Capítulo 2 – Ela não tem ideia do que está fazendo
Gabriel Vasconcello
Eu já estive em lugares que a maioria das pessoas nem sabe que existem. Florestas densas, cheias de armadilhas naturais. Bairros esquecidos, dominados pelo medo. E campos de guerra — silenciosos até o barulho de um disparo cortar o ar.
Nada disso me assustava.
Mas havia algo nessa casa... naquela menina... que me deixava inquieto de um jeito diferente.
Um jeito que eu não queria admitir.
Alícia.
O nome dela grudava na minha mente como um eco constante, irritante. Não porque ela era insuportável — mesmo sendo. Mas porque era... intensa. Aquele tipo de intensidade que te faz baixar a guarda antes mesmo de perceber.
— A casa precisa de um reforço aqui atrás também — murmurei para mim mesmo, analisando a janela lateral.
Eu tinha visto a expressão dela mais cedo, quando tirei a camisa. Achei que estivesse sozinha. E talvez, parte de mim quisesse mesmo que ela visse. A cicatriz, longa, profunda, torta... como se um animal tivesse cravado as garras em mim.
Talvez fosse um teste. Talvez eu quisesse ver se ela recuaria como todos os outros.
Mas ela não recuou.
Ela olhou. E mesmo que não tenha dito nada, seus olhos ficaram ali. Como se quisessem entender cada pedaço da dor que eu escondia sob a pele.
Idiota.
A garota era nova demais. Ingênua demais.
Eu não podia — não devia — deixar que ela ultrapassasse as barreiras que eu levei anos construindo.
De noite, decidi fazer a ronda. O bairro era calmo, mas o histórico recente dela me deixava em alerta. Voltei por volta das onze e percebi que a luz do quarto dela ainda estava acesa. Suspirei. Ela deveria estar dormindo.
— Adolescente mimada... — murmurei, balançando a cabeça.
Mas quando cheguei perto, vi a porta entreaberta. Ela estava sentada na cama, abraçando os joelhos, olhos arregalados como se estivesse esperando o pior.
— Tá tudo bem aí? — perguntei, mesmo sabendo a resposta.
Ela tentou fingir. Sempre tentava. Mas o medo estava estampado no rosto dela. A escuridão invadia as paredes como um vulto ameaçador, e ela estava paralisada.
— A luz queimou — disse, com a voz fraca.
Eu me aproximei e encostei na parede.
De perto, ela era ainda mais... pequena. Frágil. O tipo de fragilidade que te obriga a manter distância, porque se você chegar perto demais, corre o risco de se envolver. De querer proteger.
E proteção é uma droga viciante.
— Você tem medo do escuro? — perguntei, mesmo sabendo a resposta.
Ela negou com a cabeça, mas seus olhos diziam o contrário.
— Isso não é só medo. É pavor — completei. — Você já desmaiou por isso?
Ela hesitou. E então assentiu.
Droga.
Uma parte de mim se acendeu naquele momento. Algo que eu costumo manter adormecido. O instinto.
Não o policial.
O homem.
— Vou deixar a porta entreaberta — falei, com a voz baixa. — A luz do corredor vai ficar acesa. Não tem problema admitir que tem medo. O problema é fingir que não tem.
Ela me olhou por alguns segundos, e então murmurou:
— E a sua cicatriz? Você ainda tem medo dela?
Eu não esperava. Ela não tinha o direito de perguntar aquilo. E ainda assim, a pergunta me acertou em cheio.
— Todos os dias — respondi. — Mas aprendi a viver com ela.
E fui embora antes que ela visse o que aquilo tinha causado em mim.
Na manhã seguinte, saí pra abastecer e comprar algumas peças novas pras câmeras. Ao voltar, encontrei uma visita inesperada no portão: um moleque de blusa florida e tênis branco, sorriso folgado e cabelo bagunçado. E quem abriu o portão pra ele? Claro. Alícia.
— Oi, Lícia — ele disse, como se usasse esse apelido íntimo há anos. — Tava com saudade.
Travei.
— Quem é esse? — perguntei, cruzando os braços, a voz seca.
Ela se virou pra mim, como se tivesse esquecido que eu existia.
— Esse é o Murilo. A gente estudou junto.
Murilo. Ótimo.
— E o que ele quer?
— Eu vim só deixar um livro que ela me pediu. E... bater um papo — ele sorriu.
Papo o cacete.
— Ela não pode receber visitas sozinha. A casa está sob proteção policial. Você pode ir — falei, firme.
Murilo pareceu confuso. Olhou pra ela. Depois pra mim. E por fim, se virou com um aceno.
— Tá bom, cara. Relaxa. Foi mal.
Assim que ele saiu, Alícia fechou o portão com força e me encarou, furiosa.
— Qual é o seu problema? Ele é só um amigo!
— Não existe "só" quando o cara te olha daquele jeito.
— Que jeito?
— O mesmo jeito que um predador olha pra presa.
Ela riu, incrédula.
— Você tá com ciúmes, é isso?
— Tô fazendo meu trabalho — respondi, seco.
Mas por dentro, o sangue queimava.
Ciúmes.
Ela não tinha ideia do que estava falando.
E eu não tinha ideia do que estava sentindo.
Mais tarde, depois de um dia inteiro de tensão silenciosa, a encontrei sentada no sofá da sala, com um cobertor cobrindo as pernas e um livro aberto no colo. Mas ela não lia. Olhava para o nada. Os olhos perdidos.
— Alícia? — me aproximei, hesitante.
Ela me olhou.
E então, sem aviso, as lágrimas caíram.
— Eu odeio isso — disse entre soluços. — Odeio ser fraca. Odeio ter medo do escuro. Odeio depender de você.
Sentei ao lado dela. Não muito perto. Só o suficiente pra que sentisse que eu estava ali.
— Ter medo não é ser fraca. É ser humana.
Você não tem ideia do quanto é forte por conseguir levantar todo dia mesmo com isso tudo aí dentro.
Ela me olhou como se não acreditasse. E então encostou a cabeça no meu ombro.
O toque dela era leve. Quente. Dolorosamente suave.
Minha mão hesitou no ar. E então... desceu até a dela. Só pra segurar. Só pra lembrar que, por mais que eu quisesse fugir, ela já estava entrando. Rachando as paredes que eu passei anos construindo.
E talvez eu estivesse deixando.
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Atualizado até capítulo 53
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