O sol ainda surgia tímido no horizonte quando Celso entrou discretamente no quarto do filho. Carlos dormia encolhido entre os travesseiros, os braços ao redor do boneco de pano que Lavínia havia lhe dado meses atrás.
Celso parou ali por um tempo, observando. O coração apertado.
As palavras de Miguel ainda martelavam em sua mente.
“Minta. Diga a ele que Lavínia morreu. É a única morte que ela merece. Uma morte simbólica. Indolor.”
Ele não queria... mas talvez fosse mesmo necessário. Carlos estava começando a perguntar. Chamava pela mãe com frequência, às vezes no meio da noite, às vezes no jardim, onde dizia vê-la nas flores.
Era hora de dar um ponto final, mesmo que fosse doloroso.
Mais tarde, quando Helena chegou, Celso a esperava na cozinha, com expressão abatida.
— Preciso da sua ajuda — disse, baixo. — Miguel me aconselhou a contar ao Carlos que Lavínia... morreu.
Helena arqueou as sobrancelhas, mas não parecia surpresa.
— E o senhor vai mesmo fazer isso?
— Não tem outro jeito. Ele está sofrendo. Esperando por alguém que não vai voltar. Mas ele só tem dois anos, Helena. Como explicar a morte para alguém que ainda nem entende o que é o tempo?
Helena pousou a mão sobre o braço dele, com suavidade.
— A gente explica com imagens, com amor. Ele não precisa entender tudo. Só precisa sentir que está seguro.
Celso assentiu, engolindo em seco. — Me ajuda?
—
Naquela tarde, os três estavam no jardim. Carlos brincava com folhas e pedras, fazendo de conta que eram carros e monstros. Helena o chamou suavemente e apontou para o céu.
— Olha lá, Carlos... tá vendo aquela estrela bem alta, mesmo com o sol?
Carlos arregalou os olhos.
— ‘Tá brilhando! — ele apontou, animado.
Celso se sentou ao lado, com o filho no colo. Seu tom era baixo, quase um sussurro.
— Sabe, filho... às vezes, quando uma pessoa vai morar muito, muito longe, ela sobe lá pro céu. E vira uma estrelinha assim, ó... só pra continuar olhando pra gente.
Carlos o olhou, confuso.
— Mamãe?
Celso assentiu devagar.
— A mamãe ficou cansada, meu amor. O coração dela ficou dodói. Então ela foi descansar lá no céu. Mas ela ainda ama você. E agora, virou uma estrela linda, que brilha só pra te proteger.
Carlos ficou em silêncio, os olhinhos marejando sem entender por completo. Depois, encostou a cabeça no peito do pai.
— Mamãe ‘tá dormindo no céu?
Helena se aproximou, sorrindo com doçura.
— Está sim. E quando você sentir saudade, é só olhar pro céu e mandar um beijinho. Ela vai receber.
Carlos fez exatamente isso. Levantou a mãozinha, estalou um beijo no ar e riu, tímido.
Celso não conseguiu segurar a emoção. Apertou o filho com força, deixando as lágrimas caírem em silêncio. Helena desviou o olhar, respeitando o momento.
—
Mais tarde naquela noite
Carlos dormia tranquilo, abraçado ao boneco. Celso ficou em pé à porta, como se vigiasse o sono do menino.
Helena apareceu ao lado dele com uma xícara de chá.
— Você foi forte hoje.
— Não me senti forte. Me senti um covarde por ter que mentir pra ele.
— Às vezes, proteger também é escolher qual dor a gente evita. — Ela olhou para o menino. — E o senhor escolheu a dele, não a sua.
Celso suspirou, com a voz trêmula.
— Eu só quero que ele cresça livre dela. Da ausência dela. Da sombra dela.
Helena encostou no batente, suave.
— Ele vai crescer com amor. E isso é o que importa. O resto… o tempo transforma.
No céu, entre as estrelas tímidas que começavam a surgir, Celso buscou por alguma que parecesse familiar. E escolheu uma para chamar de Lavínia.
Mesmo que ela não estivesse lá.
Mesmo que fosse só uma mentira contada por amor.
Os dias seguintes à conversa no jardim foram delicados como vidro fino. Carlos, ainda pequeno demais para entender a profundidade da ausência, sentia em seu corpinho de dois anos uma mudança silenciosa. O nome da mãe, antes dito com frequência e esperança, agora saía com hesitação, como se ele próprio estivesse aprendendo a aceitar que ela não voltaria.
— Papai... mamãe virou estrela? — perguntava, de vez em quando, ao olhar para o céu.
Celso, com o coração apertado, apenas o abraçava e respondia com um aceno leve.
— Virou sim, filho... e ainda brilha por você.
No início, Carlos acordava chorando no meio da noite, chamando por Lavínia entre soluços confusos. Era Helena quem corria primeiro, quem o pegava no colo com ternura, balançava nos braços e cantava baixinho uma canção que ela própria cantava para o filho que já não tinha mais.
Celso, parado na porta, a observava, sentindo uma dor que era espelho da dela.
—
Com o passar dos dias, as noites foram se tornando menos turbulentas, e os dias mais leves. Carlos passou a brincar mais, a se distrair com os jogos simples que Helena inventava. A ausência da mãe ainda pairava no ar, como perfume que insiste em ficar mesmo quando o frasco se vai — mas já não doía com o mesmo corte.
Celso voltava do trabalho cansado, muitas vezes em silêncio, e encontrava a casa em ordem, Carlos limpo, alimentado, e um cheiro quente de comida no ar.
— Ele comeu bem hoje — dizia Helena. — Pediu dois pratos. Depois correu pro quintal e ficou falando com a estrela da mamãe.
Celso sorria de lado, meio triste, meio aliviado.
— Você tem sido um apoio... maior do que imagina.
Helena balançava a cabeça.
— Eu só estou tentando dar o que um dia também precisei. Depois que meu filho e meu marido se foram... só me restou servir. A dor me fez útil.
Foi naquela noite, sentados à mesa, que Celso soube a história que nunca tivera coragem de perguntar.
—
O marido de Helena fora um dos soldados mais leais da máfia Sol Nascente. Homem bom, silencioso, que preferia lutar por honra do que viver em paz com covardia. Quando Rafael Castellazzo foi capturado tentando salvar sua esposa Aléssia das mãos de um coreano de uma mafia rival a sol nascente , o marido de Helena se voluntariou para a missão de resgate.
Ela segurava a xícara de chá com mãos firmes, mas os olhos denunciavam o tremor da alma.
— Eles foram com a LME. Era um grupo pequeno. Infiltrado. Corajoso. Mas... não foram todos que voltaram.
Celso ouvia em silêncio, o peito cada vez mais apertado.
— Quando soube da morte... não chorei de imediato. Primeiro fui pegar meu filho na escola. Ele nunca soube que o pai morreu. Teve febre naquela noite. Dormiu no meu colo e, no dia seguinte... não acordou.
Celso fechou os olhos por um segundo. Era como se a dor dela tivesse ganhado eco na própria pele.
— Desde então — continuou ela —, cuidar de crianças com o coração ferido virou meu jeito de manter viva a memória dele.
—
A partir daquele dia, algo mudou entre eles. Não foi um laço romântico, nem um flerte mal escondido. Era mais íntimo, mais seguro. Como um irmão que encontra consolo numa irmã que não nasceu do mesmo sangue, mas da mesma dor.
Helena passou a ser mais do que a babá. Era a voz calma nos momentos em que Celso perdia a paciência com Carlos. Era quem fazia questão de preparar o jantar quando ele voltava exausto. Era quem dava conselhos simples, como alguém que conhecia a vida pela ponta dos dedos calejados.
E Celso passou a cuidar dela também — mesmo sem perceber. A chamava para almoçar com eles, dividia as tarefas, comprava flores para a casa dizendo que era para “alegrar o ambiente”, mas as deixava sempre na mesa onde Helena tomava café.
Carlos começou a chamá-la de “Tia Lena”. Às vezes, corria para os braços dela quando se machucava, antes mesmo de buscar o colo do pai. E Celso não sentia ciúmes. Sentia gratidão.
—
Num fim de tarde, os dois estavam sentados na varanda, observando Carlos brincar com pedrinhas no chão.
— Ele está mais leve — comentou Helena. — Acho que já começou a entender, mesmo sem entender.
Celso observou o filho e respirou fundo.
— Ele é forte... talvez mais do que eu fui.
Helena sorriu de leve.
— Porque ele tem você. E não está sozinho.
Celso a olhou, com sinceridade nos olhos.
— E nem eu.
A partir daquele momento, a casa não era mais apenas um lugar com dois corações machucados. Era um abrigo. Um recomeço silencioso. Um espaço onde a dor se transformava em companheirismo.
Helena, a babá. Carlos, o menino que perdeu a mãe. E Celso, o homem que aprendeu que amizade também pode ser família — e que algumas perdas se curam devagar, com o tempo e com mãos que não nos abandonam
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 68
Comments
Alessandra
Autora linda vai no seu tempo mais posta mais capítulos mais mais mais mais mais mais mais mais mais mais mais mais mais mais mais mais mais mais mais mais mais mais mais mais mais mais mais mais mais mais mais mais mais mais mais,não demora muito.
2025-04-11
3
Abreu Ana
será qnainda vai aparecer Ayla ou é a Helena mesmo, só nome trocado
2025-04-14
0
Marli Batista
É difícil mais não é impossível ele tem que recomeçar
2025-04-12
0