Cicatrizes de Desejo

Cicatrizes de Desejo

Capítulo 01

Capítulo 1 – O homem que eu não pedi

Alícia Montenegro

Eu nunca acreditei muito nessa coisa de destino. Sempre achei que a gente colhia exatamente aquilo que escolhia. Mas naquele fim de tarde abafado de sexta-feira, quando o telefone da minha avó tocou e ela ficou pálida como quem ouve que a morte está à porta, comecei a pensar que talvez o destino tivesse um humor... peculiar.

— O quê? Um policial? — repeti, tentando entender. — Pra ficar aqui? Com a gente?

Ela assentiu, com os lábios franzidos e as mãos trêmulas. Estávamos na sala, o cheiro de chá de camomila preenchendo o ar, contrastando com a tensão que começava a se acumular.

— Disseram que é necessário. Que é pra sua segurança.

Segurança. A palavra ecoou em mim com gosto de ferro. Desde que comecei a receber aquelas mensagens estranhas no celular — aquelas que vinham de números desconhecidos, com frases ameaçadoras e meu nome escrito certinho — minha cabeça não parava. Mas pedir proteção? Jamais. Eu não era uma donzela em perigo. Ou pelo menos, gostava de acreditar nisso.

E foi nesse cenário que ele chegou.

A caminhonete preta parou em frente à casa com um ronco agressivo. A porta bateu com força. Eu já sabia que o homem que desceu não teria sorriso simpático nem olhos calorosos. E ainda assim, me peguei de boca aberta.

Ele era... grande. Enorme, na verdade. Ombros largos, braços fortes sob a camisa escura, calça jeans justa o suficiente para denunciar músculos que pareciam ter sido talhados à mão. O rosto sério, o maxilar travado, o cabelo castanho escuro cortado rente na lateral. Mas o que mais me chamou atenção foi o olhar. Intenso. Como se pudesse atravessar tudo e me desmontar por dentro.

— Alícia Montenegro? — ele perguntou, parando diante de mim com uma postura rígida demais pro ambiente pacato da minha casa.

— Você é o... policial? — minha voz saiu mais aguda do que eu gostaria.

— Gabriel Vasconcellos. Fui designado pra sua segurança.

— Ótimo — murmurei, cruzando os braços. — Exatamente o que eu não pedi.

Ele arqueou uma sobrancelha, mas não respondeu. Só olhou em volta, como se avaliasse a casa inteira em cinco segundos.

— A casa tem entrada pelos fundos? Quantas saídas? As trancas são reforçadas? — ele disparou, ignorando minha irritação completamente.

Revirei os olhos.

— Boa tarde pra você também.

Minha avó tentou suavizar a tensão com um sorriso nervoso, oferecendo café. Gabriel recusou. Claro que recusou. Ele parecia o tipo de homem que não se permitia prazer nenhum. Nem um gole de café. Nem um sorriso. Nada.

— Vamos ter que reforçar algumas coisas aqui. Não é seguro — disse ele, mais para si mesmo do que para nós. — E a partir de hoje, eu fico por perto. Sempre.

— “Por perto” quanto? — perguntei, desconfiada.

Ele me encarou.

— O suficiente pra garantir que você continue viva.

 

As primeiras horas com ele foram um pesadelo. Gabriel não falava muito, mas quando falava, era sempre com ordem, nunca com pergunta. E isso me irritava profundamente.

Ele começou a instalar câmeras nos pontos da casa e trocar as fechaduras. Eu observava tudo da varanda, de braços cruzados, tentando ignorar o calor sufocante e o fato de que ele suava sob a camisa justa. Não que eu estivesse olhando demais. Claro que não.

— Você sempre é assim? — perguntei quando ele passou por mim carregando uma caixa de equipamentos.

— Assim como?

— Mandão. Frio. Incomodado com a existência de outras pessoas.

Ele parou, virou-se devagar, e me encarou.

— Eu sou pago pra te proteger. Não pra ser simpático.

— E eu não te pedi pra vir aqui.

— Pois é. E eu também não pedi pra cuidar de uma adolescente mimada.

Aquilo me pegou de cheio.

— Mimada? — soltei uma risada sarcástica. — Você não me conhece.

— E espero não precisar. Meu trabalho não exige que eu goste de você. Só que eu evite que você morra.

Virei as costas, com o coração disparado — de raiva, claro. Não por causa do jeito como a voz dele soava rouca e profunda. Ou por causa do cheiro de couro e suor masculino que ele deixava pelo ambiente. Nada disso. Definitivamente.

 

Mais tarde, já com a noite caindo, a tensão se tornou palpável. Eu estava no quarto, tentando fingir que estava tudo normal. Luz acesa. Porta entreaberta. As mãos suando. O medo do escuro se acumulando como uma nuvem pesada sobre mim.

Ouvi passos no corredor. Meu coração acelerou. A luz da sala apagou por um segundo. Gemi baixinho e abracei os joelhos.

— Alícia?

Era a voz dele. Firme. Rígida. Mas com um fundo de preocupação.

— O que foi? — minha voz saiu trêmula, ridícula. Ele notou.

Ele empurrou a porta e entrou. Estava sem a camisa. O suor escorria em trilhas pela pele marcada. E ali, bem visível em suas costas, estava a cicatriz. Longa, irregular. Como se tivessem cortado ele com ferro quente.

— A luz da sala queimou. Vou arrumar amanhã. Você tem medo do escuro? — perguntou, encarando-me.

A vergonha me engoliu.

— Não é medo — menti. — Só não gosto de ficar no escuro... sozinha.

Ele suspirou, virou-se parcialmente e me mostrou as costas, como se não fosse nada.

— Isso aqui — ele tocou a cicatriz — é do tempo do exército. Missão na selva. Explosão. Quase morri. A única coisa que me manteve consciente foi a luz da lanterna presa no colete do meu parceiro.

Eu não disse nada. A imagem me atingiu com força. A dor dele. O passado que ele carregava com tanto peso.

— Às vezes a gente teme a escuridão porque já ficou preso demais nela — ele continuou, a voz mais baixa, mais... íntima. — E outras vezes, a gente se acostuma tanto com ela que se assusta quando alguém acende a luz.

Eu engoli em seco. Ele estava muito perto. O suficiente para que eu sentisse o calor do corpo dele, para que minha pele se arrepiasse toda.

— Eu não sou uma criança — sussurrei, sem conseguir evitar.

— Mas também não é uma mulher pronta pro mundo que eu conheço — respondeu ele, firme. — Só que isso não significa que eu vá te deixar sozinha.

Ficamos em silêncio. O clima carregado de algo que eu ainda não conseguia nomear. Mas era quente. E perigoso.

— Boa noite, Alícia.

Ele saiu do quarto. Mas aquela imagem dele... a cicatriz... os olhos... o calor... aquilo ficou comigo. Como uma promessa silenciosa.

E eu já sabia, no fundo, que aquela história estava longe de ser só proteção.

Era o começo de algo queimar lentamente — e quando queimasse, ninguém sairia ileso.

Alicia Montenegro (18 anos)

Gabriel Vasconcellos (32 anos)

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