Lorena trancou a porta devagar, o coração acelerado batendo contra o peito como um tambor de alerta. Sobre a cama, deixou apenas um bilhete com caligrafia firme, mas trêmula:
"Não me procurem. Estou indo buscar minha liberdade. – Lorena"
Vestia-se com pressa, mas com estratégia. Calçou tênis confortáveis, cobriu o corpo com uma jaqueta larga e calças folgadas. Por baixo da jaqueta, usava um colete inflável, que simulava um corpo mais encorpado, dificultando o reconhecimento. Colocou lentes de contato castanhas sobre seus olhos azul-claros, óculos escuros por cima e, por fim, a peruca loira lisa que cobria seus cabelos naturais. Cada detalhe pensado para despistar qualquer tentativa de rastreamento.
Ela levou apenas o essencial: uma mochila com roupas íntimas, documentos, o novo passaporte, e o pouco dinheiro que havia conseguido ao vender suas joias de casamento e algumas peças valiosas que pertenciam à sua mãe. O restante ficou para trás — roupas, lembranças, medos.
Seguiu até o aeroporto de Natal por uma rota alternativa, usando transporte por aplicativo com cadastro falso. Assim que chegou ao terminal internacional, ligou para Juli do telefone público, conforme combinado.
— Estou aqui. Embarcando pra Detroit. — disse baixo, tentando conter a emoção.
— Ótimo, amiga. Estou esperando você. Descarte o seu celular. — alertou Juli do outro lado da linha.
Lorena desligou, abriu a mochila, retirou o aparelho antigo, desmontou-o, partiu o chip e deixou as peças dentro de uma lixeira no corredor. O gesto foi simbólico: ela acabava de descartar o último elo com o passado.
A viagem foi longa. Saindo de Natal rumo a São Paulo, depois para o aeroporto internacional de Detroit. Foram aproximadamente 15 horas em trânsito, sem contar as esperas entre os voos. Lorena se manteve silenciosa o tempo inteiro, olhos perdidos na janela, mãos trêmulas sobre o colo, sentindo que estava renascendo — mesmo que ainda doída.
Em Detroit, embarcou para o voo final até a Califórnia, somando mais três horas de deslocamento. Ao desembarcar, foi recebida por um senhor de cabelos brancos, terno azul-marinho e um crachá simples com o nome "Sebastian".
— Senhorita Lorena? — ele perguntou em português com leve sotaque.
Ela assentiu, ainda sem confiar totalmente.
— A Juli pediu para buscá-la. Está tudo certo. Seja bem-vinda.
O carro era discreto, mas confortável. Durante o trajeto, ela avistava uma nova vida pela janela — ruas limpas, árvores floridas e uma brisa fria que fazia seu coração estremecer. Ao chegar à casa ampla onde a amiga trabalhava, Juli correu até ela e a envolveu num abraço apertado.
— Meu Deus, você está magra... E o seu rosto...
Lorena afastou um pouco os óculos e a manga da blusa. As marcas ainda estavam ali — roxas, algumas amareladas.
— Ele quase quebrou meu braço... — sussurrou, e chorou, como não chorava há muito tempo.
— Você está a salvo agora. Amanhã eu te apresento ao senhor Alexander. Eu fico uma semana para te treinar e fazer o meu anjinho se apegar a você. Depois disso, a casa será sua. E a liberdade também.
Lorena se ajoelhou e abraçou Juli novamente, com os olhos marejados.
— Obrigada. Obrigada por não me abandonar.
Julie desviou o olhar por um instante. Fez silêncio. O ar pareceu ficar mais denso entre elas.
— Não é “temos”… É tivemos. Mas ele nem lembra, Lorena — disse com a voz embargada. — Foi numa noite terrível. O aniversário da morte da esposa dele…
Lorena arregalou levemente os olhos, surpresa.
— Eu tinha acabado de colocar o menino para dormir. Ele chegou em casa completamente bêbado. Chorando, dizendo que estava sozinho no mundo… — Julie apertou os dedos um contra o outro, os olhos marejando. — Ele me beijou. E eu me entreguei. Já fazia tempo que eu estava apaixonada por ele… Eu sabia que era errado, mas foi mais forte do que eu.
Lorena segurou a respiração.
— E no dia seguinte no café da manhã , antes dele ir trabalhar,— Julie continuou — ele contou que sonhou com a falecida.
Um silêncio pesado se instalou.
— Quando eu perguntei, ele disse que tinha tido um sonho lindo com a esposa. Um sonho… — ela mordeu os lábios para conter as lágrimas. — E naquele momento eu percebi que ele não fazia ideia do que aconteceu entre nós. Na cabeça dele, ele fez amor com a falecida.
— Meu Deus, Julie… — Lorena sussurrou, chocada.
— Aquilo foi a gota d’água pra mim, amiga. Eu percebi que fui usada, mesmo que ele não tenha feito por mal. Eu fui uma sombra. Um fantasma. Uma mulher invisível de carne e osso, que ele confundiu com alguém que já partiu.
Lorena estendeu a mão e tocou o braço da amiga.
— Você não merecia isso.
— Ninguém merece. E é por isso que eu estou indo embora. E não, eu não contei pra ele nada do que aconteceu depois. E nem vou contar. A vida dele já é um caos por dentro. Não vou piorar.
Lorena respeitou o silêncio da amiga. Não perguntou mais nada. Mas seu coração se apertou. Julie estava ferida. Profundamente. E mesmo assim, estava sendo generosa o bastante para acolhê-la.
Julie respirou fundo e forçou um sorriso.
— Nós duas somos duas quebradas, né?
Lorena soltou um riso fraco, sem alegria.
— Somos… Mas sabe o que é pior? — seus olhos brilharam. — É que você não foi quebrada pelos seus pais. Já fui. Desde o dia em que nasci, me ensinaram que amor tinha que vir com dor. E depois me entregaram como se eu fosse uma dívida vencida.
Julie a abraçou.
— Isso tudo vai passar. Aqui você vai reconstruir tudo. Você vai se curar. E vai descobrir que não é todo homem que destrói. Alguns podem te ensinar a respirar de novo.
Lorena respirou fundo, fechando os olhos.
Mas, no fundo, ainda não sabia se era possível.
Julie se recostou na poltrona, olhando para o nada.
— Eu não dormi com ele, Lorena… — confessou, com um sorriso dolorido. — Eu apenas o ajudei. Ele chegou bêbado. Destruído. Era o aniversário da morte da esposa dele. Ele mal conseguia se manter de pé.
Lorena arregalou os olhos, prestando atenção.
— Eu o levei até o quarto dele. Ele chorava, dizia que estava se sentindo perdido, que não sabia viver sem ela… Eu… eu só queria consolo. Ele me puxou, me beijou. Foi um beijo desesperado, confuso. Eu… eu cedi por um momento, mas quando vi que ele não estava em si, parei.
Ela abaixou os olhos, apertando os dedos.
— Ajudei ele a se deitar. Tirei os sapatos, ajeitei o travesseiro. E fui embora pro meu quarto. Dormi chorando. Porque no fundo… eu sabia que pra ele eu não significava nada.
— E ele… disse alguma coisa depois? — Lorena perguntou com cuidado.
Julie assentiu com a cabeça.
— No café da manhã do dia seguinte. Ele apareceu, como se nada tivesse acontecido. E aí ele me olhou e falou: "Tive um sonho lindo com a Helena essa noite. Foi tão real. Senti o perfume dela. A presença dela..." — a voz dela falhou. — Ele nem imaginava que tinha acontecido alguma coisa. Nem desconfiava do que foi aquele beijo. Na cabeça dele, era tudo um sonho.
Lorena sentiu um nó na garganta. Aquilo doía só de ouvir.
— Foi por isso que você decidiu ir embora?
— Foi por isso, sim — Julie respondeu. — Foi como se ele tivesse me apagado. Como se tudo que eu senti, tudo que eu fiz... não tivesse existido. Ele sonhou com ela, enquanto eu chorava de verdade. Eu não conseguia mais suportar isso. Então decidi que era hora de voltar pro Brasil. Recomeçar.
— E ele não sabe de nada? Nem…
Julie a cortou com um olhar firme, mas dolorido.
— Nem sonha. E assim vai continuar.
— Você é forte, Julie. Mais forte do que imagina — disse Lorena, com sinceridade.
— Eu tive que aprender a ser. Mas você... você foi forçada a isso. Os seus pais, o que fizeram com você, foi cruel. Ninguém merece carregar uma culpa que não cometeu. Muito menos ser condenada por ter amado.
As duas se olharam por um instante. A dor de uma era espelho da outra. Vidas marcadas por rejeição, abusos e silêncios. Mas ali, naquela casa nova, talvez começasse uma nova história para ambas.
Julie respirou fundo e forçou um sorriso.
— Vamos descer? Ainda tenho que te mostrar a rotina da casa e preparar o menino para o almoço.
Lorena assentiu e se levantou, mas antes de sair, segurou a mão da amiga.
— Obrigada… Por me salvar.
— Ainda vamos salvar uma à outra, Dulces.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 71
Comments
Dulce Gama
parabéns autora até às fotos são lindas das personagens gostei 🌟🌟🌟🌟🌟❤️❤️❤️❤️❤️🎁🎁🎁🎁🎁🌹🌹🌹🌹👍👍👍👍👍
2025-07-13
0