Os anos passaram como correntes invisíveis amarradas aos tornozelos de Lorena. Ela concluiu o curso de Letras com louvor, mas nada naqueles anos representava liberdade. Enquanto os colegas celebraram formaturas, ela sequer teve direito a um anel de formanda ou a uma fotografia no mural da faculdade. Tudo em sua vida era controlado, vigiado, sufocado.
Vivia como uma prisioneira sem grades. Ia e voltava da universidade sempre acompanhada por alguém — ora pela mãe, ora pelo motorista pago pelo pai. Não havia espaço para amizades novas, para viagens, para festas, para sonhos.
Na mente do pai dela, o diploma era apenas um pretexto para “restaurar” a honra manchada pela gravidez. A falsa narrativa de que os filhos nasceram mortos era a base de toda a encenação. Mas o pai, um homem autoritário e obsessivo, não se contentaria apenas com silêncio. Ele precisava de um desfecho. Um controle final.
E ele veio na manhã de sexta-feira.
Lorena havia acabado de receber a notícia de que tinha sido aprovada no trabalho de conclusão de curso. Seu coração ainda batia acelerado de emoção quando entrou em casa e encontrou o pai esperando por ela na sala, com o rosto sério e braços cruzados.
— Sente-se, Lorena.
Ela sentiu o sangue gelar nas veias. Sentou-se devagar, apertando a bolsa contra o colo.
— Agora que terminou sua faculdade, você vai se casar — ele anunciou, seco, sem espaço para réplica.
— O quê? — ela engasgou. — Papai, a gente não vive mais no século XIX. As mulheres hoje escolhem com quem querem casar…
— Não as mulheres desonradas. — A voz dele cortou o ar como lâmina. — Você não tem mais escolha. Eu já acertei tudo com um homem que respeita a minha amizade e se dispôs a salvar sua reputação.
— Salvar? — ela ficou em choque. — Quem é ele?
— Osmar. Meu amigo de longa data. Um homem íntegro, viúvo, pai de uma moça da sua idade. Tem quarenta e cinco anos, mas sabe o que quer da vida. Ele vai saber colocar você nos trilhos.
— Papai… ele tem a sua idade! Ele é pai da minha amiga! Isso é insano!
— Insano seria deixar você à solta, causando mais vergonha a essa família. Você vai se casar com ele no próximo mês. Já conversei com a mãe dele, com a família. Você vai se mudar para a casa dele assim que terminar seu período de resguardo.
As palavras martelaram a mente de Lorena. Aquilo era mais que um castigo. Era o sepultamento de tudo que ela ainda guardava como esperança. Desde o dia em que saíra do interior sem suas filhas, ela vivia como um vulto. E agora, seria entregue a um homem que sequer a via como mulher, mas como um trapo usado.
E assim foi. Trinta dias depois, Lorena se viu vestida de noiva branca em uma cerimônia fria e sem alegria. Osmar a olhava com o desejo possessivo de quem comprava um objeto raro e disfarçava a obsessão sob sorrisos cínicos.
A convivência com ele foi um inferno. Era humilhada por não ter sido a “primeira” dele. Era forçada a se deitar ao lado dele todas as noites, mesmo que sua alma gritasse em desespero. Apagava os hematomas com base e os gritos com o travesseiro. Durou três meses.
Até que um dia, ele a empurrou contra a parede e torceu seu braço com violência. O estalo seco e a dor lancinante fizeram com que tudo transbordar. Não dava mais.
Foi nesse estado de urgência que ela ligou para Jully, sua antiga amiga da faculdade — a única que ainda tinha um número escondido em um bilhete antigo, guardado entre as páginas de um livro.
Jully atendeu no terceiro toque.
— Lorena? Tá tudo bem?
— Não… — sua voz saiu falha, como um sopro. — Eu não aguento mais. Ele quase quebrou meu braço ontem. Me ajuda, por favor.
Jully não precisou pensar duas vezes.
— Você consegue vir? Eu estou voltando para o Brasil. Meus pais estão doentes e eu pedi demissão. Mas quero indicar você para o meu lugar.
— Sério?
— Sim. Aqui ninguém vai controlar sua vida. O passaporte tá em dia?
— Tá sim… Maurício me forçou a tirar para uma viagem estúpida.
— Então é ótimo. Compra passagem para Detroit. De lá você pega outro voo direto para Santa Bárbara. É lá onde estou trabalhando.
Lorena começou a chorar em silêncio. Pela primeira vez em anos, alguém lhe oferecia uma saída. Uma porta.
— Obrigada, Jully… obrigada.
— Não me agradeça. Viva. E seja feliz. Isso já vai me deixar em paz.
Naquela mesma noite, Lorena fez o que nunca imaginou ser capaz. Pegou as poucas joias que não haviam sido vendidas pelos pais e comprou a passagem. Fez a mala silenciosamente. Levou apenas o necessário: algumas roupas, documentos, um celular novo escondido e o bilhete da Jully.
Deixou um papel sobre a cama:
As paredes da casa onde Lorena vivia pareciam cada vez menores, mais sufocantes. Três meses haviam se arrastado como uma eternidade ao lado de Maurício, o homem escolhido por seu pai, o homem que a tratava como um bem descartável — como se fosse um castigo por não ser mais “pura”, por não ter sido uma esposa virgem.
Cada toque dele era uma punição. Cada noite, uma sentença.
Lorena não tinha mais lágrimas para chorar. Seus olhos estavam secos, mas sua alma sangrava. A única coisa que ainda a mantinha viva era a lembrança daquelas duas vidas que lhe foram tiradas — as gêmeas que ela nunca conheceu. Quando o marido apertou seu braço com tanta força que ela quase gritou de dor, um estalo se deu dentro dela. Era como se uma parte adormecida despertasse.
Ela foi até o banheiro, trancou a porta, e ligou para o único número salvo em sua mente como sinal de salvação: Jully.
— Lorena?! — a amiga atendeu com a voz aflita. — Tá tudo bem?
— Não… — sua voz saiu fraca. — Eu não aguento mais, Jully. Ele me machuca. Ontem ele quase quebrou meu braço… Eu tô vivendo um pesadelo. Me ajuda, por favor.
Houve silêncio do outro lado da linha. Um silêncio que carregava preocupação, mas também uma decisão.
— Você consegue vir? — Jully perguntou, com firmeza. — Porque eu estou precisando voltar para o Brasil. Meus pais estão doentes, eu pedi demissão. Mas quero deixar você no meu lugar. É o mínimo que eu posso fazer por tudo que você já passou.
O coração de Lorena acelerou.
— Sério? Eu posso mesmo?
— Claro que pode. Seu passaporte tá em dia?
— Está sim. Tive que tirar quando Maurício me arrastou pra uma viagem ridícula aos Estados Unidos pra fingir que éramos felizes.
— Ótimo. Então faz assim: não vem pra Flórida. Compra um voo pra Detroit. De lá, pega conexão direto pra Santa Bárbara. É onde estou agora. Aqui você vai começar uma nova vida, amiga.
Lorena mordeu os lábios, emocionada.
— Eu não sei nem como te agradecer, Jully.
— Me agradece sendo feliz. Vem, que aqui ninguém vai te obrigar a viver com quem você não ama.
Ela desligou a ligação e ficou parada, segurando o celular. Respirou fundo. Pela primeira vez em anos, sentia esperança de verdade.
Naquela noite, ela pegou as joias que ainda não havia vendido, e usou uma parte para comprar a passagem. Fez tudo online, silenciosamente, no computador da biblioteca. Nos três dias seguintes, arrumou discretamente sua mochila — o essencial: alguns documentos, roupas, o celular novo que ela havia escondido no forro da gaveta, e uma foto antiga sua com Jully, quando tudo ainda era possível.
Na manhã da viagem, deixou um bilhete em cima da cama:
“Não sou propriedade de ninguém. Nem do meu pai, nem de você. Estou indo embora. Não procure por mim.”
Vestiu roupas simples, colocou o casaco por cima e, com a mochila nas costas, saiu de casa como se fosse apenas mais um dia. Pegou um táxi até o aeroporto e embarcou.
Não olhou para trás.
Ainda Sou Eu
Roubaram meus risos com beijos vazios,
Prometeram amor com voz de espinhos.
Pintaram de culpa o que era carinho
E me chamaram de louca… por sentir demais.
Me disseram que eu era nada,
Para depois me implorar tudo.
Me deram o céu, mas de papel,
E queimaram meus sonhos no fundo do mundo.
Fui prisioneira em pele livre,
Andei por dentro de mim com medo.
Chorei sem som, dormi com medo,
Acordei... e ainda era noite.
Mas dentro do peito, havia algo:
Uma chama — fraca, mas teimosa.
Uma voz — trêmula, mas corajosa.
Que dizia: ainda sou eu.
Eu sou aquela que ficou de pé
Quando o chão já não queria me segurar.
Eu sou aquela que, mesmo sangrando,
Aprendeu a se abraçar.
A dor tentou me ensinar que amar é prisão.
Mas hoje eu sei:
Amor não prende, amor não fere,
Amor não anula...
Amor me liberta.
E eu sou liberdade.
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Atualizado até capítulo 71
Comments
Dulce Gama
parabéns autora é a primeira história sua que estou lendo está ótima estou adorando muito 👍👍👍👍👍🌹🌹🌹🌹🌹🎁🎁🎁🎁🎁🎁❤️❤️❤️❤️❤️❤️🌟🌟🌟🌟🌟🌟
2025-07-13
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