Calmaria antes da tempestade

A luz da manhã atravessava as frestas entre as árvores, dançando sobre o chão coberto de musgo da clareira. A casa construída por Ryn, feita de madeira escura e bem polida, exalava o aroma fresco de resina e ervas secando em cordas penduradas. O som de uma panela borbulhando vinha da cozinha aberta, junto ao estalar do fogo que aquecia a chaleira.

Eluinya estava ajoelhada perto da lareira, mexendo algo dentro de uma tigela com um sorriso suave no rosto. Seu longo cabelo negro, que escorria até a cintura, estava preso de forma improvisada com um laço de couro. A blusa simples de linho pendia suavemente de seu ombro, e sua silhueta era tão familiar àquela casa quanto o próprio cheiro de madeira fresca.

— Você queimou o chá da manhã ontem — disse ela, lançando um olhar de canto para Ryn, que à observava calado da varanda, encostado em uma viga.

Ele não respondeu. Seu olhar ia do vapor saindo da panela para ela. Então desviou, fingindo desinteresse.

— Eu disse que chá não precisa ferver como se fosse poção de guerra — ela continuou, divertida.

Ryn soltou um suspiro leve, caminhando para dentro da casa secando as mãos num pano surrado.

— A culpa foi da lenha — murmurou, sem emoção.

Eluinya riu baixinho, balançando a cabeça.

— Claro, claro... sempre a lenha. Nunca você.

Ela sabia que ele se importava. Mesmo com sua aparência indiferente, ele notava cada detalhe — a temperatura certa da água, o tipo exato de flor seca que ela gostava no chá. Sabia que, se ela espirrasse de manhã, no dia seguinte a cama teria uma nova pele de animal que ele mesmo caçara para aquecê-la melhor.

— Falando nisso... — ela ergueu os olhos. — Estamos ficando sem raízes de lúcia e frutas de inverno. Se formos até a cidade, talvez encontremos frescas.

Ryn fez uma careta discreta, como se fosse um fardo ir até a cidade. Mas ela já conhecia aquele olhar.

— Eu posso ir sozinha, se preferir — provocou.

Ele estreitou os olhos dourados para ela.

— Não.

Ela arqueou uma sobrancelha, já esperando a resposta.

— Hm... que surpresa.

Ele se virou lentamente para pegar o manto pendurado ao lado da porta.

— Você se perde até na trilha de casa. Vai acabar caindo em um buraco e me dando trabalho. — Disse ele enquanto amarrava os longos cabelos num coque desalinhado.

— É isso ou... — ela se aproximou, o olhar brincalhão

— ...você só gosta da minha companhia.

Ele lançou um olhar frio, mas seus olhos o traíam com um calor contido.

— Hm.

Eluinya riu.

— Te peguei.

E então, como sempre faziam, saíram juntos pela trilha que cortava a floresta. Os animais afastavam-se silenciosamente quando sentiam a presença de Ryn, e mesmo as árvores pareciam inclinar levemente os galhos quando ele passava.

Vestiam-se com mantos de capuz, simples e largos, para não chamarem atenção. Ainda assim, era difícil não reparar neles — principalmente nela. Mesmo encapuzada, sua beleza tinha um brilho que desafiava o olhar comum.

Chegando à cidade mais próxima, o mercado estava vivo com vozes, aromas e sons de carruagens de carga. Ryn caminhava sempre de mãos dadas ao lado dela, em silêncio, como uma sombra que observava tudo. Seus olhos não descansavam um segundo. Cada vez que alguém desviava o olhar para Eluinya, ele notava.

E então aconteceu. Um rapaz — talvez um dos aprendizes de algum boticário — olhou direto para ela, hipnotizado.

Ryn parou de andar.

Eluinya sentiu o movimento e segurou o braço dele com delicadeza.

— Amor, não. Deixa. Ele nem viu direito...

Mas era tarde.

O rapaz piscou uma, duas vezes. E caiu, desmaiado, como uma marionete sem cordas.

Ryn seguiu andando como se nada tivesse acontecido.

Eluinya segurava o riso, enquanto cochichava ao lado dele:

— Você é impossível.

— Ele olhou demais — respondeu Ryn, com neutralidade impassível.

— Eu sou sua, não preciso desse show todo... — ela apertou o braço dele — ...mas ainda assim, é fofo. A sua maneira.

Ryn a olhou de lado, sem expressão, mas desviou rapidamente o olhar.

Eluinya sorriu. Ele não admitiria nunca — mas ela sabia.

A cidade seguia seu ritmo enquanto eles compravam os ingredientes calmamente. O sol passava por entre as nuvens quando, ao cruzarem a praça central, Ryn parou por um segundo. Seus olhos dourados se fixaram adiante.

Eluinya também sentiu o olhar de Ryn pra alguem na multidão mas nao prestou atenção.

A frente, as pessoas começaram a abrir caminho, a sensação era densa. Uma energia coletiva, refinada, vindo de pessoas com treino. A equipe de expedição do Conclave estava ali.

Kaleorn, Elyra, Keven e os outros estavam parados ao lado de uma carruagem de suprimentos. Elyra virou-se levemente — e os olhos se cruzaram.

Silêncio.

Ryn não disse nada e desviou o olhar por um breve momentoe seguiu seu caminho. Mas o para Elyra, naquele breve momento, naquele rapido olhar o tempo pareceu pausar por um momento.

Eluinya segurou seu braço, firme.

O pássaro que voava acima da praça caiu, seco, sem vida. Nenhuma ferida. Nenhuma explicação.

As pessoas ao redor não perceberam o que aquilo significava.

Ryn e Eluinya já estavam dobrando uma esquina, sumindo por entre a multidão.

E por trás da rotina tranquila, algo sutil mudava.

O céu estava limpo, o clima sereno. Mas, no fundo, a Arkheia se remexia como um véu antes da tempestade.

---

As últimas luzes do dia filtravam-se por entre as árvores colossais que formavam a entrada natural da Floresta de Mavernia. A expedição de oito membros caminhava em silêncio, os passos cada vez mais cautelosos conforme a vegetação se adensava.

Kaleorn ergueu a mão, pedindo parada.

— Acampamos aqui. Ainda estamos no limite externo.

— Estranho — murmurou Keven. — O ar muda quando a gente chega perto. É como se… ficasse mais denso.

Elyra parou ao lado de uma raiz elevada e abriu o grimório.

— É a Arkheia. Silenciosa, mas... densa. Essa pressão é como se algo estivesse nos observando.

— Como tudo por aqui — comentou Noelle, ajustando a lâmina curta na cintura.

Gerian deu um passo à frente.

— É só uma floresta. E a gente tá preparado.

— É só até não ser — retrucou Lioren, afinando a harpa sem olhar pra ninguém.

Tarn e Aria preparavam o perímetro. As tochas espirituais acesas formavam um círculo suave, quase tímido, como se a luz pedisse licença.

— Alguma alteração nas runas? — perguntou Kaleorn, olhando de relance para Elyra.

— Nenhuma significativa. Mas... parece que algo adormecido está por perto.

— Então amanhã seguimos com cautela.

[– Interior da casa de Ryn]

O aroma da lenha queimando misturava-se ao de alho selvagem refogado em óleo claro. A cozinha de madeira trabalhada vibrava com calor caseiro. Panelas tilintavam, e do lado da lareira, Ryn cortava raízes com precisão.

— Vai ferver tudo se continuar nesse ritmo — disse Eluinya, mexendo com a colher de madeira, rindo. Seu cabelo negro, sedoso e liso, deslizava até a altura das coxas, balançando levemente a cada passo.

Ryn não respondeu, mas olhou de relance. Um segundo a mais do que costumava.

— Tá me olhando de novo?

Ele pigarreou.

— Só... tava vendo se a água já borbulhou.

Ela se aproximou com um sorriso travesso.

— E borbulhou?

— Ainda não.

Ela apoiou o queixo no ombro dele, abraçando-o por trás.

— Eu gosto quando você me olha assim. Mesmo quando tenta disfarçar.

Ele parou por um momento, observando as mãos dela em torno de sua cintura.

— Eu não disfarço. Só... olho rápido.

Ela riu, beijou sua bochecha e voltou para o fogão.

— Rápido demais pra ser sem intenção.

Depois do jantar, ele tirou a mesa e lavou a louça com a agua que estava em uma bacia.

Com a cabeça pra fora da porta do banheiro ela o chamou com um aceno sutil.

— O banho tá pronto. Vem.

Ele hesitou por um momento tao rapido quanto um piscar de olhos e caminhou até la, olhando a tina de madeira fumegante. Eluinya no banheiro estreito já tirava o robe com naturalidade, como se aquela intimidade fosse tão habitual quanto respirar. E para ela, era.

Ryn a seguiu, tirando o manto surrado e entrando na água com cuidado atrás dela. Silêncio entre eles, mas não desconforto. Ela encostou-se com as costas em seu peito e a cabeça em seu ombro fechando olhos e suspirando sentindo todo o cansaço acumulado se esvaindo.

— Você sempre foi quieto. Mas aqui... — ela sussurrou — ...é onde você fala mais comigo. No silêncio.

Ele apenas ergueu o braço, envolvendo-a devagar em um abraço.

— E você... fala até com o coração. beijando o lóbulo da orelha dela fazendo-a se encolher de arrepio e lançando um olhar afiado de canto enquanto Ryn sorria com um olhar cúmplice.

Na cama, envoltos em peles suaves e travesseiros de algodão selvagem, ela se aconchegou no peito dele, com a perna encima de sua barriga se aninhando pra dormir.

— Quando me olha daquele jeito... ainda me sinto bonita — disse, brincando com mamilo dele.

Antes que o dedo dela desse uma volta completa a mão dele parou a dela em um movimento rápido, puro reflexo e olhos fechados, se o rosto não estivesse corado o traindo.

Abrindo os olhos e olhando diretamente pra ela ele disse:

— Você não é bonita. É... tudo.

Ela sorriu, os olhos semicerrados.

— hehe...

Ele não respondeu. Apenas fechou os olhos, puxando-a mais para perto, sentindo o calor dela contra o peito. O mundo podia não importar. Mas aquele momento, sim.

[– Acampamento da expedição]

A noite havia caído por completo. A fogueira agora era só brasa baixa. Keven olhava para dentro da floresta, atento demais.

— Parece que tem olhos ali dentro.

— Tem — disse Elyra, sem desviar os olhos do grimório.

— Alguém já retornou dessa floresta? — perguntou Aria.

Kaleorn respondeu sem emoção:

— Ninguém.

Tarn ajeitava o arco.

— Então a gente vai ser os primeiros.

— Ou os últimos — murmurou Lioren, os dedos dedilhando uma nota seca.

O vento soprou de leve, e a névoa parecia ouvir tudo.

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!