Pão quentinho

A luz da manhã voltava a banhar a floresta. A casa de madeira estava silenciosa, exceto pelo som distante da água do córrego correndo suavemente, acompanhado do farfalhar das folhas ao vento. Dentro do quarto, dois corpos ainda estavam deitados sob cobertas leves, aquecidos mais pela presença um do outro do que pelo clima em si.

— Eu sonhei… com um pão. — murmurou Eluinya, a voz abafada enquanto se aninhava no peito de Ryn.

— Com o quê?

— Um pão. Quentinho. Saindo do forno. Aquele com casquinha estalando, lembra?

Ryn, ainda meio acordado, soltou um leve suspiro.

— Você sonha com pães e me acorda por isso?

— Claro. Quem mais eu ia incomodar com meus desejos matinais?

Ela deslizou os dedos pela barba dele, despretensiosamente.

— Tá maior… — disse em tom baixo. — Um dia desses, vai ficar preso nas tábuas da cama.

— Tô pensando em cortar. — murmurou ele, olhando pro teto.

Ela ergueu a cabeça com um sorriso.

— E eu tô pensando em pintar o cabelo de verde.

— Você nunca pintaria o cabelo.

— E você nunca cortaria essa barba. Olha só, tá tudo em equilíbrio.

Ele bufou, e ela riu gostosamente, aquele riso leve que enchia o espaço sem esforço. Ryn se virou, puxando-a com o braço por baixo dela. O cabelo dela, longo, escuro e sedoso, se espalhava pelo colchão como um manto noturno. Ele o afastou dos olhos dela, e por um momento, ficou só observando. A forma como os fios caíam pela clavícula, como os olhos dela brilhavam mesmo naquela luz fraca.

Ela notou.

— De novo com esse olhar?

— Eu tô esperando você parar de falar.

— Mentirosinho.

Ela o beijou de leve na bochecha e então se levantou, nua, puxando os cabelos para o lado ao caminhar até o lavatório. Ele a observou mais um pouco antes de finalmente sair da cama.

Depois do desjejum, com frutas e raízes cozidas, Eluinya foi cuidar da horta enquanto Ryn recolhia galhos maiores para lenha. Ela usava seus poderes como sempre — sementes brotavam, folhas mortas recuavam, o balde d’água levitava até o canto da varanda.

Ryn, por outro lado, parou diante de um tronco caído e ficou apenas olhando. Seus pensamentos, distantes, puxaram uma memória difusa — o som de carros na rua, o gosto de um café instantâneo barato, a sensação de acordar para um trabalho que odiava.

"Era terça-feira", pensou.

Sem pensar, ele flexionou os dedos e estendeu a mão. O chão tremeu levemente sob seus pés, e uma pedra enorme, como se puxada do interior da terra, ergueu-se até a altura de sua cabeça. Ele girou o pulso, e a pedra começou a se fender em formas geométricas perfeitas, como se alguém a esculpisse com mil ferramentas invisíveis ao mesmo tempo.

Em segundos, havia ali uma escultura de espiral lisa, absurdamente detalhada, pairando a poucos centímetros do chão.

Ele a olhou por alguns segundos.

— Melhor que academia. — murmurou.

Eluinya retornou com uma pequena cesta de ervas nas mãos.

— Estava pensando em ir até a vila hoje. Quero trocar algumas folhas de salbrius e ver se encontro tecido para novas cortinas.

Ryn virou-se lentamente, ainda observando a espiral flutuante.

— Sozinha?

— Você quer ir comigo?

— Não.

— Então... — ela sorriu, divertida, — resposta respondida.

Ele deu de ombros, mas seus olhos a seguiram até a entrada da casa.

— Fica longe da estrada. E cobre o rosto.

Ela girou sobre os calcanhares e ergueu os braços dramaticamente.

— Ah, o ciumento acordou!

— Não é ciúmes. É cautela.

— Claro, claro. Cautela. — Ela se aproximou e o beijou no queixo. — Eu volto antes do anoitecer. E se eu trouxer aquele pão do sonho?

— Traga dois.

Ela riu mais uma vez e partiu pela trilha secreta entre as árvores.

A manhã estava fresca, como quase sempre no Círculo Intermediário da Floresta de Mavernia. Uma névoa fina serpenteava entre as raízes grossas das árvores e subia pelos troncos altos como se a própria floresta respirasse.

Eluinya puxou o capuz para frente, cobrindo os cabelos negros que lhe caíam até as coxas, e ajeitou o manto escuro que escondia sua silhueta. O cesto nos braços levava algumas ervas recém-colhidas e vidrinhos para troca. Os passos dela eram leves e silenciosos, guiados por memórias quase instintivas do caminho até a vila mais próxima.

Assim que se aproximou da fronteira entre o Círculo Intermediário e o Externo, ela parou. A poucos metros à frente, encobertos parcialmente por galhos e sombra, um acampamento estava montado.

Ela não precisava ver os rostos para saber do que se tratava. A expedição havia chegado.

Pôde sentir a energia de Elyra Solvini — estável e intensa, como um rio contido — e também a inquietação de Kelleorn o líder. Ela os observou por um instante, enquanto ajustavam equipamentos e estudavam o terreno.

Então, Elyra virou o rosto bruscamente na direção de Eluinya. Os olhos dela brilharam levemente, analisando a Arkheia ao redor.

Mas onde deveria haver uma presença… não havia nada.

Eluinya desaparecera num piscar de olhos, como uma folha arrastada pelo vento.

Reapareceu metros adiante, no alto de uma elevação, entre as árvores, sorrindo para si mesma enquanto ajeitava o capuz.

Com passos firmes e serenos, retomou o caminho para a estrada principal. O tempo era curto — e ela ainda queria aquele pão do forno da senhora Irvian.

A vila de Terenh era simples, mas viva. Casas de pedra e madeira, telhados com musgo, crianças correndo com encantamentos simples nas mãos e velhos sentados sob pérgulas discutindo as glórias de batalhas que nunca travaram.

Eluinya caminhou entre as pessoas sem chamar atenção. Na verdade, muitos ali já a conheciam como "a moça das ervas", que vez ou outra aparecia em silêncio e trocava folhas por sementes raras ou tecidos simples.

— Ah, minha flor negra! — exclamou a velha Irvian, com os olhos quase fechados pela idade, mas ainda cheios de vigor. — Trouxe mais dessas folhas que curam a tosse?

— Sim. E trouxe flores de orlen secas também.

— Que maravilha! E vai levar o pão de sempre?

— Dois, hoje. Um pra mim, outro pro rabugento lá de casa.

— Ah, então seu marido ainda está vivo. Pensei que já tivesse virado parte da floresta de tão quieto!

Eluinya riu suavemente, pegando os pães envoltos num pano limpo.

— Ele está bem… Só não fala muito.

— Homens que não falam muito amam mais fundo, dizem os velhos.

— Ou escondem mais fundo — respondeu Eluinya com humor, piscando.

Fez mais algumas trocas rápidas — pegou sementes novas, um pequeno vidro de óleo de cera e tecidos — e começou o retorno, com os pães ainda mornos perfumando o ar.

Na clareira do acampamento, Kelleorn ajeitava os ombros sob o peso da armadura de couro leve.

— Tudo pronto. Vamos.

Ao seu lado estavam Elira Solvini, agora no 3º Círculo, Kevin Draith, Maelis Thorne, Orin Thal, Varnas, Therys, e Tennar, o rastreador silencioso do grupo.

A expedição avançava pela borda do Círculo Externo da floresta, com cautela, os olhos atentos a cada movimento. A Arkheia ali era diferente — mais densa, mais viva. Não era hostil, mas também não era acolhedora. Era como atravessar território de algo que ainda não os havia reconhecido como ameaça… ou talvez apenas não os considerasse dignos de atenção.

Maelis lançou uma pequena projeção ilusória à frente, espantando um grupo de predadores de sombra que aguardavam entre troncos.

Therys, com sua maestria elemental, manipulava o vento para farejar perigo.

Orin, como sempre, parecia ansioso por um confronto.

— Essas coisas não atacam de verdade. Estão nos testando.

Elyra respondeu sem desviar o olhar do fluxo da Arkheia:

— Testando… ou avisando.

Logo à frente, Tennar ergueu a mão, parando o grupo. Ele apontou para marcas no chão. Garra. Sangue seco.

Uma criatura surgiu entre os galhos: um Jarkh’suun, um predador da névoa.

Kellior fez o sinal de dispersão. O grupo se dividiu rapidamente.

Foi uma luta breve, coordenada, sem perdas. Mas os olhos do animal antes de cair… transmitiam algo. Não selvageria. Mas inteligência.

Ao final, suando e em alerta, o grupo retomou a trilha.

— Continuamos? — perguntou Kevin.

— Por enquanto, a floresta está tolerando nossa presença. Vamos até onde ela permitir. — respondeu Kellior.

Enquanto isso, em Edevan, capital do Império homônimo, dentro do palácio do Trono Escarlate, dois homens estavam reunidos a portas fechadas.

O imperador mantinha as mãos entrelaçadas diante de si, o olhar firme. À sua frente, seu conselheiro de confiança, Senneth Iros, segurava um pergaminho aberto.

— As leituras da Assembleia estão consistentes. A Arkheia pulsa em regiões específicas. Mas há algo mais… — disse Senneth.

— Continue.

— Encontramos mais menções antigas, esquecidas nas ruínas de Vir’Almora. Registros com mais de 300 anos. Eles falam de uma “ fusão de Relíquia de Essência”.

— Fusão você diz...— murmurou o imperador.

Senneth assentiu.

— Há também um padrão curioso. A instabilidade começou há exatamente vinte anos. E desde então, a Arkheia tem resistido a qualquer forma de sondagens e emitindo pulsos de instabilidade.

— A própria energia do mundo parece estar se fragmentando.

— E se a relíquia foi absorvida por um corpo humano e de fato foi fundida? — sugeriu Senneth, arriscando.

— Então a floresta não está apenas resistindo… ela está protegendo algo.

Silêncio.

— A expedição?

— Já está em curso. Kelleorn lidera. Elyra o acompanha. Com sorte, não teremos apenas respostas… mas uma chance de restaurar o equilíbrio.

O imperador levantou-se e caminhou até a janela de cristal vermelho.

— Ou de desencadear algo pior.

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