Pés Descalços e a Coroa Longe Demais

O Reino de Elvar despertava em tons suaves, como se o tempo ali tivesse aprendido a respirar devagar.

As muralhas não eram altas e severas como as de Tharion; eram cobertas por vinhas mágicas que floresciam o ano inteiro, exalando um perfume leve de mel e pétalas encantadas. Torres de pedra clara reluziam sob o sol da manhã, enquanto os jardins se estendiam como tapeçarias vivas ao redor do palácio. Pássaros dourados — uma espécie rara, nativa das florestas de Lira Velha — dançavam entre as copas das árvores, acompanhando o riso de alguém que, como sempre, não estava onde deveria estar.

Elizabeth Elvar corria descalça sobre a grama orvalhada, os pés ágeis desviando das raízes grossas que serpenteavam pelo chão. Usava um vestido leve, amassado e sujo na barra de terra e folhas, como de costume. Um livro de poesia mágica estava aberto em uma das mãos, equilibrado de forma improvável enquanto ela fugia — novamente — da tutora real que a esperava com outra aula sobre política inter-reinos.

— Vossa Alteza! — chamava a voz exasperada de uma criada, há muito acostumada com a rotina de sumiços.

— Estou estudando botânica prática! — respondeu Elizabeth, por cima do ombro, com um sorriso sapeca. — Em campo, como os magos antigos!

O jardim era seu reino particular, um espaço onde não precisava lembrar que era filha única da Rainha Cyra Elvar, soberana de uma das casas mais tradicionais do continente. Ali, entre as ervas que sussurravam segredos antigos e os espelhos d’água onde os peixes cantavam em troca de pão doce, Elizabeth era apenas… ela.

Curiosa, afetuosa, um pouco caótica. Tinha o estranho hábito de falar sozinha — ou com as plantas — e guardar coisas nos bolsos: pedrinhas brilhantes, sementes raras, bilhetes que ela mesma escrevia e esquecia. Seu quarto era um caos de livros empilhados, mapas rabiscados e vestidos que se recusava a usar.

Ao fundo, as trombetas tocaram um tom suave — um chamado do palácio. Elizabeth suspirou, largando-se sobre um banco de pedra envolto em musgo. Sabia que não poderia adiar por muito tempo. A mãe a chamaria. E não era por causa de mais uma lição esquecida.

A carta havia chegado.

O conselho havia decidido.

Ela, Elizabeth da Casa Elvar — poetisa de jardins, colecionadora de insetos mágicos, fugitiva de compromissos — teria que se casar. Com a Rainha de Tharion, a mulher cuja frieza era lenda, e que certa vez mandou prender um diplomata por atrasar um tratado em três dias.

Elizabeth mordeu o lábio inferior, os olhos dourados se voltando para o céu claro.

— Casar... com Helena Tharion — murmurou, como quem prova uma palavra exótica pela primeira vez.

E então, riu baixinho.

— Bem… pelo menos ela parece gostar de livros.

......................

O salão solar da Casa Elvar era banhado por uma luz dourada e morna, vinda de janelas em arcos altos cobertos por cortinas finas, que balançavam com a brisa do fim da manhã. As colunas eram envoltas por vinhas encantadas que se moviam lentamente ao ritmo das canções do vento. No centro, sentada em um trono elegante de madeira viva — talhada de uma única árvore antiga, cujas raízes ainda pulsavam sob o chão — estava a Rainha Cyra Elvar.

Majestosa mesmo sem coroa, Cyra exalava uma autoridade tranquila, mas imutável. Seus cabelos, de um castanho escuro com fios de prata surgindo nas têmporas, estavam presos em um coque impecável. O olhar era o que mais impunha respeito: olhos claros como gelo derretido — não frios, mas atentos, sempre à procura do que não foi dito.

Ao seu lado, em pé com as mãos para trás, estava Ser Belar, conselheiro da casa há mais de duas décadas. De palavras contidas e postura ereta, era quase uma sombra discreta de Cyra, mas com a voz certeira quando necessário.

A porta lateral do salão se abriu com um ranger delicado, e Elizabeth entrou… ou melhor, apareceu como se tivesse tropeçado na própria presença.

O vestido leve agora trazia manchas novas de barro e folhas, o cabelo castanho com pequenas flores presas entre os fios, como se a própria floresta tivesse tentado guardá-la para si. Os pés descalços ainda úmidos. E, claro, um livro embaixo do braço.

Cyra suspirou profundamente. Não em raiva — mas em exaustão materna de quem já havia dito as mesmas palavras muitas vezes.

— Elizabeth Elvar, você está me matando aos poucos — disse, erguendo uma sobrancelha. — Pelo menos calçados desta vez? Não. É claro que não.

Elizabeth forçou um sorriso culpado, arrumando a postura e ajeitando inutilmente a barra do vestido.

— Eu estava estudando...

— Ah, sim. Botânica "em campo". Já ouvi isso ontem. E anteontem. — Cyra se recostou no trono, os dedos tamborilando no apoio entalhado em forma de folhas. — Um dia você vai escapar tanto que não terá para onde voltar.

— Eu sempre volto — disse Elizabeth, dando de ombros. — Só… por rotas mais bonitas.

Belar abafou um leve suspiro e se adiantou com um pergaminho enrolado, mas esperou até que Cyra lhe fizesse um gesto sutil de permissão.

— Sabemos que esse mundo não é gentil com quem sonha demais, filha — disse a rainha, suavizando um pouco o tom. — Mas também não perdoa quem se recusa a se preparar. O conselho real foi claro. A proposta de Tharion foi aceita por unanimidade. O casamento acontecerá.

Elizabeth desviou o olhar, encarando as paredes enredadas por folhas dançantes. Não falou de imediato.

— Ela nem me conhece. Nenhum de vocês me perguntou se eu queria isso.

— Se perguntássemos, você fugiria para os jardins. Como sempre faz — disse Cyra, e então completou com suavidade: — Eu preferia mil vezes vê-la livre. Mas herdeiros de casas antigas não nascem para seguir desejos. Nascem para sustentar reinos.

Um silêncio caiu entre mãe e filha, denso como névoa mágica.

Então Elizabeth respirou fundo, mais contida, mais resignada. Ainda com faíscas nos olhos.

— Se é pra me prenderem… que ao menos me deixem escolher o tipo de corrente.

Cyra a observou por um momento. Não disse nada. Mas nos olhos — nos olhos havia um traço de dor escondido, o amor de uma mãe que moldava a filha para um mundo que não perdoava delicadezas.

E foi Belar quem, por fim, interrompeu o silêncio:

— A Rainha de Tharion deve enviar um emissário nos próximos dias. Talvez, Alteza... talvez conhecê-la antes de julgá-la possa aliviar a transição.

Elizabeth deu um sorriso enviesado, quase travesso.

— Ou me dar mais ideias para fugir.

Cyra fechou os olhos por um breve instante.

— Por todos os deuses antigos, Elizabeth… pelo menos lave os pés antes de representar esta casa.

Elizabeth ficou em silêncio por um tempo, olhando para o chão de pedra polida, onde as raízes encantadas da árvore central do palácio serpenteavam sob seus pés. Por mais que tentasse manter o tom leve — com suas piadas e escapadas —, as palavras da mãe ainda pesavam no peito como grilhões dourados.

Ela apertou o livro contra o corpo.

— Se o pai estivesse aqui… ou o tio Arvon... — murmurou, com a voz mais baixa. — Eles nunca teriam permitido isso. Teriam defendido meu direito de escolher. Teriam... me ouvido.

Cyra se moveu no trono, mas não respondeu de imediato. O nome do irmão,Arvon, ecoou como um feitiço esquecido. A sala, antes tão iluminada, pareceu perder um pouco do brilho das janelas. As folhas nas colunas estremeceram levemente, como se sentissem o peso da lembrança.

— Não fale o nome deles com essa leviandade — respondeu Cyra, com um fio de dor na voz. — Você era apenas uma criança quando eles partiram. Não os conheceu como eu conheci.

— Mas eu lembro. Lembro dos olhos do pai quando ele me colocava nos ombros. Do jeito como o tio ria das minhas invenções mágicas... — Elizabeth falou rápido, como se quisesse proteger a memória. — Eles me deixavam ser eu mesma.

Cyra fechou os olhos por um instante. A dor era antiga, mas não cicatrizada. Ela se levantou, a postura ainda impecável, mas os ombros tensos. Aproximou-se lentamente da filha, e seu olhar estava mais duro do que antes.

— Você acha que eu não daria tudo para tê-los aqui? — sussurrou, com um tom tão calmo que parecia cortar mais que gritar. — Você acha que não carrego esse peso todos os dias, mesmo quando o reino me exige compostura? Eu os amava, Elizabeth. Perder os dois em uma única estação quase me matou.

Elizabeth abaixou os olhos, agora arrependida da provocação. Mas o dano estava feito.

— Mãe, eu só...

— Não — cortou Cyra, retomando o tom real, agora mais frio. — Chega por hoje.

Ela se afastou, o rosto já cuidadosamente composto outra vez.

— Vai para seus aposentos. Nada de jardim, nada de biblioteca. Três horas com a mestra Talwyn. Disciplinas antigas. Escuta, retórica, e história de tratados. — Ela fez uma pausa. — E com calçados, desta vez.

Elizabeth deu um passo para trás, o rosto ardendo entre orgulho ferido e arrependimento verdadeiro. Mas não respondeu. Só assentiu uma vez, baixando a cabeça.

Cyra observou a filha sair em silêncio, e quando a porta se fechou atrás dela, só então deixou escapar um longo suspiro. Um que carregava tanto amor quanto cansaço.

Ao lado, Belar não disse nada — mas o olhar compassivo que lançou à rainha dizia tudo.

— Ela tem o coração do pai a energia do tio— murmurou ele, enfim.

— Sim — respondeu Cyra, quase num sussurro. — E o fogo do meu irmão.

E enquanto o salão se esvaziava, a brisa voltou a soprar por entre as cortinas. Mas agora, soprava com um toque mais frio.

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Comments

Daiane

Daiane

Impactante!

2025-07-01

0

Daiane

Daiane

Muito sacrifício 😅😅

2025-07-01

0

Ver todos

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