêncio. Era a certeza de que ninguém viria me buscar.

Quem me quer?

Minha mãe se foi.

Meu pai sumiu.

E o resto do mundo… nem sabia que eu existia.

Mas então, no meio da escuridão, uma lembrança surgiu.

Minha mãe cozinhando.

O cheiro de canela.

Ela cantando baixinho enquanto fazia bolo de cenoura.

— Um dia você vai ter sua própria confeitaria, meu amor. Vai se chamar “Doce de Minha Vida”.

Eu tinha 12 anos.

Ela ainda acreditava em futuro.

Agora, eu não sabia se acreditava em amanhã.

Mas algo dentro de mim se acendeu.

Uma faísca.

Pequena, mas quente.

Se eu sair daqui…

Vou fazer você se arrepender de ter me deixado viva, Levi.

Foi nesse momento que ouvi.

Passos.

Vozes abafadas.

Barulho de tiros.

Meu coração parou.

É o fim?

Vão me matar agora?

Mas então…

A porta se abriu com um estrondo.

E ele apareceu.

Alto. Forte. Olhos negros como a noite.

Terno rasgado. Sangue no braço. Arma na mão.

— Não se preocupe — ele disse, com uma voz grave que me fez tremer. — Estamos aqui pra te tirar daqui.

— Quem são vocês? — perguntei, com a voz trêmula.

Ele se aproximou, cortou as correias com uma faca e me ajudou a levantar. Seus dedos eram quentes. Firmes. Reais.

— Calma, moça — ele disse, olhando direto nos meus olhos. — Viemos te resgatar.

— Como posso confiar em você? — sussurrei, as pernas bambas.

Ele sorriu. Só um pouco. Mas foi o suficiente pra eu ver algo raro nele: humanidade.

— Entendo sua desconfiança — ele disse. — Mas se quisermos sair vivos daqui… vamos ter que confiar um no outro.

E então, pela primeira vez desde que minha mãe morreu…

Eu chorei.

— Obrigada — sussurrei, agarrando a manga do terno dele. — Pensei que nunca mais ia sair daqui.

Ele me abraçou por um segundo. Só um. Mas foi o suficiente pra eu sentir que, talvez…

Talvez eu não estivesse tão sozinha assim.

Do lado de fora, o mundo tava em chamas.

Tiros. Gritos. Corpos no chão.

Mas ele me protegeu. Com o corpo. Com os braços. Com cada passo.

— Meu nome é Anthony — ele disse, enquanto corríamos pelo jardim. — E você?

— Alicia — respondi, sem fôlego.

— Alicia — ele repetiu, como se estivesse guardando meu nome pra sempre. — Segura minha mão. E não solta, não importa o que aconteça.

E eu segurei.

Porque naquele momento, com o coração batendo como louco e o medo grudado na pele…

Eu soube que minha vida nunca mais seria a mesma.

E talvez…

Só talvez…

Isso não fosse tão ruim assim.

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Comments

Fainancey F_16

Fainancey F_16

Não consegui parar de ler, até terminei de madrugada.

2025-08-05

1

Mariliaa vitoria

Mariliaa vitoria

05/10/25.Conecando🥰

2025-10-06

1

Ver todos

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