O sol já havia passado seu auge quando os portões dourados de Elvar se abriram para o emissário de Tharion.
Vestido com uma capa escura de viagem, marcada com o símbolo do Falcão Prateado, o cavaleiro entrou em passos firmes pelo corredor principal do palácio de Vidraluz — onde os vitrais lançavam reflexos coloridos pelo chão de mármore branco, como se a luz ali também tivesse sido ensinada a obedecer.
À frente do trono elevado, rodeado por colunas de pedra viva entrelaçadas com heras encantadas, Rainha Cyra Elvar o aguardava sentada em postura impecável. Seus cabelos longos,, estavam presos em uma coroa de folhas douradas, e os olhos avaliavam cada movimento do mensageiro com um ar frio, ainda que controlado.
Ao seu lado, o conselheiro — um homem de meia idade, magro e silencioso, com olhos que raramente piscavam — observava como se pudesse enxergar por trás das palavras ainda não ditas.
— Em nome de Sua Majestade Helena de Tharion — anunciou o emissário, curvando-se com respeito, mas sem temor — trago resposta à proposta enviada pela Coroa de Elvar.
Cyra assentiu com um gesto mínimo da cabeça, e o emissário abriu o pergaminho selado, mas não leu em voz alta. Em vez disso, entregou diretamente nas mãos de Ser Belar, que passou os olhos no conteúdo em silêncio.
Um pequeno músculo na mandíbula de Cyra se contraiu.
— Nenhuma resposta concreta. Nenhum aceite — disse o conselheiro, erguendo os olhos para ela. — Apenas... um pedido por mais tempo. Observação. Estudo.
O emissário manteve a postura, mas havia algo nos olhos dele que sugeria o que não estava escrito.
Cyra levantou-se lentamente.
— Então… a rainha de Tharion precisa de mais do que uma aliança com a Casa Elvar? Precisa de provas? — Sua voz era doce como mel quente… e igualmente perigosa. — Talvez pense que minha filha seja uma criança de jardim. Ou que Elvar esteja à beira do colapso?
— Sua Majestade Helena afirma respeitar o legado de Elvar… — começou o emissário, cauteloso — mas considera prudente conhecer a futura esposa antes de qualquer decisão definitiva. Palavras exatas: “Um reino não se une apenas por nomes e brasões, mas por pessoas reais.”
Cyra sorriu — um sorriso frio, de alguém que conhece bem o jogo por trás das palavras.
— Diga à rainha de Tharion que Elvar não enviou uma oferenda. Enviou uma proposta. E que minha filha pode ser desajeitada em vestidos e rebelde em etiqueta… mas carrega o sangue dos Guardiões de Lysar. E se ela quiser ver do que somos feitas… que venha olhar nos olhos, não nas cartas.
— Como desejar, Majestade — respondeu o emissário, com uma última reverência.
Quando ele se virou para sair, não percebeu a presença atrás de uma das colunas, nas sombras tingidas de azul pelos vitrais. Elizabeth, o rosto ainda sujo de terra e folhas presas ao cabelo, ouvia tudo em silêncio. Os olhos grandes, curiosos e inquietos, captavam cada palavra dita — e não dita.
Ela mordeu o lábio, sentindo um estranho calor no peito. Era irritação? Medo? Ou… excitação?
"Uma rainha que precisa estudar antes de aceitar…" pensou, deitada sobre os joelhos, sorrindo consigo mesma. "Veremos quem vai estudar quem, majestade."
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O céu de Elvar começava a se tingir de roxo suave quando Elizabeth, após se esgueirar por corredores vazios e jardins silenciosos, finalmente se escondeu atrás da fonte esquecida, perto da muralha norte.
Ali, uma pequena passagem entre as pedras levava a um antigo santuário de raízes, uma câmara natural escondida sob o castelo, onde a luz do fim do dia filtrava-se pelas frestas e dançava sobre os galhos entrelaçados. Era úmido, perfumado de folhas e musgo, com pequenas flores que só floresciam à sombra — e no centro, um ninho de almofadas, livros abertos, pedaços de doces escondidos e uma lanterna encantada.
Era seu mundo.
E ela não estava sozinha.
— Calyraaa… — chamou Elizabeth em sussurros, esgueirando-se para dentro com um meio sorriso.
De dentro de um buraco entre as raízes, uma luz dourada se acendeu de repente, girando no ar com graça até revelar uma fada de asas finas como cristal e cabelos cor-de-lua. Usava um vestido feito de pétalas secas e carregava uma pena menor que um dedo, que usava como vara mágica.
— Você sumiu o dia inteiro! — reclamou Calyra em sua voz aguda e musical. — Não me diga que foi outra vez para o lago comer maçãs roubadas…
— Quase isso — respondeu Elizabeth, jogando-se nas almofadas com um suspiro alto. — Vi o emissário de Tharion. Ouvi a conversa toda.
Calyra, como sempre, flutuou diretamente para a testa de Elizabeth e pousou ali, franzindo a testa em miniatura.
— Eles vieram por causa da rainha, não foi? A de olhos verdes e coração de pedra?
— Ela mesma — disse Elizabeth, virando-se de lado. — Disseram que ela ainda não decidiu se vai aceitar o casamento. Que… quer me estudar. Como se eu fosse um livro velho ou um feitiço perigoso.
Calyra sentou-se em seu ombro e cruzou as perninhas.
— Talvez você seja perigosa.
Elizabeth deu uma risada curta.
— Não sou. Só sou… eu. Desajeitada, barulhenta e, segundo minha mãe, insuportável.
Ela virou os olhos para cima, observando a luz mágica da lanterna dançar nas raízes do teto. Ficou um instante em silêncio.
— Mas… por que será que ela é assim? — perguntou, num tom mais baixo, quase para si mesma. — A rainha Helena. Todos dizem que ela é impiedosa. Fria. Que ninguém consegue sequer encará-la por muito tempo. Como alguém assim… aguenta ser tão dura o tempo inteiro?
Calyra se deitou sobre o pescoço de Elizabeth, como uma gata minúscula.
— Talvez ela não aguente. Talvez ela só... precise.
Elizabeth puxou uma das pétalas do vestido da fada, distraidamente.
— Ou talvez tenha esquecido como não ser.
Houve um silêncio confortável no esconderijo. Lá fora, as cigarras começavam a cantar.
— Eu a imagino como uma estátua de pedra no meio de uma tempestade — murmurou Elizabeth, os olhos semicerrados. — Inabalável. Mas… e se por dentro ela for só uma menina com medo de desmoronar?
Calyra bocejou.
— Ou uma menina que nunca teve tempo pra aprender a desmoronar.
Elizabeth ficou quieta. Então sorriu, devagar.
— Acho que quero conhecê-la. De verdade. Nem que seja só pra descobrir se ela realmente vira pedra quando sorri.
A fada deu um risinho.
— E se ela for tudo isso mesmo, Lizzie? Fria, cruel e sem espaço pra você?
Elizabeth deu de ombros, com o brilho travesso nos olhos:
— Então, talvez, eu precise bagunçar o castelo dela só um pouquinho.
As duas riram baixinho. E por um instante, no meio do santuário secreto entre raízes e poeira mágica, não havia casamento arranjado, tronos distantes ou decisões políticas. Só uma menina curiosa... e uma fada leal.
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O salão privado de Cyra era um aposento feito de pedra antiga e tapeçarias bordadas com os brasões das Seis Casas de Elvar, pesadas e silenciosas como sentinelas. Estava tudo como sempre — as janelas altas, as colunas entalhadas com glifos de proteção, os incensos acesos para afastar maus presságios.
Tudo… menos a rainha.
Cyra caminhava de um lado para o outro, os passos firmes e contidos. A longa capa verde-escura arrastava-se pelo chão de mármore entre as faíscas do entardecer que escapavam pelas janelas. As mãos, normalmente imóveis como as de uma estátua em oração, agora se apertavam uma contra a outra, como se quisessem conter o turbilhão que crescia por dentro.
— "Precisa de mais tempo." — repetiu em voz baixa, as palavras escorrendo com desdém. — "Estudar a princesa antes de tomar uma decisão."
Ela parou. Os olhos dourados— os mesmos que um dia foram doces, mas há anos aprenderam a não se permitir — brilharam com algo entre incredulidade e raiva contida.
— Estudar?! Como se minha filha fosse uma peça de porcelana. Como se a Casa Elvar fosse... descartável.
Ser Belar, sempre à sua sombra, permanecia em silêncio. Observava, mas não interferia. Sabia que havia momentos em que até mesmo a rainha precisava ferver antes de esfriar.
Cyra respirou fundo, caminhou até a janela. Do alto, podia ver o jardim real, onde Elizabeth costumava fugir — onde, naquele exato momento, talvez estivesse inventando mundos ou conversando com a brisa como fazia quando criança.
Seu coração apertou.
— Lizzie não está pronta pra isso — sussurrou. — Ela sonha com dragões de fogo e vive com a cabeça entre nuvens. Como... como posso mandá-la para uma mulher como Helena de Tharion?
Virou-se, os olhos ardendo. Não de fraqueza — mas de fúria silenciosa. De medo de mãe.
— Ela pode ter vencido guerras, Belar. Pode ter domado juízes e mantido ladrões de joelhos. Mas... ainda é uma garotinha escondida atrás de uma coroa. Só que diferente da minha, a dela é feita de gelo.
O conselheiro inclinou a cabeça com leveza, voz firme como uma pedra num rio:
— Helena não é tola. E tampouco fraca. Mas... é perigosa, sim. Porque já perdeu tudo que poderia amolecê-la.
Cyra fechou os olhos por um instante. A lembrança de seu irmão — pai de Elizabeth — e de seu marido, ambos mortos pela guerra antiga, ainda ardia. E o vazio que deixaram era preenchido apenas por aquela menina rebelde, cheia de sonhos grandes demais para caber em qualquer trono.
— E se ela... apagar Lizzie? Se quebrar o que resta do coração da minha filha?
Ser Belar hesitou. Depois falou, num tom baixo, quase reverente:
— Ou talvez... Lizzie quebre o dela, Majestade.
Cyra fitou o velho amigo. Não disse nada.
Apenas voltou à janela, vendo o céu escurecer em tons de vinho e azul profundo. Ao longe, uma estrela solitária começava a brilhar.
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Atualizado até capítulo 30
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