Mas deixa
Às vezes tenho paz
Deixa
Respire devagar
Deixa
Talvez seja melhor
Deixa
Às vezes erro o tom
- Ana Mulher - Deixa
O final de semana chega, e converso com Míria sobre passar a noite com mamãe. Ela aceita, então decido ir ao bar que frequentava escondida na adolescência para beber com alguns amigos da escola. Entro no carro e sigo para lá.
Ao chegar, fico parada observando a fachada, que agora está diferente: mais bonita e moderna. Respiro fundo e entro, dirigindo-me ao balcão.
— Boa noite, uma cerveja, por favor!
A bartender me entrega a bebida, e resolvo ficar ali mesmo. Enquanto bebo, percebo um olhar fixo em mim. Viro o rosto para ver quem é e me deparo com Ana, que sorri e pergunta:
— Curtindo a noite?
— Sim, ordem da minha psicóloga. Ela disse que eu preciso de um dia para me divertir, então pensei: vou beber! — Respondo, rindo, e dou um gole na cerveja.
Ela se aproxima e senta-se ao meu lado, sugerindo um brinde.
— E então, me conta sobre sua vida. — Pergunto, passando o dedo pela garrafa.
Ana me encara antes de responder:
— Nada demais. Passei dez anos da minha vida em um relacionamento, até que um dia minha noiva fez as malas e disse que eu fui um erro. Simplesmente foi embora. Passei anos me culpando, até descobrir que ela me deixou para casar com um amigo da faculdade.
Olho para seus olhos escuros, tentando decifrar o que sentem, e levanto minha garrafa.
— Um brinde a nós, que não temos sorte no amor.
Pisca para mim, e eu tento deixar o clima mais leve, mas ela quer saber mais:
— E você? Qual o motivo de não se dar bem com sua mãe?
Respiro fundo e rio, antes de responder:
— Fui expulsa de casa porque sou lésbica e mamãe não aceitou.
Ana sorri e comenta:
— Eu nem tinha reparado que você não gosta de homens. — E me pisca.
Dou um gole na cerveja antes de continuar:
— Passei uma noite na rua até que dona Francisca, uma senhora que tem um restaurante ao lado da rodoviária, me deu abrigo e trabalho. Depois disso, fui embora para a cidade.
Ana segura minha mão e diz:
— Poxa, você deve ter passado por tantas coisas...
Passamos horas bebendo, rindo e compartilhando nossas histórias. Quando olho no relógio, percebo que já passa das duas da manhã.
— Acho que preciso ir para casa.
Ana me observa por alguns segundos, seus olhos escuros fixos em mim, antes de perguntar:
— Você veio de carro?
Balanço a cabeça, confirmando, e ela pega a chave, colocando-a no bolso.
— Deixa o carro aqui. Vamos caminhando. A cidade é segura, e você bebeu demais.
Tento argumentar que estou bem para dirigir, mas acabo concordando. São apenas quinze minutos de caminhada, e a companhia de Ana me anima.
Quando chegamos em frente à minha casa, nos despedimos. Ela fica me observando entrar.
Vou direto para o meu quarto, tomo um banho e caio na cama, adormecendo rápido, sentindo-me mais leve.
Acordo cedo e preparo um café da manhã reforçado para Míria, que dormiu aqui. Chamo-a para tomar café comigo, mas antes que possamos comer, escuto a campainha tocar. Quando abro a porta, dou de cara com Ana, que sorri e me mostra a chave do carro. Ela foi buscá-lo no bar e veio entregá-lo para mim.
Fico sem reação por um instante e apenas consigo dizer:
— Entra e toma café da manhã com a gente.
Ela hesita, mas insisto, puxando-a levemente pelo braço. Apresento-a a Míria e, juntas, tomamos café enquanto conversamos. Depois de um tempo, Míria avisa que vai para casa descansar. Me despeço dela e agradeço por ter ficado com mamãe.
Volto para perto de Ana e comento:
— Nossa, você me surpreendeu. Não esperava sua visita, muito menos que fosse buscar o carro.
— Você não gostou da surpresa? — pergunta ela, distraída mexendo no celular.
Eu observo sua expressão por um instante antes de responder:
— Eu amei a visita.
Ana para de mexer no celular e me olha, sorrindo. Peço licença para conferir mamãe, que continua dormindo profundamente por causa da medicação forte.
— Eu vou embora — diz Ana, caminhando até a porta.
Na verdade, não quero que ela vá, porque me sinto sozinha aqui, mas a deixo ir.
— Volte sempre que quiser — falo, abrindo a porta para ela.
— Você pode me dar o número do seu celular?
Não penso duas vezes e anoto. Ana vai embora, deixando um sorriso no meu rosto.
Hoje seremos apenas eu e mamãe. Fico sentada em seu quarto, em silêncio, tentando me concentrar em um livro de poesias, mas não consigo. O silêncio é interrompido por sua voz sutil:
— Eu nunca te pedi desculpas... E quero pedir agora. Eu errei com você. Quando você foi embora e fiquei sem notícias, meu coração doeu tanto...
— Mamãe, por favor, não precisa — digo, tentando poupá-la do sofrimento, mas ela continua:
— Dona Francisca sempre me atualizava sobre você, mas meu preconceito falava mais alto. Eu deveria ter ido atrás de você. Só quando a doença chegou, entendi que estava errada. Não posso partir sem pedir desculpas.
As lágrimas ardem em meu rosto. Olho para ela, tão frágil sobre a cama. Apenas 65 anos, ainda com tanto para viver. Não é justo.
— Mamãe, eu perdoei a senhora. Por isso estou aqui. O passado é difícil de esquecer porque dói...
Não consigo terminar a frase. O nó na garganta me impede. Abraço-a e beijo suavemente sua testa. Depois, deito-me ao seu lado, e assistimos a um filme até que ela adormeça.
Saio do quarto com cuidado para não acordá-la. Na sala, pego o livro novamente, mas um poema me faz lembrar de Ana. Tento afastar o pensamento. Ela tem sido uma boa amiga. Mas o tédio me impulsiona a pegar o celular e enviar uma mensagem:
"Por que domingo é tão solitário e entediante?
Valéria 🌙"
Fico olhando para a tela por alguns minutos. Nenhuma resposta. Suspiro e volto para a leitura.
O som da notificação me faz erguer os olhos.
"Porque não estamos acostumadas a ficar com a nossa própria companhia.
Ana ☀️"
Leio a mensagem e penso em responder, mas desisto. Ela tem razão.
Guardo o celular e volto para o quarto de mamãe. Fico observando-a dormir e sussurro:
— Eu senti sua falta.
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Atualizado até capítulo 56
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