Capítulo 4 – Ecos do Passado
As ruas de Bath estavam inquietas naquela manhã, e não apenas por causa da neblina espessa que se agarrava aos telhados e empanava os vidros das carruagens. Havia uma tensão nova no ar — e Lydia podia senti-la como quem sente a afinação imperfeita de uma corda de violino.
Quando desceu para a livraria, encontrou Mr. Eastwick com uma edição do The Morning Register tremendo entre as mãos.
— Veja isto — disse ele, estendendo-lhe o jornal.
A manchete em letras grandes, afiadas como navalhas, dizia:
> “Compositora subversiva instiga rebelião entre jovens senhoras de Bath”
Abaixo, um trecho do editorial:
> Circulam nas ruas de Bath composições ousadas, com melodias que distorcem valores tradicionais e inflamam o espírito feminino com ideias de igualdade e revolta. A autora, escondida sob as iniciais ‘L. A.’, utiliza-se de partituras para incitar a desobediência e corromper os costumes da sociedade inglesa. As autoridades investigam a identidade da musicista. Sabe-se que frequenta grupos não oficiais e eventos clandestinos em livrarias obscuras.
Lydia sentiu o estômago revirar.
— Eles estão nos descrevendo como criminosas — sussurrou.
— E estão com medo — murmurou Mr. Eastwick. — Que bom sinal.
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O Círculo das Quintas se reuniu naquela mesma noite, mas em outro local. Helena, prevendo represálias, organizara o encontro numa estufa desativada nos fundos da residência de uma poetisa aposentada.
O ambiente estava tomado pelo cheiro de terra molhada e lavanda, e a luz suave das lamparinas refletia nos vidros embaçados, criando sombras inquietas.
— Precisamos repensar nossos passos — disse Helena, olhando para todas com a autoridade calma de quem liderava há muito tempo. — Não recuar. Mas reorganizar. As publicações precisam ser mais seguras. Os nomes, protegidos. A música de Lydia está agora sob o foco da cidade inteira.
— E isso não é motivo de orgulho? — perguntou Maureen.
— É motivo de atenção — respondeu Lydia, antes que Helena o fizesse. — Orgulho e cuidado não são opostos. São parceiros.
Algumas mulheres assentiram. Outras pareciam nervosas.
Foi então que Helena olhou para Lydia, e algo em seu semblante estava diferente. Não raiva. Mas uma tristeza silenciosa.
— Podemos nos esconder — disse Helena —, mas a arte dela já voou. E não há gaiola para música liberta.
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Ao voltar para a livraria naquela noite, Lydia encontrou uma carta deixada entre as páginas do livro de poesias que sempre deixava ao lado da cama.
A caligrafia era familiar. Elegante. Rígida.
> Lydia,
Espero que esta carta a encontre em paz, embora duvide que viva assim agora.
Li sobre você nos jornais. E por mais que me doa a forma como se expôs, não consigo evitar a admiração. Ousadia sempre foi sua virtude e seu risco.
Gostaria de vê-la. Estou em Bath por uns dias. Enviarei um bilhete com o local e a hora.
Sinceramente,
Frederick Altham
Lydia deixou a carta cair sobre o lençol. O nome era uma ferida antiga.
Frederick.
Seu primeiro amor. O homem que seus pais escolheram para ela — e que ela abandonara antes mesmo de aceitar o pedido oficial.
Eles haviam se conhecido em Londres, quando Lydia ainda era a filha obediente de Lorde Ashcombe. Frederick era gentil, elegante, bem-nascido — e absolutamente alheio à existência real de Lydia. Amava a imagem que ela representava. A pianista refinada. A dama em formação.
Mas nunca ouvira uma de suas composições. Nunca lhe perguntara sobre os sonhos.
Agora, ele estava em Bath.
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No bilhete seguinte, a hora e o local estavam definidos: Jardins de Sydney, às dez da manhã.
Lydia foi. Não por nostalgia. Mas porque precisava saber — se ele era o passado ou uma sombra ainda presente.
O encontrou ao lado de uma fonte, usando um sobretudo cinza e luvas de couro. Estava mais envelhecido, os traços um pouco mais marcados. Mas os olhos eram os mesmos: atentos, calculistas, gentis demais para parecerem sinceros.
— Lydia — disse ele, com um leve sorriso. — Está ainda mais brilhante do que eu lembrava.
— E você ainda fala como quem lê seus próprios elogios no espelho.
Ele riu.
— Vejo que sua língua continua afiada.
— E afiada ela continuará.
Houve um momento de silêncio. Frederick a estudava.
— A música... os textos... é tudo mesmo obra sua?
— Você esperava que eu apenas tocasse para chá da tarde?
— Eu esperava que você fosse feliz.
— A liberdade é o que me faz feliz, Frederick. E ela não cabe em salões entorpecidos por convenções.
Ele suspirou, apertando as luvas.
— Eles estão atrás de você, Lydia. Os jornais. As autoridades. Meus pais... seu pai... todos falam de você como uma ameaça.
— Então estou no caminho certo.
— Volte para Londres comigo — disse ele, de repente. — Podemos encontrar uma solução. Tenho influência. Posso protegê-la.
Lydia o encarou como se ele fosse uma partitura muito antiga e desafinada.
— A proteção que me oferece é prisão disfarçada. E minha música não pede desculpas.
Ela se virou para ir embora, mas antes de partir, acrescentou:
— Obrigada por lembrar de mim. Mas agora, eu lembro de mim mesma.
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Ao retornar, encontrou Helena à porta da livraria, olhando para a rua como quem procura fantasmas.
— Vi você com ele — disse ela.
Lydia não fingiu surpresa.
— Precisava ver por mim mesma. Saber o que ainda existia ali.
— E descobriu?
— Que ele não me vê. Só vê a versão que quer de mim. E essa já não vive mais.
Helena assentiu, mas sua expressão continuava distante.
— A cidade está fervendo. As senhoras da alta sociedade estão proibindo as filhas de tocarem suas músicas. Cartas estão sendo interceptadas. Elias mandou avisar: precisamos sair da livraria por uns dias.
— Sair?
— Temporariamente. Ele encontrou uma casa nos arredores. Um lugar seguro para continuar os encontros. E para você... compor sem ser ouvida pelos ouvidos errados.
— E você?
— Eu irei com você. Se quiser.
Lydia pegou a mão de Helena.
— Quero. Mas só se for como parceira. Não como vigilante.
— Não vim para vigiá-la, Lydia. Vim para acompanhá-la. E, talvez, para aprender a viver como você: sem medo de desafinar.
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A casa nos arredores de Bath era modesta, cercada por campos e árvores retorcidas pelo vento. Havia uma lareira, uma pequena sala de ensaio e um sótão onde Lydia instalou seu piano.
Ali, longe dos olhares, ela compôs com uma fúria serena. Como se cada nota fosse uma carta de liberdade. Cada silêncio, um protesto.
Helena escrevia ao seu lado. Versos que falavam de amor sem gênero, de corpos que dançavam longe das regras da sociedade.
E, entre uma composição e outra, uma troca de olhares. Um toque de dedos. Uma confissão sussurrada.
— Você me faz querer ser quem sou — disse Lydia, certa noite.
— E você me faz esquecer que algum dia tive medo disso — respondeu Helena.
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Mas a calma não duraria.
Na manhã seguinte, uma carroça parou diante da casa. Elias desceu dela, pálido, ofegante.
— Estão fechando a livraria — disse, sem rodeios. — Mr. Eastwick foi interrogado. Interceptaram cópias da última edição. Querem prender a autora.
— Então me entreguem — disse Lydia.
— Não! — disseram Helena e Elias ao mesmo tempo.
— Se me entregarem, talvez parem.
— Você ainda acredita que ceder fará os lobos irem embora? — disse Helena, com raiva. — Eles não querem parar a melodia, Lydia. Querem que ela nunca tenha existido.
E então, Elias tirou um novo jornal da bolsa.
A manchete agora dizia:
> “L. A. identificada: filha de Lorde Ashcombe é a mente por trás das músicas da insubordinação feminina.”
Abaixo, um retrato ilustrado. A semelhança era inegável.
Lydia caiu sentada.
— Agora não é mais apenas música. É política. É pessoal.
Helena se ajoelhou à frente dela.
— E agora, mais do que nunca... precisamos cantar.
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Atualizado até capítulo 46
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