O Projeto LUX

O Projeto LUX

capítulo 1

“Por que nós?”

Essa pergunta volta pra mim mais vezes do que deveria.

Na maioria dos dias, eu ignoro — faz parte do trabalho, certo? Fingir que não sinto. Fingir que não penso.

Mas mesmo depois de anos enfiada nessa base subterrânea, treinando, matando, seguindo ordens e sendo tratada como uma peça valiosa de um quebra-cabeça doente... ela sempre volta.

A pergunta.

Como uma maldição.

Sentei na beirada da cama, os pés descalços tocando o chão gelado do quarto branco demais. Tudo ali era limpo demais. Frio demais. Programado demais. A cama perfeita. A iluminação automática. A temperatura constante.

Perfeição fabricada. Quase inumana.

O despertador apitou às 06:00. Certinho. Como sempre.

Ignorei.

Às 06:01, ouvi o som familiar da digitação frenética da Aru no corredor. Mais uma madrugada hackeando a central. Ela dizia que fazia por diversão. Eu tinha minhas dúvidas.

Levantei, prendi o cabelo roxo num coque frouxo, vesti o uniforme preto básico e saí do quarto. O corredor me engoliu — longo, cinza, cheio de portas brancas. Algumas trancadas. Algumas que, em todos esses anos, nunca vi abertas.

06:05 — Cozinha da ala norte

A base era grande, moderna, gélida... mas a cozinha tinha um certo charme de lar improvisado. Alguém — provavelmente a Maya — pendurou cartazes de anime numa das paredes. A geladeira estava cheia de ímãs coloridos e post-its com ameaças bobas tipo “NÃO TOCAR NO CHOCOLATE DA ARU” (o que, obviamente, não impedia o Kai de tocar sempre).

Aru já estava lá, como sempre, com dois monitores holográficos, um fone enfiado num ouvido e um pacote quase vazio de biscoito de morango ao lado.

— Dormiu alguma coisa? — perguntei, me encostando na bancada.

— Três horas. O suficiente pra um reboot rápido — ela respondeu, ajustando os óculos. — E você devia ver isso.

Peguei uma maçã da fruteira (cara como um carro, provavelmente) e dei uma mordida. Aru abriu um holograma em tela cheia.

Missão classificada. Código vermelho.

— “Classificação Alfa-Vermelha. Acesso restrito. Autorização nível 7.”

— Nível 7? Nem o diretor do nosso setor tem isso.

— Exato. E o curioso é que está marcada como “cancelada”… mas continuam mexendo no código por trás.

Fiquei em silêncio. Meu instinto estava gritando.

— Já contou pra alguém?

— Só pra você. Mas se quiser, eu jogo no grupo da base como evento: “missão secreta que talvez mate a gente todxs – clique para participar”.

— Muito engraçada.

A porta se escancarou com um estrondo. Kai apareceu todo amassado, descabelado, com cara de quem foi arrancado de um pesadelo.

— Que porra é esse barulho de digitação desde as cinco da manhã?

— Bom dia pra você também, solzinho — disse Aru sem desviar da tela.

Maya surgiu logo atrás dele, impecável. Duas espadas de madeira nas costas, expressão de quem já fez 200 flexões antes do café.

— Você reclamando de barulho? — ela resmungou. — Ontem você treinou com fones ouvindo death metal russo no último volume.

— Me ajuda a entrar no clima, ué — Kai rebateu, enfiando a cara na geladeira.

Observei os dois. A dupla mais letal da base. Mercenários desde a infância, programados pra matar com uma frieza assustadora. Mas ali, na cozinha... pareciam dois adolescentes cansados demais pra funcionar sem café.

Parona apareceu por último, de jaleco, tablet na mão.

— Bom dia. E antes que perguntem: sim, temos exames hoje.

— Hoje é terça. Dia de folga. Nosso contrato diz três dias livres por semana — Kai disse, como quem defende os direitos trabalhistas da base.

— O contrato também diz que vocês não podem desmontar drones só pra ver como eles funcionam. Mas adivinha? — ela encarou Maya com um sorriso torto.

— Aquilo foi um experimento de campo! — Maya protestou.

Me servi de mais café, observando aquela cena caótica. Aquilo... era minha família. No sentido mais distorcido possível.

Todos nós éramos órfãos. Criados em instalações diferentes, depois reunidos pra formar essa equipe. Os “favoritos do sistema”. Com liberdade acima do normal. Com identidades múltiplas, acesso irrestrito, dinheiro o suficiente pra desaparecer — desde que a gente nunca perguntasse demais.

Mas eu estava cheia de perguntas.

— Você vai jogar? — perguntei ao ver Aru abrir outra aba.

— Claro. Ranqueada antes da missão falsa que inventei pra quebrar o firewall deles. Um pouco de diversão na semana.

— Seu LoL ainda vai travar a rede inteira.

— Só se eu perder. Aí eu derrubo tudo de propósito.

Kai bufou.

— Nunca entendi esse jogo. Você gasta 40 minutos num mapa só pra perder porque o suporte ficou parado.

— ISSO. ISSO É O QUE ME IRRITA — Aru apontou com o biscoito. — Viu, Isa? Ele nem joga e já entendeu.

Ri.

Era nesses momentos que a gente parecia humano. Não no campo. Não nas reuniões. Mas ali — entre piadas, comida roubada e provocações. Por mais que o governo nos tratasse como ferramentas, nós éramos pessoas. E cada vez mais, eu sentia que algo não encaixava.

Lá fora, o mundo seguia ignorando tudo. Acreditando nas mentiras. E nós... nós éramos as engrenagens sujas que faziam tudo girar.

“Por que nós?”

“Por que ninguém sabe que existimos?”

“O que mais estão escondendo?”

Aru fechou o notebook.

— Ok. Entrei. A missão oculta é real. Nome do projeto: LUX. Mas não é uma missão comum... Isa, você precisa ver isso.

Ela jogou o holograma no centro da cozinha.

O arquivo era enorme. Fragmentado. Mas o pouco que dava pra ler já gelou meu sangue.

...> “Registro de desaparecimentos anormais: lactentes e crianças até 10 anos. Inconsistência em certidões de nascimento. Famílias eliminadas.”...

...> “Relatórios de corpos em fossas clandestinas. DNA incompatível com humanos. Modificações genéticas ilegais.”...

...> “Ameaça potencial: engenharia biológica fora de controle. Nível de risco: vermelho 7. Possível atuação de corporações dissidentes.”...

Me aproximei pra ver melhor. O holograma piscava — falha no sistema... ou tentativa de apagamento automático.

— Isso não é só mais uma missão — falei.

— Eu sei. Isso aqui é uma bomba — Aru respondeu.

Kai e Maya pararam. O caos virou silêncio.

— Repete isso — Maya pediu, chegando mais perto.

Aru respirou fundo.

— Encontraram fossas. Cheias de corpos. Jovens. DNA modificado. Tecnologia ilegal. O governo tá em pânico. Isso vai contra tudo que o “projeto humano padronizado” defende. A suspeita é de que alguma corporação rebelde esteja desenvolvendo super-humanos... e gente morreu no processo.

— Crianças desapareceram — completei. — Famílias sumiram.

— Isso é guerra — disse Kai.

Parona tomou o tablet da Aru, os olhos arregalados analisando os dados.

— Isso... essa sequência genética... isso não é natural. Nem as biofábricas do governo fariam isso. É... evolução forçada.

Meu estômago virou.

A vida inteira fomos treinados pra proteger a sociedade de ameaças. Hackers. Terroristas. Traidores.

Mas isso?

Isso era o próprio sistema tentando esconder que talvez… já tivesse perdido o controle.

— A missão foi criada pra investigar isso, certo? — perguntei.

— Sim — Aru assentiu. — E sabe o que mais? Cancelaram. Com a nota: “Risco extremo de exposição. Ameaça interna maior do que previsto.”

Maya franziu a testa.

— Cancelaram porque não têm como controlar. E se nem a gente serve pra isso...

— ...é porque preferem que a gente morra do que deixar rastros — completou Aru.

Kai chutou o chão, irritado.

— Querem que a gente vá... mas se der merda, vão dizer que nunca autorizaram.

Senti um nó no peito.

Por que nós?

Pensei de novo. Mas dessa vez, eu sabia a resposta.

Porque somos descartáveis.

Porque ninguém fora dessa base sabe que existimos.

Porque, pra eles...

Somos só armas.

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Comments

Anna Maria Costa

Anna Maria Costa

tô começando agora
e tô amando

2025-08-03

1

Roxana

Roxana

👏👏👏 Sensacional, adorei cada capítulo! 👏👏👏

2025-08-01

1

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