Capítulo 5 – Vozes que Não se Curvam
A casa nos arredores de Bath tornou-se, em poucos dias, mais do que um refúgio. Tornou-se quartel-general, palco, confessionário. As mulheres do Círculo das Quintas passaram a se revezar ali durante a semana, trazendo não apenas textos e composições, mas também notícias, cartas clandestinas, rumores de vigilância e, por vezes, medo.
Desde que o retrato de Lydia Ashcombe fora estampado na capa dos jornais, a cidade parecia uma partitura em crescente tensão. Os nomes da aristocracia cochichavam o dela em reuniões discretas, e algumas mães tiraram as filhas dos círculos de leitura ou das aulas de piano — como se a música agora carregasse veneno.
Lydia lia cada jornal com um misto de orgulho e receio. Mas em momento algum duvidou de sua escolha.
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Uma tarde, Helena entrou no sótão com uma carta na mão. O rosto estava pálido, os olhos baixos.
— Veio de Londres — disse. — É da sua mãe.
Lydia pegou o envelope com as mãos geladas. O selo da família Ashcombe permanecia intacto, como se tentasse manter a autoridade mesmo depois de tudo.
Abriu devagar, sentindo a garganta secar.
> Lydia,
Você destruiu tudo o que construímos. Seu pai foi ridicularizado no Parlamento. As senhoras do nosso círculo social me voltaram o rosto. Até sua irmã foi dispensada de um possível noivado por conta de seus atos.
*Não posso obrigá-la a voltar. Mas saiba que aqui, sua ausência tornou-se irreversível.
Escolheu o mundo. Que o mundo a acolha.
Lady Ashcombe*
Lydia permaneceu em silêncio por um tempo que pareceu não ter fim. E, finalmente, disse:
— Ela tem razão. Eu escolhi o mundo.
— E o mundo é vasto demais para ser contido num salão de chá — disse Helena, sentando-se ao seu lado.
Lydia apoiou a cabeça no ombro dela.
— Minha irmã não tem culpa. Nenhuma delas tem. Só nasceram dentro de uma música que nunca puderam mudar.
Helena envolveu-a com um braço.
— Você está mudando a música, Lydia. Cada nota. Cada compasso.
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Na semana seguinte, Elias voltou à casa com novidades.
— Há reuniões acontecendo em outras cidades — disse ele. — Oxford, Bristol, até mesmo partes de Londres. Mulheres estão tocando suas composições em segredo, usando seus versos, suas ideias. A melodia se espalhou.
— E os riscos também — alertou Helena.
— Sim — assentiu Elias. — Mas é tarde demais para contê-la. A arte não tem fronteiras quando encontra quem a carregue.
Lydia sentiu o coração apertar.
— Então precisamos fazer mais. Escrever mais. Cantar mais alto.
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Foi quando propuseram o que ficou conhecido entre elas como Concerto do Silêncio. Uma apresentação clandestina, sem nomes, sem ingressos, num velho teatro abandonado na parte leste de Bath.
A ideia era ousada: reunir compositoras, poetisas e artistas para uma noite secreta de apresentação — onde cada uma teria voz, onde todas seriam ouvidas. As partituras seriam entregues aos músicos sem autoria, os textos lidos por atrizes anônimas. A mensagem? A arte feminina não depende de permissão.
Nos dias seguintes, a preparação consumiu as horas. Helena selecionava os textos, Elias recrutava os músicos e cuidava da segurança. Lydia, trancada no sótão, compunha a peça central da noite: uma sinfonia dividida em três movimentos, intitulada “Rebeldia, Retorno e Renascimento”.
A obra misturava estilos, vozes e instrumentos pouco usuais. Havia trechos inspirados em lamentos populares, harmonias baseadas nos cantos das lavadeiras e interlúdios que evocavam o som dos sinos das igrejas silenciadas por conveniência.
— Você está escrevendo uma revolução inteira em quatro andamentos — comentou Helena, ao ouvir parte da obra.
— Não estou escrevendo uma revolução — respondeu Lydia. — Estou registrando a que já começou.
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A noite do concerto chegou envolta em tensão e esperança. As mulheres chegaram aos poucos, encapuzadas, pelos fundos do teatro. Homens também estavam ali — poucos, mas determinados. O salão estava escuro, os bancos cobertos de pó. Mas havia algo sagrado naquele espaço esquecido: uma promessa de voz.
A apresentação começou com poesia.
Versos sobre corpos aprisionados por espartilhos de silêncio, sobre cartas de amor que jamais foram postas, sobre beijos entre moças escondidos nos jardins dos fundos.
Depois vieram as melodias.
Cada nota parecia arrancada da própria garganta da história — notas que gritavam, que tremiam, que dançavam com fúria.
E então, finalmente, a sinfonia de Lydia.
Quando os primeiros acordes começaram, o silêncio se espalhou como véu sobre as cadeiras.
Era música escrita com raiva e ternura. Com desejo e dor. Cada nota parecia carregar o peso de séculos. E, no entanto, havia esperança. Na transição entre os movimentos, uma harmonia se erguia como um sol depois da guerra.
Ao fim, ninguém aplaudiu.
Não por falta de vontade. Mas porque o silêncio era a única resposta possível para algo tão visceral.
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Depois, enquanto todas se dispersavam discretamente, Lydia ficou sentada na beira do palco com Helena e Elias.
— Eles virão atrás de nós — disse ele, com tom resignado.
— Então que nos encontrem juntas — respondeu Helena, olhando para Lydia. — E que nos escutem.
Lydia olhou para o teatro vazio, ainda impregnado de música.
— Esta noite provou algo — disse. — Que não estou mais sozinha. Que não estamos.
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E quando voltaram para a casa, havia uma nova carta esperando por ela.
Sem remetente. Sem selo. Apenas uma folha.
> Senhorita L. A.,
Sua melodia chegou até mim. Tocou algo que havia muito fora calado.
Não sou nobre, nem poeta, nem mesmo musicista. Mas sou mulher. E ouvi você.
Seja qual for o próximo passo, não pare. Não silencie.
Estamos cantando com você.
Assinadas,
As 47 vozes de Londres
Lydia apertou o papel contra o peito.
Ali, sozinha no quarto escuro, ela soube: sua melodia já não era só dela. Era um coro.
E aquele era apenas o início.
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Atualizado até capítulo 46
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