Na segunda-feira, quando o relógio marcou exatamente 7h59, Maelys já estava sentada à mesa, com os e-mails da presidência abertos, a agenda do CEO organizada e um café ainda quente à espera. O céu sobre Velmora estava acinzentado outra vez, como se a cidade insistisse em refletir a tensão invisível que crescia no 32º andar da Alvarén Corp.
Ela não tinha dormido bem. Passara a noite revendo as contas, os boletos atrasados, os exames mais recentes do pai. A cada papel, uma lembrança: da infância em Elira, dos sorrisos cansados da mãe, dos dias em que jantavam pão e silêncio. E agora, ali, cercada de vidro, mármore e luxo, o mundo parecia outro — mas ela continuava sendo a mesma.
Às 8h03, Ciro Alvarén cruzou o corredor como se o mundo ao redor se ajustasse aos seus passos. O terno escuro moldava os ombros largos, e o olhar dele, ainda que parecesse distraído, captava tudo: os detalhes, os movimentos, as reações.
Ele passou por Maelys sem dizer uma palavra, apenas pousou sobre ela um olhar rápido, calculado. Foi o suficiente para que algo nela se contraísse — não por medo, mas por uma espécie de inquietação difícil de explicar.
Minutos depois, o interfone tocou.
— Senhorita Duarte, poderia vir até minha sala?
Ela suspirou, ajeitou a saia e se levantou. Ao entrar, encontrou Ciro em pé, de costas para a janela, observando o horizonte como sempre fazia — como se estivesse em guerra com ele.
— Preciso que me acompanhe em uma reunião externa hoje à tarde — disse, sem virar-se. — Será na Sideral Bank, às 16h. Você vai preparar os documentos, levar a ata e cuidar da agenda. Avise o setor jurídico.
Maelys assentiu, mas havia algo no tom dele que a incomodou.
— É uma reunião técnica, senhor?
Ele enfim se virou, os olhos encontrando os dela com um leve brilho de provocação.
— Técnica. Mas com valor estratégico. E sua presença será... interessante.
Ela manteve o rosto firme.
— Estou aqui para trabalhar, senhor Alvarén. Não para ser parte da decoração.
Por um segundo, ele não respondeu. Depois, um meio sorriso surgiu — raro, discreto, quase imperceptível.
— Isso é o que mais me intriga em você, Duarte. Sua total falta de interesse em me agradar.
— Não estou aqui para agradar. Estou aqui para ser eficiente.
— E está sendo — ele respondeu, voltando à mesa. — Mas me pergunto por quanto tempo isso vai durar.
Ela não respondeu. Sabia reconhecer uma provocação quando ouvia uma. E não dar corda era a melhor maneira de sobreviver em ambientes onde o jogo era velado e o poder, silencioso.
Ao sair da sala, os ombros estavam tensos. Algo nele começava a incomodá-la mais do que deveria. Não pelas palavras. Mas pelos silêncios.
À tarde, a reunião foi como tantas outras naquele universo que Maelys ainda tentava decifrar. Uma sala cheia de homens engravatados, apertos de mão gelados, palavras ditas com meias verdades. Ciro era impecável. Falava pouco, mas quando falava, dominava. Observava tudo. Controlava tudo. E de vez em quando, lançava-lhe olhares rápidos, como se ela estivesse ali não apenas para anotar decisões, mas para testar suas reações.
Na saída, quando estavam sozinhos no elevador do prédio do banco, o silêncio se estendeu por tempo demais.
— Você parece desconfortável nesse mundo — ele comentou, sem olhar para ela.
— Não é desconforto. É atenção. Aqui, qualquer deslize pode custar mais do que uma demissão.
Ele finalmente virou o rosto em sua direção.
— E ainda assim, você não parece ter medo de mim. Isso é raro.
Maelys ergueu o queixo.
— Não vejo motivo para ter medo. Apenas cuidado.
O elevador parou no térreo, e ela saiu primeiro, sem esperar.
Ciro a observou por um momento. Cada resposta dela parecia uma pequena vitória para ele. Mas o mais desconcertante era que... ele começava a querer mais do que respostas. Queria saber como ela pensava. Queria ver onde seus limites realmente estavam. E, pela primeira vez em muito tempo, sentiu que sua própria curiosidade era real — não uma estratégia.
Naquela noite, Maelys voltou para casa em silêncio. O pai dormia, a televisão estava desligada, e a mãe mexia em papéis no sofá, com os óculos escorregando pelo nariz.
— Você está pálida, filha. Está tudo bem?
Ela hesitou. Pensou em dizer que sim. Mas depois, apenas respondeu com sinceridade:
— Estou cansada. Lá... é outro mundo, mãe. E o chefe... é o homem mais difícil que eu já conheci.
A mãe sorriu com doçura.
— Homens difíceis geralmente têm passados mais difíceis ainda.
Maelys não disse nada. Mas as palavras ficaram em sua cabeça como uma semente.
Do outro lado da cidade, Ciro caminhava sozinho pelo apartamento imenso, silencioso como um templo vazio. Tinha tudo o que o dinheiro podia comprar — menos vozes. Menos verdades.
Sentou-se no sofá, com o tablet nas mãos. Abriu novamente o dossiê que sua equipe havia feito sobre Maelys.
Mas, pela primeira vez, não leu os dados frios. Olhou apenas a foto 3x4 do currículo. E pensou no que havia por trás daquele olhar firme e cansado.
Depois, fechou tudo e largou o aparelho no sofá.
Maelys tentou dormir naquela noite, mas o sono fugia dela como um estranho que se recusa a fazer morada. Virava de um lado para o outro na cama estreita, ouvindo os sons da casa silenciosa: o tique-taque do relógio da cozinha, a respiração pesada do pai no quarto ao lado, o vento assobiando pelas frestas da janela mal vedada. Seu corpo doía. Mas era outra coisa que a mantinha acordada.
Ciro Alvarén.
Não exatamente ele, mas a maneira como olhava para ela — como se estivesse sempre calculando, analisando, desafiando. Ele não precisava usar palavras afiadas para colocá-la em alerta. Bastava estar presente. Bastava lançar aquele olhar que parecia querer desmontá-la sem tocá-la.
Maelys conhecia homens como ele. Homens que achavam que o mundo era um brinquedo. Que o sofrimento dos outros era um detalhe distante. Que o silêncio era uma forma de dominação. Mas Ciro era mais perigoso porque não era raso. Havia inteligência ali. E algo que ela não conseguia nomear… algo que fazia com que ela, contra a própria vontade, se perguntasse quem ele era de verdade por trás de todo aquele aço.
Por volta das duas e meia da madrugada, o telefone tocou.
O som agudo rasgou o quarto em dois segundos. Ela se levantou num pulo, o coração já disparando antes mesmo de atender.
— Alô?
A voz do hospital era séria, mas calma.
— Senhorita Duarte? É da ala de clínica geral do Santa Vita. Seu pai apresentou uma piora no quadro respiratório. Não é grave ainda, mas gostaríamos de monitorá-lo com mais atenção. A senhora pode vir até aqui pela manhã?
Maelys apertou os olhos, tentando conter a onda de desespero que ameaçava subir.
— Eu vou agora.
— Não é necessário, mas... se quiser…
— Estou a caminho — disse ela, antes de desligar.
Vestiu-se no escuro, prendeu os cabelos num coque apressado e deixou um bilhete para a mãe. Saiu às pressas pelas ruas silenciosas de Elira, com o casaco fino não sendo suficiente para o vento cortante da madrugada. O ônibus demorou quase quarenta minutos. E em cada minuto, ela só pensava: não posso perdê-lo. Ainda não.
O hospital era um bloco de concreto com janelas tristes e luzes frias. Maelys entrou com passos rápidos, subiu as escadas porque o elevador estava quebrado, e só respirou quando viu o pai deitado, pálido, mas consciente. A médica explicou a ela com calma: o quadro era instável, o coração sobrecarregado. Nada urgente ainda, mas o risco estava ali. Sempre à espreita.
Maelys ficou ao lado dele até o amanhecer, segurando sua mão, sussurrando palavras de força mesmo quando seus próprios olhos estavam cheios de lágrimas contidas.
Às seis e quarenta, saiu do hospital, comprou um café barato numa padaria e foi direto para a empresa.
Não havia tempo para pausas.
Às 8h05, ela estava na mesa. Os cabelos presos com mais firmeza que o habitual, as olheiras mais marcadas, mas o olhar... o mesmo. Firme. Presente. Pronto.
Ciro a viu chegando. Não disse nada, mas notou. Ele sempre notava. O andar mais contido, a rigidez nos ombros, o brilho cansado nos olhos. Um homem como ele lia expressões como relatórios. E Maelys estava claramente no limite.
— Entre — disse ele ao vê-la passar pela porta de sua sala.
Ela entrou com a prancheta em mãos, os lábios apertados.
— O senhor deseja revisar a apresentação da Ravel Group antes da videoconferência das dez?
— Não ainda. Sente-se.
Ela hesitou.
— Prefiro ficar de pé, se não se importa.
— Eu insisto.
Maelys sentou-se com rigidez, apoiando a pasta no colo.
— O que aconteceu?
Ela franziu a testa.
— Como assim?
— Você não dormiu. E chegou mais cedo do que de costume. Seus olhos estão irritados, a voz está mais baixa, e suas mãos tremem levemente. — Ele cruzou os dedos sobre a mesa. — Isso não é algo que eu deixo passar despercebido, Duarte.
Por um momento, ela não soube o que responder. Depois, apenas disse:
— Meu pai está no hospital. Houve uma piora. Mas ele está estável agora.
Ele ficou em silêncio. Longo demais.
— E você veio mesmo assim.
— Claro que vim.
— Por orgulho?
— Por necessidade. — Ela o olhou nos olhos, sem fraqueza. — Porque é isso ou o colapso financeiro da minha família. Porque não tenho heranças. Só boletos.
Ciro apoiou os cotovelos na mesa.
— Eu poderia ajudar.
Ela o interrompeu de imediato.
— Não pedi ajuda. E não quero favores, senhor Alvarén. Se está tentando comprar a minha confiança com caridade, está perdendo tempo.
Ele não sorriu dessa vez. O rosto dele se manteve impassível. Mas algo dentro dele pareceu recuar um passo.
— Você realmente acredita que tudo o que faço tem um preço?
— Não sei o que o senhor faz fora dessa sala. Mas aqui dentro… sim. Acredito.
O silêncio cresceu entre eles como uma parede invisível. E, naquele momento, ambos sabiam: a linha estava traçada. E ultrapassá-la teria consequências.
— Está dispensada por hoje — disse ele, por fim, a voz baixa.
Ela franziu o cenho.
— Não entendi.
— Vá para casa. Descanse. Cuide do seu pai. Eu aprovo um dia de ausência.
— Não quero parecer fraca.
— Você já provou o contrário. Não precisa provar mais nada hoje.
Ela se levantou com hesitação. Por fim, apenas disse:
— Obrigada.
E saiu da sala.
Ciro ficou olhando a porta fechada por longos minutos, os pensamentos mais confusos do que costumavam ser. Havia algo nela que o fazia questionar os próprios instintos. Aquela mulher era uma ferida que ele não conseguia ignorar — e tampouco conseguia curar.
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Atualizado até capítulo 56
Comments
Nilva Moraes
amando tomara que ele perca a aposta
2025-07-08
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bete 💗
emocionante ❤️❤️❤️❤️❤️
2025-07-03
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Sandra Camilo
encantada com 😍😍😍
2025-07-03
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