Aruna
Acordo com uma pontada leve, mas incômoda, na cabeça. O mundo ao meu redor ainda gira um pouco, como se eu estivesse entre o sonho e a vigília. A luz fraca do fogo na tocha me ilumina. O cheiro da fumaça ainda queima suavemente no ar.
E então ouço. Os sussurros da minha avó.
— Que os deuses nos perdoem... que os deuses nos perdoem...
Viro devagar a cabeça em sua direção. Ela está ajoelhada ao lado da cama, a testa quase encostando no chão de terra batida, os dedos retorcendo o tecido de sua saia com força. O desespero em sua voz é tão nítido que sinto o peso de suas palavras pressionando meu peito.
Me endireito com esforço sobre a cama feita de peles de animal. Minhas costas ainda doem por causa da queda. Ou... desmaio? Nem sei mais o que foi aquilo.
Assim que me vê acordada, minha vó se ergue num rompante e se aproxima rapidamente. Seu rosto está pálido, os olhos vermelhos de tanto chorar ou rezar, ou ambos.
— Você não podia olhar pra ele, sua tola! — diz ela, a voz embargada, tomada por uma mistura de raiva, medo e dor. — Não podia! Você foi alertada, Aruna! Alertada! Nós jamais devemos olhar! Jamais! Agora... agora você nos amaldiçoou! A si mesma. A mim. Ao seu pai. Ao nosso povo. Até a eles!
Ela se ajoelha ao meu lado, segurando minha mão com tanta força que parece querer me prender à terra. Seu olhar mergulha no meu como se buscasse me acordar de novo, mas dessa vez para algo mais sério.
— O olhar de um deus em sua forma celestial caiu sobre você... — diz ela, agora num sussurro sombrio — agora está marcada.
Sinto um arrepio me percorrer. Mas não de medo. É raiva. Confusão. Uma sensação incômoda de injustiça.
Minha voz sai mais firme do que eu esperava:
— Foi ele quem falou comigo, vó. Ele! Como queria que eu não o olhasse? Que eu fingisse que não era comigo? Que eu ignorasse a voz que ecoava direto dentro da minha pele?
Meus olhos se enchem, mas não de lágrimas. De perguntas.
— E aquele lá... ele nem parecia um dos outros. Era estranho. Não era azul como os demais. Só alguns fios de pelo, ali, perto da cabeça... Quem era ele, vó? Por que parecia que... — paro antes de dizer o que realmente sinto.
Parecia que ele me conhecia.
Ela balança a cabeça com força, me interrompendo antes que eu diga qualquer coisa que, aos ouvidos dela, soe como um sacrilégio ainda maior.
— Não questione, Aruna. Não alimente isso! — diz, quase implorando. — Às vezes os deuses testam nossa fé, e se caímos... tudo desaba. Tudo. Você precisa esquecer o que viu. Fingir que nunca aconteceu.
Mas eu não consigo.
A imagem dele está cravada na minha mente. O olhar profundo, a voz diferente, firme, mas não como eu imaginei que seria. E a maneira como tudo ao redor pareceu silenciar só por estarmos ali, nos olhando.
Sinto algo dentro de mim. Uma inquietação que não sei nomear.
— E se ele for diferente, vó? — pergunto, quase sem pensar.
Ela recua um passo, como se minhas palavras fossem espinhos que a ferissem.
— Não fale mais nada. — sussurra, com olhos assustados. — Nem pense. Nem sonhe. Os olhos de um deus não são bênçãos, Aruna. São marcas. E marcas... atraem destino.
Ela se levanta, ajeitando as vestes, evitando me encarar de novo.
— Descanse. — Diz, já saindo.
Fico aqui, sentada na cama, sozinha com meus pensamentos. Mas não consigo tirar aquele olhar dele da cabeça. Nem a pergunta que pulsa em mim como uma batida surda:
E se ele não for como os outros?
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Atualizado até capítulo 40
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