...Alexandre Monteiro:...
Acordei com um barulho vindo do banheiro. Virei o rosto, confuso, e vi no relógio da mesa de cabeceira que ainda eram seis da manhã. Passei a mão pela cama e percebi que Clara não estava lá.
A porta entreaberta revelou a cena que me fez levantar num pulo: ela estava ajoelhada perto do vaso, se curvando enquanto colocava pra fora todo o jantar da noite anterior.
Entrei depressa, ajoelhando ao lado dela, e segurei seu cabelo com cuidado, afastando-o de seu rosto pálido.
— Sai... - ela conseguiu dizer, com a voz fraca e embargada. - Sai daqui, Alexandre.
— Eu não vou sair - respondi baixo, firme.
Ela fechou a tampa e deu descarga, antes de se sentar sobre ela, segurando uma toalha molhada contra o rosto. Seus ombros tremiam de cansaço.
— O que você tem, Clara? - perguntei, mantendo a paciência que ela sempre despertava em mim, mesmo nos momentos mais difíceis.
— Eu... eu vou numa consulta hoje. - Ela se levantou devagar, apoiando a mão na parede, e foi até a pia para escovar os dentes.
Fiquei só observando aquela mulher teimosa, cuidando dela mesma como se não precisasse de ninguém. Quando terminou, saiu do banheiro sem olhar pra mim. Respirei fundo e fui tomar meu banho. Ainda bem que eu sempre deixava roupas ali.
Vesti um terno - sem gravata, porque eu detestava - e a encontrei sentada na penteadeira, passando a base no rosto com calma. Usava um vestido longo verde, que destacava os cabelos castanhos caindo sobre os ombros. Por um instante, fiquei parado só olhando. Linda, mesmo depois de uma noite difícil.
— Eu vou te deixar na clínica da tua médica - falei, ajeitando o paletó.
— Não vai te atrasar?
Balancei a cabeça, negando.
— Obrigada. - Sua voz saiu baixinha.
Esperei até que terminasse a maquiagem e pegasse a bolsa. Descemos juntos no elevador silencioso que nos levou até o hall. Abri a porta da BMW e esperei que ela se acomodasse antes de contornar o carro e entrar no banco do motorista.
Ela digitou o endereço da clínica no GPS e colocou uma música baixinha, que preencheu o silêncio. Dirigi pelas ruas já movimentadas de Florianópolis, atento a cada sinal, até estacionar em frente à clínica da doutora Estela Figueiredo.
— Me avise quando sair. Vou mandar o Rubens vir te buscar.
— Eu vou pegar um Uber.
— Me avise, Clara - repeti, num tom que deixava claro que não era um pedido.
Ela apenas assentiu, respirou fundo e saiu do carro. Fiquei observando enquanto caminhava até a entrada da clínica. Só depois que a vi entrar é que respirei fundo e dei partida, seguindo rumo à empresa.
Assim que pus os pés no andar da presidência, Betina, minha secretária, surgiu no corredor com o ipad em mãos e aquele jeito prático de quem sempre sabe tudo antes de mim.
— Bom dia, senhor Monteiro. Já organizei sua agenda de hoje. A Luíza também está quase chegando. O jatinho dela vai pousar aqui no prédio.
— Mas ela não viria só amanhã? - perguntei, entrando no elevador com ela.
— Sim, mas na Suíça não encontraram a peça que falta pro concerto do Kocki. Então ela resolveu antecipar o retorno.
O Kocki era nosso mini-robô assistente, criado pela Luíza e desenvolvido com a Clara. Ele auxiliava pessoas com deficiência visual, um dos projetos mais importantes que tínhamos.
O elevador se abriu no terraço, e subimos juntos até a área de pouso. Fiquei parado ali, com o vento frio batendo no rosto, esperando o jatinho da minha irmã tocar o solo.
Assim que avistamos o jatinho se aproximando, nos afastamos alguns metros por causa do barulho ensurdecedor das turbinas. O vento bagunçou meu cabelo e levantou a barra do vestido de Betina, que segurou os papéis contra o peito com cuidado.
O avião tocou o solo com a precisão que sempre impressionava, típico da Luíza. Esperei até que a porta fosse aberta e a escada, posicionada. Ela surgiu no topo dos degraus com a mesma postura impecável de sempre: costas retas, queixo erguido, os cabelos escuros presos num coque firme, como se nada no mundo conseguisse tirá-la do eixo.
Carregava apenas uma pasta de couro preta e o celular na outra mão. Quando seus olhos encontraram os meus, não havia calor nem saudade ali. Apenas aquele profissionalismo gelado que ela cultivava como uma armadura.
Me aproximei quando ela começou a descer.
— Luíza - cumprimentei, com um aceno breve.
— Alexandre - respondeu, seca, antes de pisar no concreto. Seus saltos ecoaram pelo terraço enquanto ela caminhava até mim. - Precisamos conversar imediatamente sobre o Kocki. A Suíça não tem condições de manter o cronograma sem a peça de reposição.
— Já mandei verificar fornecedores alternativos no Canadá - falei, mantendo a voz calma. Eu estava acostumado a lidar com ela assim. - Mas quero que a gente se reúna com a Clara antes de definir qualquer nova entrega.
Ela arqueou uma sobrancelha, num gesto que era quase um sorriso, ou o mais próximo disso que Luíza chegava de demonstrar emoção.
— Clara? Ela vai estar disponível hoje?
— Vai - menti sem pensar. Eu ainda não sabia se ela estaria. Mas alguma coisa me dizia que, se não estivesse, eu daria um jeito de adiar o mundo inteiro até ela voltar.
— Ótimo. - Ela consultou o relógio. - Quero essa reunião no máximo em duas horas. Vou descer para revisar os relatórios. E, Alexandre... - me olhou, por cima do ombro - se for pra assumir novos prazos, que seja com garantias. Eu não tenho tempo a perder com promessas vagas.
— Eu sei disso - respirei fundo. - Eu também não.
Ela apenas assentiu e seguiu em direção ao elevador, sem olhar para trás. Betina me lançou um olhar de cumplicidade, como quem entende que trabalhar com Luíza era um exercício diário de paciência.
E, enquanto a observava desaparecer pelos corredores, pensei na ironia: minha irmã, fria como uma lâmina; Clara, quente como o verão. E eu, preso no meio, tentando manter tudo sob controle, mesmo quando meu coração dizia que, dessa vez, nada mais estava sob controle.
...[...]...
Por volta do meio-dia, saí com Cibele para almoçarmos juntos. Assim que Alice me viu, correu até mim com os bracinhos abertos, pulando nos meus braços. Ainda estava com o uniforme da escola, o cabelo preso de qualquer jeito e o sorriso mais sincero que já vi na vida.
— Você tá ficando pesada, sabia? - brinquei, beijando sua têmpora e inalando aquele cheirinho doce que era só dela.
— Eu tô ficando forte! - ela disse, rindo. - Tio Alex, a gente pode comprar chocolate?
— Se sua mamãe deixar, a gente compra a fábrica inteira só pra você - respondi com um sorriso conspirador.
Cibele me lançou aquele olhar enviesado de sempre, cheia de implicância. Eu e Alice rimos juntos.
Não queria que minha sobrinha crescesse se sentindo limitada ao que podia ou não ter. Eu, na idade dela, sonhava com uma simples barrinha de chocolate. Mas claro, tudo em excesso enjoa.
— Pode comer um pedacinho depois do almoço - Cibele autorizou, fazendo sua típica cara de mãe sensata.
Caminhamos até o carro. Cibele colocou Alice na cadeirinha com a delicadeza de quem já fazia isso no automático, e eu me acomodei no banco do motorista. Esperei Cibele entrar no banco do passageiro e liguei o carro.
Mas antes de dar partida, Alice se agitou no banco de trás.
— Tia Lulu! A tia Lulu! - apontou pela janela, animada.
Segui seu dedinho e vi Luíza atravessando o estacionamento em direção ao seu Porsche, do outro lado da rua.
Do meu lado, senti o corpo de Cibele enrijecer. O nome de Luíza ainda era uma ferida aberta entre as duas. Minha irmã nunca foi hostil com Alice, mas também nunca fez questão de se aproximar. Tratava a sobrinha como uma desconhecida, o que sempre me incomodou - e machucava ainda mais Cibele.
— Podemos falar com ela, tio Alex? - Alice insistiu, esperançosa.
— Princesa... - Cibele interveio com carinho, virando-se para trás - a tia Lu tá cansada, amor. Por que a gente não deixa ela descansar hoje?
Alice fez um biquinho, um pouco frustrada, mas assentiu.
— Tá bom...
Luíza entrou no carro, ajustou os óculos escuros e deu partida como se nada à sua volta importasse.
Esperei até que ela saísse e fui logo atrás, com aquela sensação incômoda de que, por mais que eu tentasse, algumas pontes dentro da nossa família ainda pareciam inalcançáveis.
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Atualizado até capítulo 42
Comments
suane Gabriele
estou amando a história, ansiosa para os próximos capítulos.🤗🤗
2025-07-04
3
Fatima Sitta Vergueiro
essa Luiza é bem arrogante
2025-07-17
2
Gislaine Duarte
estou gostando do início
2025-07-17
1