Fenrir
Assim que atravessamos o círculo de luz e adentramos nosso reino, Valtra, minha respiração está irregular. Ainda estou segurando a fruta daquela Terridea. Pequena. Vermelha.
Estou inquieto.
Então, como se fosse o mundo real tentando me puxar de volta, sou empurrado com força.
— O que deu em você, Fenrir?! — rosna meu irmão, Trino, com os olhos azuis faiscando em fúria. — Perdeu o juízo, irmão? Agora aquela imunda viu sua forma divina! Sabe muito bem que eles não são dignos de nos ver assim!
Dou uma risada seca, desacreditada. O empurro de volta com a mesma intensidade.
— Divina... — repito a palavra com desdém. — Você se julga tão divino, Trino. Mas só se intitula assim porque detém um conhecimento que eles não têm.
Me viro por completo, tomado por uma fúria silenciosa que sempre me acompanhou. Encaro-o com olhos intensos.
— E isso, pra mim, não é ser divino. É ser covarde. É subjugar um povo apenas porque não está no mesmo nível de evolução. Isso não nos dá o direito de exigir reverência! Isso nos torna tiranos!
Ele me olha por um instante, em choque. Talvez por não esperar que eu falasse isso em voz alta. Ou talvez porque, no fundo, sabe que estou certo.
Mas ele não é como eu.
Nunca foi.
Trino se aproxima, com aquele olhar que mistura ameaça e desprezo. Sua voz sai baixa, carregada de veneno:
— Se o nosso pai ouvir isso... você sabe que terá problemas. Você já nasceu marcado, Fenrir. O único entre nós que não é totalmente azul.
— Mas — continua ele, agora quase em um sussurro. — Vou deixar passar. Não contarei à família que aquela coisa suja viu sua forma divina. Mas lembre-se, irmão: eles são inferiores. Não são dignos nem de pena.
Ele se afasta com passos lentos, indo na frente, por entre as ruas douradas e iluminadas de Valtra. As luzes da cidade refletem em seus cabelos e nas estátuas que decoram cada canto, como se quisessem nos lembrar a todo instante de quem somos.
Ou melhor... de quem devemos ser.
Mas minha mente não está aqui. Ela está com ela. Aquela Terridea.
A forma como me olhou. Como nossos olhos se encontraram. Não foi medo. Foi algo mais profundo. Instintivo. Quase... familiar.
Entretanto, suspiro fundo, afasto esses pensamentos e sigo para o palácio. As grandes portas se abrem sozinhas à minha aproximação. Os serviçais se curvam como sempre. Não retribuo. Apenas passo direto.
Estou cansado de gestos vazios.
Na sala de jantar, minha mãe comanda tudo como sempre. Seu olhar analítico percorre cada detalhe da mesa, como se cada flor torta fosse um crime. Ao me ver, ela abre os braços com um sorriso forçado — o tipo de sorriso que só ela sabe dar.
— Fenrir! Meu filho amado! — Ela corre até mim, me abraçando e cobrindo meu rosto com beijos. — Chegou bem na hora para o jantar. Sua bela noiva virá hoje. Imagine só, a futura deusa consorte de Valtra jantando conosco!
Noiva. Lyssara.
Deusa de outro clã. Escolhida cuidadosamente para manter alianças, preservar o sangue, como dizem. Conveniente. Bonita. Vazia. Exatamente como esperavam que fosse.
Sinto o ar me faltar. Tudo isso me sufoca. Essa farsa, esse mundo pintado de ouro em cima de cinzas.
Minha voz sai mais baixa, fria:
— Preciso de um banho, mãe.
Ela recua um passo, me analisando. O sorriso já não está tão firme.
— Eu acabei de falar da sua noiva. E você simplesmente ignora?
Começo a caminhar pelo grande corredor sem sequer olhá-la. Ergo a mão, fazendo um gesto vago no ar.
— A senhora pode recepcioná-la. Garanto que terá mais assunto a tratar com ela do que eu.
— Fenrir! — ela grita, indignada. Sua voz ecoa pelas paredes de mármore.
Mas eu não paro. Não olho para trás. E sigo em frente. Com os passos pesados, com o coração em tumulto.
E com o cheiro da fruta daquela Terridea ainda colado aos meus dedos.
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Atualizado até capítulo 40
Comments
Lucia Santos
e já sinto cheiro de lobo abatido 🫣🐺
2025-07-31
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