O Nome que Não se Diz

Capítulo 2 – O Nome que Não se Diz

Na manhã seguinte, Lydia acordou com o som da chuva batendo suave na vidraça da janela. Bath parecia ainda mais pálida sob a névoa fria, e ela, envolta por cobertas finas e o cheiro de tinta fresca da partitura que deixara aberta sobre a escrivaninha, teve a estranha sensação de que algo já havia mudado — embora não soubesse exatamente o quê.

Sua canção, escrita durante a madrugada, chamava-se “A Janela Quebrada”. A melodia começava com três notas suaves, como passos hesitantes, depois explodia em um arranjo que lembrava vozes se sobrepondo, como um coro desorganizado, rebelde, exigindo escuta. Era diferente de tudo o que compusera antes.

Ela transcreveu a partitura com capricho, usando sua caligrafia mais firme, e colocou o manuscrito dentro de um envelope pardo. No canto, escreveu em letras miúdas:

> Para o Sr. E.

Caixa 17 – Bath Central.

Na tarde daquele mesmo dia, enfrentou a garoa, caminhou até a agência de correios e depositou o envelope com mãos geladas. O funcionário não ergueu os olhos. Apenas carimbou e a mandou embora.

No caminho de volta, Lydia sentiu o coração bater de um jeito que só acontecia em dois momentos da vida: quando alguém que você ama toca sua pele... ou quando você desafia o mundo.

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No círculo daquela semana, a livraria estava mais cheia do que o habitual. Novas mulheres, rostos jovens e velhos, conversas agitadas — havia algo no ar. Helena apareceu atrasada, o vestido escuro molhado de chuva, os cabelos soltos como raramente estavam.

— Recebi uma carta do continente — anunciou, tirando do casaco um jornal amassado. — Uma mulher alemã, Lydia Von Meck, criou um manifesto chamado “A Voz Escondida”. Está se espalhando pela Europa como pólvora. Diz que a arte não precisa de permissão. Que o mundo silencia as mulheres ao mesmo tempo em que rouba suas ideias.

Algumas das presentes aplaudiram. Outras franziram a testa.

— E o que faremos com isso? — perguntou uma jovem com sardas que sempre trazia poemas em papel azul.

Helena virou-se lentamente para Lydia.

— Talvez estejamos finalmente prontas para responder.

Lydia engoliu em seco.

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Mais tarde, sozinha no quarto, Lydia abriu uma pequena caixa onde guardava cartas antigas. Havia recortes de partituras, bilhetes da infância, críticas de jornais. No fundo da caixa, um único bilhete manuscrito por sua avó:

> “Se quiser existir, minha menina, escreva com os dois punhos. Um para o piano. Outro para a espada.”

Ela pensou na avó o tempo todo enquanto esperava a resposta do misterioso “Sr. E.”. Os dias passaram. As aulas de composição no conservatório local começaram. Ela ensaiava para pequenas apresentações, às vezes para salões modestos, às vezes para ninguém além das paredes do quarto.

Na quinta-feira seguinte, uma carta finalmente chegou.

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> Senhorita Ashcombe,

A Janela Quebrada chegou até mim como uma tempestade — e eu gostei de me molhar.

Você compõe como quem protesta. Como quem tem o dom e a ferida.

Estou publicando sua melodia em nossa próxima edição.

Sem nome. Por enquanto.

Mas se desejar continuar, há espaço para mais.

Cuidado com os muros.

Assinado,

E.

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Na semana seguinte, uma cópia da revista clandestina chamada “O Compasso Clandestino” foi deixada debaixo da porta da livraria. Mr. Eastwick, que sempre fingia não ver nada, deu de ombros.

— Encontrou isso aqui. Deve ser importante.

Lydia pegou o jornal com mãos trêmulas. Sua composição estava lá — página cinco, sob o título “Melodia Rebelde nº 1”. Sem nome. Mas com todas as suas notas. A partitura completa. E um pequeno texto de abertura escrito por “E.”:

> Ela escreve como quem abre janelas trancadas por séculos. Seu piano não obedece — resiste. E por isso, talvez, ela nos devolva o som da liberdade.

Lydia não sabia se ria ou chorava. Em vez disso, fechou a porta do quarto e tocou sua música pela primeira vez em voz alta, sabendo que não era mais só dela.

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Helena apareceu naquela noite, tarde, sem avisar.

— Ouvi rumores — disse, encostando-se ao batente da porta do quarto, o corpo meio escondido pelas sombras do corredor. — Uma música anônima publicada por alguém que só assina como “E.”. Uma melodia que parece... feminina demais para ser de um homem. Ousada demais para ser de uma moça bem-educada.

— Você sempre ouve os boatos certos?

Helena adentrou o quarto e parou diante do piano.

— Não. Mas reconheço o som da rebeldia quando o escuto.

Lydia virou-se devagar.

— Tem medo?

— Só de não ouvir mais.

As palavras pairaram entre as duas por um instante.

— Posso tocar algo? — perguntou Lydia.

Helena apenas assentiu.

A música que Lydia escolheu era uma variação suave de A Janela Quebrada. A melodia dançava com delicadeza, como um convite sussurrado. Quando terminou, virou-se — e encontrou Helena com os olhos úmidos.

— Sabe o que isso é?

— Música?

— É uma arma. E um espelho. As duas coisas ao mesmo tempo.

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Nos dias que seguiram, Lydia e Helena tornaram-se inseparáveis. Caminhavam por Bath como sombras da mesma chama. Compartilhavam versos, melodias, silêncios que diziam mais do que palavras.

Havia, entre elas, algo que crescia devagar. Nem romance, nem amizade — ou talvez tudo isso junto, como uma nota suspensa que ainda não sabia para onde cair.

Lydia escreveu três novas composições. Cada uma mais ousada. Mais política. Mais feminina. E cada uma enviada ao Sr. E. sem assinatura.

As publicações começaram a atrair atenção.

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— Há rumores de que os Ashcombe estão procurando você — disse Helena, certa noite.

— Que procurem. Não vão me encontrar na mulher que conheciam.

— E se encontrarem?

Lydia sorriu, encarando o reflexo da própria imagem na vidraça escura.

— Vão perceber que já sou música demais para caber em silêncio.

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Em meados de maio, uma nova carta chegou. Desta vez, mais curta.

> Senhorita Ashcombe,

Sua última melodia incendiou mais do que o esperado.

Um encontro seria... prudente.

Amanhã. Praça dos Cisnes. Ao entardecer.

Assinado,

E.

Lydia leu e releu. Seu coração galopava como cavalo solto. Por dias, escrevera para um nome. Agora, esse nome tinha corpo? Voz?

E o que ela diria a Helena?

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Na manhã do encontro, o tempo estava fechado. Nuvens pesadas rondavam os telhados de Bath, e Lydia não sabia se temia mais a chuva... ou a revelação.

Vestiu-se de forma simples. Um vestido lilás, sem joias. Prendeu os cabelos e caminhou com passos firmes até a Praça dos Cisnes.

Sentou-se num dos bancos de pedra e esperou.

Quando ouviu passos atrás de si, virou-se devagar.

O homem que parou diante dela era jovem — talvez pouco mais velho que ela — de cabelos escuros, barba por fazer e olhos carregados de silêncio. Usava um casaco simples, um caderno sob o braço.

— Senhorita Ashcombe?

— Sr. E.?

Ele sentou-se.

— Esperava alguém mais velho?

— Esperava alguém menos humano.

Ele riu, com doçura.

— E eu esperava alguém menos corajosa.

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Conversaram por quase uma hora. Ele era editor de uma tipografia clandestina, apaixonado por música e versos, e já havia publicado poetas exilados da França. Chamava-se Elias Moore, mas preferia manter o pseudônimo até que fosse seguro revelar mais.

— Suas melodias fazem o que meus textos não conseguem — disse ele. — Elas atravessam. E ninguém pode queimá-las em praça pública como fazem com panfletos.

Lydia olhou para ele, e por um instante, viu não um aliado, mas um espelho.

— Acha que uma canção pode mudar o mundo?

— Não — respondeu Elias. — Mas pode mudar quem escuta. E isso muda tudo.

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Ao voltar para casa naquela noite, encontrou Helena sentada nos degraus da livraria.

— Foi vê-lo, não foi?

Lydia assentiu. Não mentiria. Não conseguiria.

— E o que viu?

Lydia sentou-se ao lado dela. Os ombros se tocando, o mundo ao redor silencioso.

— Alguém que me ouve. Como você faz. Mas de outro jeito.

Helena respirou fundo.

— Não sou ciumenta, Lydia. Mas tenho medo.

— Medo de quê?

— De que sua música seja grande demais para nós duas.

Lydia a encarou, e pela primeira vez, tomou a mão dela nas suas.

— Não quero escolher entre o que me faz inteira. Nem entre você... e o mundo que estou descobrindo.

— E acha que isso é possível?

— Não sei.

Helena sorriu, com os olhos marejados.

— Mas se for... escreva uma canção para isso.

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