O inverno havia começado a soprar cedo sobre Elvar.
Naquela manhã, a brisa era cortante e carregava um cheiro de pinho e gelo, deslizando pelas pedras antigas do castelo como um sussurro de que algo estava prestes a mudar.
Cyra, já desperta antes do nascer do sol, estava sentada à mesa de madeira escura do salão de estratégias, enrolada em uma capa de lã espessa. Diante dela, pergaminhos abertos, selos reais, e uma carta que acabara de escrever, mas não pretendia enviar.
Ser Belar, à sua esquerda, lia a lista da comitiva com olhos atentos. Dez guardas pessoais, dois mestres de sela, três amas, um espelho encantado de comunicação — e uma carruagem com o brasão de Elvar, polido como uma joia.
— Terá proteção suficiente — disse ele, como se respondesse ao pensamento não dito. — E uma chegada discreta. Ela cruzará os portões de Tharion como convidada. Não como noiva.
Cyra assentiu lentamente.
— E Helena não saberá até que já seja tarde demais para recusar a presença. Quero Elizabeth lá durante todo o inverno. Que veja com seus próprios olhos o que há por trás das muralhas daquele reino… e daquela mulher.
Ela apertou a carta com força entre os dedos.
— Se Helena é tudo o que dizem… fria, impenetrável, incapaz de laços — então deixará minha filha de lado. E eu terei minha resposta sem precisar ajoelhar diante de alianças forçadas.
— E se não for? — perguntou Belar, com cautela.
Cyra não respondeu. Apenas olhou pela janela. O céu começava a clarear num azul pálido, e abaixo, nos estábulos, a carruagem já estava a ser preparada.
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No andar de cima, Elizabeth ainda estava deitada, os cabelos castanhos bagunçados e metade do rosto enterrado em uma almofada de penas. A luz suave da manhã invadia seu quarto pelas frestas da cortina como dedos curiosos.
A porta se abriu com delicadeza.
— Lizzie? — chamou Cyra, com suavidade incomum.
Elizabeth abriu um dos olhos, ainda sonolenta.
— Se for sobre o vestido de ontem… posso explicar. Tive que escalar uma árvore. O gato da cozinheira estava preso.
— Você vai partir esta manhã — disse Cyra, sem rodeios, interrompendo.
Elizabeth piscou. Sentou-se devagar.
— Partir… como assim partir?
— Para Tharion. Para o castelo de Helena. Passará o inverno lá. Sem datas marcadas. Sem alardes.
Elizabeth arregalou os olhos.
— Você vai me mandar agora? Sem aviso? Sem que ela saiba?
— Justamente. — Cyra se aproximou, sentando-se na beirada da cama. — Você sempre quis ver o mundo real. Pois veja o trono que talvez um dia seja seu. Veja a mulher com quem todos esperam que você case. E veja se isso… se ela… vale o risco.
Elizabeth ficou em silêncio. Seu coração batia mais rápido — uma mistura de medo, indignação… e empolgação.
— E se ela me odiar?
Cyra ergueu as sobrancelhas.
— Ela já nos despreza. Ao menos agora terá que olhar nos seus olhos para continuar fazendo isso.
Elizabeth engoliu em seco. Estava de pijama, com uma trança mal feita e as pernas enroladas no cobertor. Mas ali, pela primeira vez, sentiu-se parte de algo maior que seus jardins e aventuras escondidas.
— E se eu… gostar dela?
Cyra hesitou. Então apenas respondeu:
— Então veremos.
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O som das rodas sobre o cascalho ecoava pela estrada, ritmado como uma canção antiga. Dentro da carruagem bordada com o brasão dourado de Elvar, Elizabeth estava sentada com o rosto colado à janela de vidro encantado, os olhos brilhando com curiosidade infantil.
Era a primeira vez que via o mundo além das muralhas.
E não era como esperava.
Elvar, com seus altos castelos de pedra pálida, jardins bem podados e avenidas cerimoniais, agora parecia... cinza. Um pouco contido. Artificial. O mundo além dali era feito de verde vivo e caos natural — florestas que se estendiam até onde os olhos não alcançavam, lagos cristalinos entre colinas cobertas de musgo, e pequenos vilarejos com telhados de palha e varais coloridos.
— Tem cheiro de folhas molhadas… e mel. — murmurou para si, inspirando profundamente pela fresta da janela.
A cada curva da estrada, algo novo surgia: campos de flores silvestres, onde pequenos cervos corriam entre as cores; rochedos que formavam pontes naturais sobre rios cintilantes; até mesmo um bosque de árvores azuis, cujas folhas pareciam sussurrar canções esquecidas sempre que o vento soprava mais forte.
— Por que ninguém nunca fala disso nas reuniões do conselho? — sussurrou para si mesma, quase indignada. — Isso é mais mágico do que qualquer baile chato.
As amas cochilavam, e os guardas cavalgavam em silêncio à frente e atrás. Ninguém prestava atenção em seus suspiros ou nas mil perguntas que surgiam em sua mente.
No terceiro dia de viagem, ao amanhecer, a carruagem subiu uma colina, e então…
— Oh... — escapou de seus lábios.
Diante dela, no horizonte dourado, erguia-se Tharion.
Mas diferente do que imaginara — um reino de torres sombrias e muralhas ameaçadoras —, Tharion era como uma cidade esculpida na própria natureza. As construções de pedra escura se misturavam a árvores antigas, cujas copas se erguiam mais altas que os próprios telhados. Riachos corriam entre as ruas de paralelepípedos cobertos de líquen, e vinhedos se espalhavam pelos arredores como tapeçarias verdes.
Do topo de uma elevação sagrada, o Castelo Real de Tharion surgia como parte da montanha. Suas torres eram cobertas por heras, e janelas altas refletiam a luz do sol como cristais.
— É... lindo — sussurrou Elizabeth. — Tão… vivo.
Ela esperava frieza. Esperava pedras e sombras. Mas ali, Tharion parecia respirar. E aquilo, de alguma forma, a tranquilizou.
Enquanto a carruagem descia a colina em direção aos portões principais, o vento trouxe o cheiro de lavanda e pinho. Pássaros de penas metálicas voaram sobre os campos. Crianças brincavam com dragõezinhos de jardim — criaturas pequenas e inofensivas, domesticadas por magia antiga.
Tudo ali parecia uma contradição encantadora: forte, mas belo. Selvagem, mas acolhedor.
E então veio o pensamento inevitável.
— Será que ela é assim também? — pensou. — Helena.
A mulher de quem falavam com temor, com reverência… com distância.
A carruagem passou pelos portões de pedra adornados com o símbolo de Tharion: uma coroa envolta por raízes e chamas. Elizabeth segurou firme a barra do vestido. Seu coração batia como os cascos dos cavalos — forte, ansioso, incerto.
Ela estava ali. Em outro reino. Num mundo que sempre quis ver… mas agora era o centro das atenções, mesmo sem saber o que seria esperada a fazer.
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O som metálico de espadas colidindo ecoava pela ala leste do castelo de Tharion.
Ali, sob o céu cinzento da manhã e rodeada por pilares de pedra cobertos de heras, Helena girava a lâmina com precisão letal. Seus pés deslizavam sobre o solo de terra batida como se conhecessem cada rachadura, cada centímetro daquele terreno sagrado onde treinava desde os doze anos.
Diante dela, arquejando, estavam dois oponentes: seu mestre de combate, Velrik, e Sir Damas, o melhor entre os cavaleiros reais.
Ela os enfrentava sozinha. Como sempre preferia.
O suor escorria por sua têmpora, deslizando entre os fios ruivos que escapavam da trança solta. Seus cabelos — cor de brasa acesa — ardiam sob a luz fraca, um contraste feroz com a pele clara marcada por algumas cicatrizes discretas.
Helena era alta, com postura impecável e braços definidos de tanto empunhar espadas e escudos. De costas, vestida com roupas de treino escuras, poderia facilmente ser confundida com mais um dos soldados — não fosse pela aura implacável e pela intensidade flamejante de seu olhar verde-esmeralda, que parecia sempre calcular, sempre pesar.
Velrik avançou com um corte lateral. Helena bloqueou com facilidade, girando para trás de Sir Damas, golpeando o escudo dele com tanta força que o homem cambaleou.
— Ainda distraído, cavaleiro. — disse ela, a voz baixa, mas carregada de comando.
— Distraído, não… só cauteloso. — respondeu ele com um sorriso tenso, limpando o suor da testa. — A senhora tem o hábito de quebrar costelas antes do almoço.
Helena sorriu de leve, mas seus olhos não suavizaram.
Foi então que Mariel apareceu, aproximando-se sem pressa, porém com o olhar firme — um gesto que indicava que a notícia em mãos não era comum.
Helena girou a espada e a enfiou no chão ao seu lado, os ombros ainda relaxados, como se tivesse total controle da situação. Mesmo ofegante, ela parecia pronta para mais.
— Diga — ordenou, antes que Mariel abrisse a boca.
— A princesa Elizabeth de Elvar chegou. Esta manhã. Entrou pelos portões antes do sol atingir os jardins. Está hospedada nas alas do sul. Disseram… que veio por vontade de sua mãe. E ficará durante o inverno.
Um silêncio tenso caiu sobre o pátio.
Velrik e Sir Damas se entreolharam com olhos semicerrados, mas não ousaram comentar.
Helena permaneceu imóvel por um longo instante. Apenas o som do vento entre as folhas preenchia o espaço entre as palavras não ditas.
Então, muito lentamente, ela ergueu os olhos em direção às torres do sul. Ali, onde a princesa estava. Sem convite. Sem aviso. No seu reino.
— Que tipo de jogada é essa, Cyra? — murmurou, mais para si do que para os outros.
Ela puxou a espada do chão com um movimento firme. O aço ainda vibrava do impacto anterior.
— Mande preparar o salão menor para esta noite. — disse por fim, encarando Mariel. — Se a princesa quer conhecer Tharion… então vai me conhecer também.
E com isso, virou-se, o rubro dos cabelos balançando como uma bandeira em chamas enquanto se afastava, deixando o campo de treino em silêncio respeitoso.
A chama havia sido tocada. E agora, ninguém sabia o que arderia a seguir.
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Atualizado até capítulo 30
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