Acordei duas horas antes do necessário.
Não consegui dormir direito a noite inteira, acordando de tempos em tempos como se algo estivesse errado. Como se eu tivesse esquecido um detalhe importante ou como se o mundo estivesse prestes a virar do avesso.
Talvez estivesse.
Rafael Monteiro viria ao instituto hoje.
E não como um empresário arrogante em busca de holofotes — pelo menos, não era assim que ele parecia. A forma como escreveu o e-mail, direta e objetiva, mas sem frieza… me dizia que ele queria ver mais. Não das estatísticas, não das metas — mas das pessoas. E talvez, de mim.
Me vesti com cuidado. Não como minha mãe gostaria — nada de salto alto ou blusa de seda justa demais —, mas também não como eu costumava fazer. Peguei uma calça preta de alfaiataria que modelava meu corpo sem disfarçá-lo. Uma camisa branca com leve decote, só o suficiente para mostrar que eu estava presente. Vivi tempo demais tentando desaparecer. Talvez hoje fosse o dia de me permitir existir.
Prendi os cabelos em um coque baixo e me maquiei suavemente. Quando me olhei no espelho, não me achei bonita. Mas também não me odiei.
E isso já era muito.
Quando ele chegou, soube antes mesmo de vê-lo.
O portão eletrônico se abriu e a movimentação da recepção ficou diferente — mais atenta, mais tensa, como se uma figura de outro mundo tivesse invadido nosso canto humilde da cidade.
Eu o encontrei na porta do prédio principal. Ele usava uma camisa azul-marinho dobrada até os cotovelos, sem gravata, sem terno — o que imediatamente me deixou confusa. Não era o Rafael Monteiro das capas de revista. Era o homem da sacada. O que olhava para mim como se quisesse me decifrar.
— Bom dia, Helena — ele disse com um sorriso discreto.
— Bom dia... — tentei conter o tremor na voz. — Bem-vindo ao Instituto.
Ele me estendeu a mão, como já havia feito na festa, e, mais uma vez, segurei a dele com a estranha sensação de que havia algo ali. Algo que me prendia. Que me reconhecia.
— Espero que esteja preparada para uma visita longa. Estou curioso.
— Isso é bom... eu acho.
Ele riu, e a tensão em meus ombros diminuiu um pouco.
Começamos pelo pátio das oficinas.
Ali, jovens de comunidades próximas aprendiam marcenaria, costura, jardinagem, música. Rafael ouviu tudo com atenção, fazendo perguntas relevantes, observando o ambiente como se estivesse realmente interessado. E ele estava.
— Isso aqui não é só caridade, é investimento em autonomia — ele disse em certo momento, enquanto ouvia uma das coordenadoras da ala de costura. — Vocês estão formando gente que vai construir seu próprio caminho. Isso tem valor real.
Olhei para ele surpresa. A maioria das pessoas com poder financeiro que visitavam o instituto usavam palavras como “iniciativa nobre” ou “ação filantrópica”. Rafael falava como quem entendia. Como quem valorizava.
— Eu imaginei que você fosse mais... distante disso — confessei, enquanto caminhávamos pelo corredor em direção à biblioteca. — CEOs costumam ter uma visão mais... fria.
— CEOs são ensinados a parecer frios — ele respondeu. — Mas alguns de nós aprendem a escutar, se tiverem sorte.
Eu sorri. Pela primeira vez no dia, foi um sorriso leve.
— Você escuta muito bem.
— Só quando vale a pena.
E outra vez, ele me olhou daquele jeito. Como se estivesse vendo tudo o que eu era e tudo o que eu tentava esconder.
Na biblioteca, sentamos em uma mesa reservada com duas xícaras de café. Ele havia pedido para conversarmos com mais calma. Senti o nervosismo voltar, como se, ao nos afastarmos dos outros, eu não tivesse mais desculpas para me esconder.
— Quando você começou aqui? — ele perguntou, mexendo o café com uma colher pequena, distraído.
— Há quatro anos. Mas só assumi o núcleo de desenvolvimento social no ano passado.
— E ninguém sabia disso?
— Eles sabem. Mas preferem dizer que foi minha mãe que me “deu” esse trabalho pra eu me sentir útil.
Ele franziu a testa.
— Que absurdo.
— É o padrão. Eu sou a filha “que não se encaixou”. A que não atende as expectativas. Então eles sempre rebaixam o que eu faço pra manter a hierarquia emocional da família funcionando.
Rafael me olhou fixamente por alguns segundos.
— Você tem noção da força que tem?
Eu ri, cética.
— Não. Nem um pouco.
Ele se inclinou levemente para a frente, os cotovelos apoiados na mesa.
— Talvez porque tenha passado a vida toda tentando se encaixar num molde feito para outra pessoa. Ninguém te ensinou a se olhar com justiça. Só com julgamento.
— E por que isso te importa tanto?
Eu não consegui esconder a pergunta. Aquilo me confundia. Homens como ele não se interessavam por mulheres como eu. Muito menos por seus sentimentos.
— Porque eu vejo você, Helena. E ver você... me faz querer ficar.
Meu coração parou por um segundo.
As palavras dele pairaram entre nós como uma promessa. Ou uma ameaça. Eu não sabia ainda.
Desviei o olhar, encarando a janela, tentando controlar a enxurrada de pensamentos que me invadia.
— Você não me conhece — murmurei.
— Ainda não. Mas quero conhecer. Se você permitir.
Fechei os olhos por um segundo, tentando respirar.
Era fácil querer acreditar.
Difícil era aceitar.
Mas algo em mim — muito pequeno, quase imperceptível — começou a desejar isso.
Não ser apenas vista.
Ser escolhida.
Ser amada.
Mesmo que parecesse impossível.
Ficamos em silêncio por um tempo. Um silêncio confortável para ele. Desconfortável para mim.
Meu corpo parecia estar sempre em alerta. Como se estivesse pronto para a crítica, o riso debochado, a rejeição que inevitavelmente viria. E era isso que me confundia em Rafael Monteiro: ele não tentava preencher o silêncio com frases de efeito ou elogios genéricos. Ele apenas me olhava como se não quisesse estar em outro lugar.
Isso me deixava vulnerável. E eu odiava me sentir vulnerável.
— Posso fazer uma pergunta? — ele disse, quebrando o silêncio.
Assenti, relutante.
— Quando foi a última vez que você se olhou no espelho e disse: "Eu gosto de quem eu sou"?
Soltei uma risada baixa. Ácida. Quase amarga.
— Nunca.
Ele não reagiu com piedade. Não tentou me consolar de forma barata. Apenas assentiu lentamente, como quem respeita uma dor mesmo sem compreendê-la totalmente.
— Posso te dizer o que eu vejo quando olho pra você? — ele perguntou, com a voz baixa, como se o mundo ao redor tivesse desaparecido.
Engoli em seco.
— Não sei se quero ouvir.
— Talvez você precise.
Olhei para ele com um misto de desafio e medo.
— Então fala.
Ele apoiou os braços na mesa e se inclinou levemente para frente. Seus olhos, castanhos e intensos, não deixaram os meus nem por um segundo.
— Eu vejo uma mulher que aprendeu a se esconder tão bem que nem ela mesma se reconhece. Que carrega uma força absurda, mas que passou a vida inteira pedindo desculpas por existir. Vejo uma mente brilhante, um coração exausto e um sorriso que aparece só quando ela se esquece do que os outros pensam. E vejo uma beleza que não segue padrão nenhum — e por isso mesmo, é real.
Minhas mãos se fecharam em punhos sobre meu colo. Eu queria brigar com ele. Gritar. Dizer que ele estava enganado, que ele não me conhecia, que era fácil dizer essas coisas quando se vinha de um mundo onde tudo era fácil. Mas nada saía da minha boca.
A verdade é que uma parte de mim queria acreditar em cada palavra.
Mas era assustador demais.
— Você não deveria falar essas coisas pra mim, Rafael.
— Por quê?
— Porque eu posso acreditar.
Ele ficou em silêncio por um segundo. Depois, respondeu com firmeza:
— Eu espero que acredite.
A visita seguiu, mas o tom havia mudado. O ambiente estava mais denso, carregado de algo que eu não sabia nomear. Desejo, talvez. Mas era mais que isso. Era a sensação de ser vista e ouvida com atenção, de forma limpa, sem segundas intenções aparentes.
Na saída, ele caminhou comigo até o portão principal. O sol começava a se inclinar no céu, lançando sombras douradas sobre o chão.
— Obrigado por me receber, Helena. De verdade.
— Obrigada por... ver além.
Ele me lançou um olhar caloroso, mas contido. Ainda havia um cuidado nos gestos dele, como se não quisesse me assustar. E isso me fazia respeitá-lo ainda mais.
— Posso te ligar?
Senti o estômago apertar.
— Pode.
— Você vai atender?
Sorri, finalmente.
— Talvez.
Ele riu, balançando a cabeça.
— Gosto do seu "talvez".
— É o que eu sei dar por enquanto.
— Por enquanto é o suficiente.
Ele entrou no carro com aquele ar calmo e confiante. E eu fiquei ali, parada, vendo o veículo desaparecer ao virar a esquina.
E percebi que algo estava mudando.
Eu ainda não sabia o quê.
Mas, pela primeira vez, não quis correr.
Naquela noite, deitada em minha cama com as luzes apagadas, encarei o teto e deixei a lembrança da conversa invadir cada canto da minha mente. Repeti cada palavra dele como se fossem versos de um poema proibido. Cada vez que ele me olhou, cada vez que meu nome saiu da boca dele. Nada soava ensaiado. Nada parecia manipulado.
E foi nesse silêncio que minha mente sussurrou, pela primeira vez em muito tempo:
"E se ele estiver certo sobre mim?"
Chorei.
Não de tristeza.
Mas de medo.
Medo de finalmente me permitir acreditar que, talvez, amar — e ser amada — não fosse um privilégio reservado para os outros.
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Atualizado até capítulo 68
Comments
Elo Maia
Passei anos me sentindo o patinho feio da lagoa, qnd adolescente era fora dos padrões de beleza por ser acima do peso, não era feia, mas os pesos a mais não me permitiam me mostrar e me achava horrível! Sem falar na minha mãe que me criticava e julgava o tempo todo, sei que não fazia por mal, mas era cruel, meu irmão mais velho até pagava p eu ir num grupo de emagrecimento. Hj eu me olho no espelho e vejo cm sou bonita e lembro que era linda qnd era adolescente. Com os estímulos certos desabrochamos, mas com setas apontadas nos anulamos. Infelizmente quando somos jovens nos deixamos levar por opiniões externas e esquecemos de nos levar em consideração em primeiro lugar.
2025-07-16
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Claudia Teixeira
que angústia dessa menina gente
2025-07-15
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Elo Maia
Ahhhhhh eu tenho um Rafael em casa, meu marido me fez enxergar o que eu não conseguia ver!!!!!
2025-07-16
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