Dissonâncias

Capítulo 3 – Dissonâncias

Na manhã seguinte ao encontro com Elias, Lydia acordou com a sensação de que havia algo novo sob sua pele — algo que não era exatamente paixão, mas também não era simples curiosidade. Era como se uma nova nota tivesse sido acrescentada à escala da sua vida — e agora tudo soava diferente.

Ela desceu cedo, atravessando a livraria ainda fechada, e entrou na sala dos fundos onde o Círculo das Quintas às vezes se reunia informalmente. Helena estava ali, sentada à mesa, tomando chá e rabiscando versos em um pequeno caderno de capa azul.

— Dormiu bem? — perguntou Helena, sem levantar os olhos.

Lydia hesitou antes de responder.

— Sim. Mas a cabeça não silenciava.

— A música não deixa — Helena disse, com um meio sorriso. — Nem os segredos.

Lydia sentou-se do outro lado da mesa. O silêncio entre elas era menos incômodo que o de antes. Era carregado, cheio de coisas não ditas. Palavras pendendo no ar como notas que ainda não caíram.

— Fale-me sobre Elias — disse Helena, de repente.

Lydia respirou fundo. Não queria esconder, mas também não sabia o quanto era seguro compartilhar.

— Ele é... atento. Escuta de verdade. Não parece interessado em domar nada, nem ninguém.

Helena fechou o caderno.

— E você acha que pode confiar?

— Confiança é uma composição lenta. Mas gosto do tom inicial.

Helena soltou uma risada breve, amarga.

— Você está virando poeta.

— Ou talvez eu esteja apenas aprendendo a nomear o que sempre senti.

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Naquela mesma tarde, Lydia voltou ao seu quarto e encontrou outro envelope pardo escorregando por debaixo da porta. Desta vez, o conteúdo era mais que uma carta — era uma edição especial de “O Compasso Clandestino”, agora com uma matéria de abertura escrita por Elias.

> *A música da senhorita L. A. já não é só melodia. É um chamado. Ecoa nos becos e nas salas de chá. Alguns a escutam em segredo. Outros a proíbem em público. Mas todos a reconhecem.

Que venham mais janelas quebradas.*

Abaixo, sua segunda composição — “Noturno para Vozes Caladas” — ocupava duas páginas, com comentários à margem de outras artistas anônimas.

Lydia se sentiu ao mesmo tempo eufórica e exposta. Ela sabia que começava a se tornar um nome... mesmo sem nome algum.

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Na quinta-feira seguinte, o Círculo estava mais cheio que nunca. Havia sussurros de que as autoridades estavam investigando a circulação da revista, que uma cópia havia sido queimada publicamente por um magistrado local. Algumas mulheres estavam assustadas, outras exaltadas.

— Isso é o começo de uma repressão — disse Maureen, a costureira pintora. — Estão nos ouvindo. E estão com medo.

Helena tomou a palavra.

— De agora em diante, seremos mais cuidadosas. Os textos serão assinados com iniciais. As partituras, enviadas por terceiros. Nenhuma de nós deve ser pega com o original.

Lydia ouviu tudo em silêncio, mas por dentro algo crescia: uma urgência que não era medo, mas necessidade. De dizer. De gritar com beleza.

— Não podemos recuar — disse, erguendo a voz. — A arte precisa continuar. Quanto mais nos calarem, mais devemos compor. Escrever. Publicar.

Houve um murmúrio de aprovação.

Mas Helena a encarou com um olhar que misturava admiração e preocupação.

— Coragem sem estratégia vira martírio.

— Então sejamos corajosas com método — respondeu Lydia, sem vacilar.

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Nos dias seguintes, Lydia escreveu a sua terceira composição. A mais ambiciosa até então: uma suíte dividida em quatro movimentos, cada um inspirado por uma das mulheres do Círculo. Intitulou a obra “As Quatro Vozes de Bath”.

Enviou o manuscrito numa madrugada chuvosa, escondendo-o dentro de um livro velho de poesia, deixado na caixa combinada na praça dos cisnes.

E, ao fazê-lo, sentiu algo que não esperava: medo real.

Não pelo que poderiam fazer com ela, mas pelo que poderia acontecer com as outras, com Helena... com o próprio círculo.

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Dois dias depois, ela foi convocada para uma apresentação privada no conservatório. Uma senhora aristocrata queria ouvir novos talentos e, embora Lydia não fosse oficialmente aceita como “apresentável” após sua saída de Londres, a fama de suas composições começava a atravessar as paredes da rebelião.

Lydia relutou, mas aceitou. Ser ouvida em público poderia ser útil. Poderia ser uma ponte.

Helena a ajudou a escolher o vestido.

— Está linda — disse ela, amarrando a fita atrás do pescoço de Lydia.

— E está assustada?

— Com você? Sempre.

As duas riram. E, por um instante, os olhos de Helena ficaram presos aos de Lydia com uma ternura que queimava.

— Se eu não voltar... — Lydia começou a dizer, mas Helena a interrompeu.

— Voltará. Com mais histórias. E, se não voltar, eu mesma vou buscá-la.

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O salão era pequeno, mas o piano era de primeira linha. Lydia sentou-se sob os olhares de senhores entediados e senhoras perfumadas.

Escolheu não tocar nenhuma das obras publicadas no “Compasso”.

Ao invés disso, criou uma improvisação a partir das melodias da sua suíte rebelde — disfarçada, transformada, mas ainda reconhecível para quem soubesse ouvir.

Enquanto tocava, percebeu um homem de cabelos grisalhos anotar algo. Outro sussurrava ao ouvido da senhora sentada ao centro. Ela mesma — a dama que financiava artistas jovens — observava Lydia com um olhar curioso, mas impenetrável.

Quando terminou, o salão ficou em silêncio por um instante.

E então, aplausos.

Não entusiasmados, mas educados. Como se dissessem: “Muito bem. Para alguém como você.”

Lydia deixou o piano e caminhou até os bastidores. Lá, encontrou Elias — à paisana, encostado na parede.

— Está me seguindo?

— Estava curioso. Queria ver como soava o piano da rebelião entre poltronas estofadas.

— E?

— Ainda mais perigoso do que imaginei.

Ela sorriu.

— Posso pedir uma coisa?

— Qualquer coisa.

— Publique “As Quatro Vozes” com nome.

Elias arqueou a sobrancelha.

— Nome verdadeiro?

— Iniciais. L. A.

— Está pronta para isso?

— Estou pronta para ser escutada com responsabilidade. Se me perseguirem, ao menos saberei por quê.

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Quando voltou à livraria, encontrou Helena esperando por ela, o semblante sério.

— Você tocou “nós” para “eles” — disse, sem raiva, mas com firmeza.

— Toquei uma versão de nós. E publiquei a suíte com minhas iniciais.

Helena assentiu, em silêncio.

— Está com raiva?

— Estou... dividida.

— Por quê?

— Porque admiro sua coragem. E temo sua ausência. Se caírem sobre você, cairão sobre todas nós.

Lydia deu um passo à frente.

— Se nos atacarem, é porque estamos fazendo algo certo.

— Ou algo perigoso demais, cedo demais.

— E você? Está comigo?

Helena a olhou demoradamente. Então, tocou o rosto dela com os dedos.

— Sempre estive. Mas não quero ser sua prisão.

Lydia segurou a mão dela.

— Você não é cela. É canção.

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Na manhã seguinte, a cidade acordou com cartazes espalhados pelas paredes de Bath:

> "Procurada: Autora anônima de composições subversivas. Qualquer informação será recompensada."

Não havia imagem. Nem nome.

Mas Lydia sabia que o som da liberdade agora tinha rosto.

E o mundo começava, finalmente, a escutá-la.

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