A Melodia da Rebeldia
Capítulo 1 – A Porta Fechada e a Janela Aberta
O silêncio no salão dos Ashcombe era tão denso que Lydia podia ouvir o leve tilintar da colher de chá contra a xícara que sua mãe apertava com força entre os dedos. Os olhos da baronesa estavam cravados nela como se pudessem alterar a realidade pela força da indignação.
— Você quer o quê?
Lydia respirou fundo. Não porque tivesse medo — isso ela perdera no dia em que percebeu que sua vida, até ali, havia sido moldada com mãos alheias. Mas porque era preciso coragem para dizer certas coisas em voz alta, mesmo que o coração já as tivesse decidido há muito tempo.
— Quero ir para Bath. Sozinha. — Suas mãos estavam firmes sobre o colo, o que era surpreendente até para ela. — Aluguei um quarto. Tenho meus instrumentos. E pretendo trabalhar como compositora. Escrever músicas. Viver do que amo.
O silêncio que se seguiu foi diferente. Denso. Perigoso. Seu pai, lorde Edgar Ashcombe, ergueu uma sobrancelha com a lentidão de quem não acreditava no que ouvira.
— Isso é absurdo — murmurou ele. — Uma jovem da sua posição... compondo para viver? Em Bath? Sozinha?
— Não sou mais uma criança — disse Lydia, com voz controlada. — Tenho vinte e quatro anos. E já recusei três propostas de casamento que me transformariam em ornamento de salão. Eu quero algo real. Algo meu.
Lady Ashcombe pousou a xícara, finalmente.
— Real, minha filha, é a segurança que um bom casamento traz. É o respeito de uma casa. A estabilidade do nome da família.
— O nome da família não compôs nenhuma das canções que me tiraram o sono.
As palavras caíram como pedra em lagoa tranquila. Lorde Ashcombe levantou-se com um suspiro exasperado.
— Se sair por aquela porta, não espere aprovação. Nem apoio.
Lydia o encarou. E então se levantou.
— Eu não preciso de aprovação. Preciso de espaço.
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Dois dias depois, Lydia atravessava os portões de Bath sob o céu cinzento da primavera inglesa. A cidade parecia um livro de arquitetura neoclássica em páginas vivas: colunas imponentes, casas de pedra dourada, avenidas curvas que abraçavam as colinas como braços de estátua.
Ela respirou fundo ao descer da carruagem, a valise firme em mãos, o chapéu ligeiramente torto pelo vento. Nada nela dizia que era filha de um lorde — exceto talvez os olhos que analisavam o mundo com uma mistura de orgulho e ironia.
Seu quarto alugado era sobre uma pequena livraria chamada “O Corvo de Inverno”, localizada numa travessa discreta perto da Pulteney Bridge. O proprietário, um senhor de sobrancelhas espessas chamado Mr. Eastwick, mal levantou os olhos do balcão quando ela chegou.
— Terceiro andar. Cama de madeira, chaleira funcional, janela com vista para as costas da capela. Se não se importar com os sinos de domingo, será feliz.
Lydia sorriu.
— Os sinos são melhores que o silêncio da conveniência.
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Nos primeiros dias, escreveu como se estivesse faminta. O pequeno piano portátil que trouxera de Londres logo ficou rodeado de partituras. As noites eram longas, mas plenas. Pela primeira vez, ela ouvia sua própria voz sem o eco da aprovação dos outros.
Foi numa dessas tardes em que descia para comprar papel novo que conheceu Helena Fairfax.
A mulher estava sentada no canto da livraria, lendo um exemplar gasto de Byron. Usava um vestido de veludo escuro, e os cabelos estavam presos com uma fita azul-marinho. Parecia deslocada, mas confortável, como um verso bonito em meio a uma página de contabilidade.
— Você é a nova inquilina — disse ela, sem levantar os olhos.
— E você é vidente?
Helena sorriu.
— Mr. Eastwick não para de reclamar do barulho vindo do terceiro andar. Imagino que esteja criando algo perigoso.
Lydia riu.
— Compondo. Mas só música. Ainda não descobri como derrubar governos com notas musicais.
— Ainda.
Houve uma pausa. Helena fechou o livro e a encarou.
— Venha ao "Círculo das Quintas", amanhã. Às oito. É aqui mesmo, mas... no porão. Diga ao Eastwick que vem para “o chá das leitoras”. Ele entenderá.
— E o que acontece nesse círculo?
— Mulheres. Palavras. Liberdade.
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Na noite seguinte, Lydia desceu as escadas do porão com o coração pulsando nas pontas dos dedos. O lugar cheirava a chá de jasmim e madeira envelhecida. Cerca de uma dúzia de mulheres estavam sentadas em círculos, algumas com livros no colo, outras com cadernos abertos.
Helena estava no centro, recitando um poema que falava de asas presas por etiquetas e chaves escondidas nos bolsos de vestidos longos.
Quando terminou, um murmúrio suave percorreu o grupo. E então os olhares se voltaram para Lydia.
— Sou Lydia Ashcombe. Componho música. E... sou nova nisso.
— Nova em escrever? — perguntou uma mulher ruiva com sotaque irlandês.
— Nova em ser ouvida.
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O círculo tornou-se sua âncora. A cada semana, novas mulheres vinham e partilhavam: versos, partituras, diários, segredos. Havia uma lavadeira que escrevia crônicas satíricas, uma costureira que pintava mulheres nuas escondidas sob rendas, e uma viúva que redigia cartas de amor para outras viúvas.
Ali, Lydia encontrava o que nunca soubera estar procurando: uma comunidade de vozes dissonantes, afinadas pelo desejo de existir plenamente.
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Certa noite, após o encontro, Helena a acompanhou até a porta de cima.
— Você tem algo em si, Lydia — disse, parando sob a sombra da escada. — Algo que desafia sem gritar. Que resiste como uma nota sustentada num acorde de dissonância.
Lydia a encarou. Aquele era um elogio? Uma advertência? Ou algo mais?
— E você tem algo que atrai como um poema proibido.
Helena sorriu, mas não respondeu. Apenas pousou a mão no ombro de Lydia, por um segundo longo demais, e desapareceu entre os livros.
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Nos dias que seguiram, Lydia tentou ignorar o que sentira — a inquietação, o calor, a curiosidade que Helena despertava sem esforço. Mas aquilo se infiltrava em suas composições: as melodias tornavam-se mais ousadas, os intervalos mais largos, os silêncios mais carregados.
E então, numa tarde de chuva, ela viu o cartaz colado na lateral da livraria:
> Procura-se compositor ou autora anônima para publicação revolucionária. Pagamento garantido. Discrição exigida.
Enviar manuscritos ao Sr. E., Caixa 17, Bath Central.
Lydia leu três vezes. O coração bateu como bumbo em marcha.
Revolucionária? Discrição?
Ela não sabia o que a atraiu mais: a promessa de ser publicada... ou o risco de perder tudo.
Naquela noite, sentou-se ao piano e começou a escrever sua composição mais ousada. A melodia não pedia permissão. Ela rompia.
Assim como ela.
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Atualizado até capítulo 46
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