A terra ainda estava úmida, e o cheiro de putrefação misturado com barro era forte o suficiente pra grudar na alma. Eu já tinha visto coisa ruim. Mas aquilo ali... era outro nível.
Um pesadelo escavado à força.
Sacos remexidos, ossos expostos, carne deformada. Partes humanas jogadas como lixo com etiquetas numéricas ainda coladas na pele. Códigos. Classificações. Propriedade de alguém.
Me ajoelhei ao lado de um dos corpos meio desenterrados. Respirei curto. Se eu deixasse o ar entrar por completo, ia vomitar.
— Isso não são só cadáveres... — murmurei. — São experimentos descartados.
— Oh, isso é um inferno. — ouvi Kai resmungar. Ele cutucou um dos sacos com a ponta da bota, e o conteúdo deslizou pra fora com um baque molhado. — Parona... se você não vier ver isso agora, eu juro que levo um pedaço desse cara pra Aru.
Eu engoli em seco.
— Kai, pelo amor de tudo, nem brinca com isso...
Ele bufou, andando em círculos. Nervoso. Fazendo piada porque não sabia o que fazer com aquele tipo de horror. A gente lidava com mortos, sim — mas não assim. Não desse jeito.
Parona, por outro lado... estava em êxtase.
— Ai, meu Deus. Ai. Olha isso. — Ela parecia criança no Natal. Com tablet na mão e brilho nos olhos, saltava entre os corpos como quem explora uma floresta mágica. — Esse aqui tem três clavículas! Três! Quem faz isso?! EU AMEI.
Ela virou um dos cadáveres como quem analisa uma escultura rara.
— Olha a fusão óssea aqui, Isa. Isso não é cirúrgico. É adaptativo. Crescimento forçado. Tentaram remodelar a estrutura inteira... mas o corpo não aguentou.
— Isso é... doentio — murmurei.
— Não discordo Isa! Mas é genial. Horrivelmente genial! — Ela deu um gritinho de entusiasmo, ativando o scanner. — Esse garoto aqui, por exemplo... tem um osso secundário tentando se fundir à base do crânio. Eles estavam tentando alterar o ponto de equilíbrio do centro nervoso. Meu Deus, isso é insano! Eles queriam refazer o eixo corporal do sistema nervoso!
— Parona, você tá feliz demais pro meio de uma fossa! — explodiu Kai, ainda em volta, ofegante, passando a mão nos cabelos como quem tenta sair de um pesadelo.
— É que é um achado, Kai! Isso aqui é ouro científico! É trágico, eu sei, mas... é um cemitério de possibilidades. De mutações reais!
Eu me levantei, limpando as mãos sujas de terra e sangue na calça. Meu coração estava acelerado. A visão turva. A adrenalina fazendo meu estômago dar voltas. Eu tentava ser racional...
— Eles foram descartados...
— Testes falhos — murmurou Parona. — Isso aqui é um cemitério de protótipos.
— Eles fizeram isso com crianças? — Kai parou, olhando ao redor, olhos arregalados. — Quem faz isso com crianças?
— Alguém com dinheiro. Equipamento. E sem alma — sussurrei, sentindo algo dentro de mim trincar. Não dava pra desver aquilo. Não dava pra desenterrar e continuar sendo a mesma pessoa depois.
Parona parou de escanear. Seus olhos perderam um pouco do brilho, só por um segundo.
— Agora a gente sabe onde estão os fracassos... mas...
Ela hesitou. Me olhou. Séria.
— Onde estão os que deram certo?
Eu encarei Kai. E ele me olhou de volta.
A resposta não estava ali. Estava solta em algum lugar. Respirando. Andando. E, talvez... matando.
Ao fundo, Maya caminhava entre os corpos com aquele silêncio calculado dela. Anotando padrões. Calculando distâncias. Mapeando o horror com precisão quase matemática.
...ΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩΩ...
Aru estava sozinha na base, cercada por cinco monitores ligados, três tablets equilibrados em posições perigosas e um balde de pipoca do tamanho de um capacete militar. A luz azulada dos dados refletia nos olhos dela, criando o brilho inquieto de quem não dorme há dois dias — e não pretende parar.
Ela alternava entre janelas com relatórios censurados, arquivos corrompidos e vídeos que exigiam paciência, coragem e algum tipo de pacto com o diabo para decodificar. O som dos ventiladores, dos cliques e da mastigação era a música de uma mente afogada em dados.
— Por que toda conspiração secreta do governo é organizada como se fosse feita por um estagiário com TDAH e sem backup?
resmungou, empurrando um dos tablets com o nariz enquanto comia com as duas mãos, como um guaxinim nerd em surto.
A porta automática se abriu com um pssst metálico — e Aru odiava esse som. Sempre parecia que a morte estava prestes a entrar.
Ela virou-se devagar. Olhos semicerrados. Mandíbulas ruminando pipoca como se fosse munição.
— Ryo... Você anda como um fantasma. Tem que parar com isso. Vai me matar do coração um dia.
Ali estava ele. Alto. Magro. Impecável. Como sempre.
Cabelos róseos quase prateados, presos atrás com descuido meticulosamente calculado. Olhos de gelo — Vestia o uniforme tático como se fosse parte do DNA. Sem vincos, sem poeira, sem permissão pra errar.
— Só vim entregar isso — disse, colocando sobre a mesa um envelope velho, dobrado com pressa. Cheirava a tempo e fungo. Parecia ter saído de um cofre da Guerra Fria.
— Que isso? Cartinha? Uma confissão? 🤭 Vai me pedir desculpas por ser tão frio?
— Um achado. No hospital abandonado. Voltei lá ontem à noite. Sozinho.
Aru engasgou com a pipoca. Tossiu, engoliu em seco e apontou com indignação.
— Sozinho?! Mas o local tá cercado! Câmeras térmicas, sensores de movimento... até drone kamikaze!
— E eu sou espionagem e infiltração, lembra? É literalmente o que eu faço. 😪
Ela jogou a cabeça pra trás com exagero, como quem queria ver o teto só pra não olhar pra ele.
— Um dia ainda vão te mandar pra uma missão de verdade. Aí sim, vai poder brincar de 007 com licença pra morrer.
Mas o papel chamou sua atenção.
...> “Projeto VASTUM — revogado sob cláusula 09-B....
...Dissolução imediata da Corporação AVEDON....
...Todos os dados arquivados. Confidencialidade permanente....
...Violação implica eliminação sumária.”...
Aru leu. Depois releu. A pipoca parou na mão.
— Avedon...? — murmurou, como se o nome tivesse peso físico. Como se doesse.
— Isso tava escondido entre os documentos apagados do caso Lux Umbra. Só vi o nome uma vez. Era como… um eco que ninguém quer ouvir.
Ryo cruzou os braços. Sério.
— Tem mais. O subsolo do hospital não aparece nos mapas. Um elevador escondido atrás da sala de ressonância magnética. Está soterrado.
— E por que não chamou a gente, cabeça de pêssego?
— Porque vocês estavam na fossa. E porque isso... ainda é pouco pra justificar uma missão oficial. Mas o que encontrei... pode ligar Avedon aos desaparecimentos. Aos corpos modificados, o hospital Ravel e o Cálix.... E Ao massacre.
Silêncio.
E dessa vez, Aru não preencheu o vazio com sarcasmo.
— E se não for só passado, Ryo...? — ela perguntou. — E se isso ainda estiver acontecendo? Agora?
Ele a olhou. Por um instante, os olhos de aço pareceram humanos. E isso doeu mais.
— Por isso quero estar dentro. Não quero assistir vocês morrerem de longe. Quero fazer parte. Com vocês.
Aru o encarou. Tensa. Um pouco vulnerável. Um pouco furiosa por sentir vulnerabilidade. E então, sorriu.
— Que bonito. Quase me convence. Mas só entra na próxima missão se trouxer mais papelzinho maldito. 😘
Ryo respondeu com o que, para ele, era quase um escândalo: um sorriso. Pequeno. Sincero.
— Tem mais vindo. Eu só comecei.
Ryo virou as costas e saiu em silêncio, como um eco que desaparece.
Aru soltou um suspiro pesado. Voltou pro monitor. Uma pipoca na boca, duas na mão.
— Idiota bonito do caralho…
...CLAC....
A porta nem terminou de abrir. Dois braços a envolveram por trás com força, mãos espalmadas direto nos seios.
—HAAHH KAI?! — ela gritou, se arqueando como se tivesse levado um choque.
— Ué, é assim que você dá boas-vindas agora? Tá tão molinha que achei que precisava de estímulo.
— Solta, seu demônio!
Ela se contorceu, vermelha até a alma, tentando se desvencilhar, mas ele segurava firme, rindo no ouvido dela.
— Sensívelzinha, hein? Um aperto e você quase salta da cadeira...
— Eu juro, vou te castrar com uma colher de plástico! — Ela girou a cabeça pra tentar morder o ombro dele.
Ele a soltou no susto, gargalhando.
— Pronto, pronto! Paz mundial. Vim só ver se minha hackerzinha favorita ainda tá viva. Mas pelo visto tá bem... tocada.
Aru pegou a primeira coisa que viu — uma caneta — e jogou nele.
Ele desviou com agilidade e piscou.
— Melhor reação do dia. Agora me atualiza. Ryo deixou outra bomba?
Ela bufou, massageando o próprio peito como se fosse vítima de um crime de guerra.
— Deixou. E daquelas que enterram no subsolo com elevador secreto. Mas antes que eu conte... encosta de novo e juro que nunca mais vê teu joystick inteiro.
— Medo... — ele disse, sorrindo. — Mas tudo bem.
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Atualizado até capítulo 22
Comments
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Não consigo parar de ler! (emoji sorridente)
2025-08-02
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