O despertador não tocou. Nem precisava. Serena já estava acordada muito antes do sol começar a tingir o céu de um azul pálido. O frio cortante da madrugada se infiltrava pelas frestas da janela mal vedada, fazendo-a se encolher ainda mais debaixo do cobertor fino.
O apartamento era pequeno, úmido e cheirava a mofo, mas era tudo que ela podia pagar. As paredes descascadas exibiam rachaduras finas como cicatrizes, e o encanamento fazia ruídos estranhos toda vez que alguém no prédio decidia tomar banho.
Ela se levantou, os pés tocando o chão gelado com um arrepio imediato. O chuveiro funcionava de maneira imprevisível, alternando entre água fervente e fria sem qualquer aviso. Depois de um banho rápido e um café forte demais, ela vestiu o casaco surrado e saiu para a rua, ajeitando a bolsa no ombro.
O bairro era um labirinto de ruas estreitas e vielas apertadas, um lugar onde a esperança parecia ter se esvaído junto com a última camada de tinta das fachadas dos prédios.
O vento cortante soprou contra Serena enquanto ela caminhava pelas ruas estreitas e escuras do bairro. O lugar era um labirinto de vielas apertadas, postes piscando de maneira irregular e o som distante de sirenes que nunca pareciam chegar a lugar algum. Ela não deveria estar ali tão tarde.
A mensagem de Melanie havia chegado pouco antes do anoitecer, e Serena, sem pensar muito, decidiu buscá-la. Mas agora, enquanto os prédios ao redor pareciam se fechar sobre ela e cada esquina revelava uma rua diferente da que esperava, o arrependimento começava a se instalar.
Pegou o celular, mas a bateria tinha morrido.
— Ótimo — resmungou, esfregando a testa.
Ela virou outra esquina, e o que encontrou foi uma rua que não reconhecia. As calçadas estavam quebradas, o cheiro de bebida e fumaça impregnava o ar, e algumas pessoas observavam dos cantos, seus olhos avaliando-a de cima a baixo. O aperto na sua garganta se intensificou.
A passos rápidos, Serena atravessou a rua, dobrando mais uma esquina sem olhar para trás. Mas seu erro foi virar em um beco. A escuridão engoliu-a por um instante, até que ela notou uma porta entreaberta, de onde saía o som abafado de risadas masculinas e música baixa. Um bar.
Melhor do que a rua.
Ela entrou.
O cheiro de álcool, cigarro e algo metálico invadiu suas narinas antes mesmo de seus olhos se ajustarem à penumbra do local. O ambiente era pouco iluminado, a maior parte da luz vindo das lâmpadas amareladas pendendo sobre as mesas gastas e do reflexo do neon da rua batendo contra o vidro sujo da entrada. Homens ocupavam os cantos, copos na mão, olhares frios. Mas foi o que estava no centro do salão que fez seu coração parar.
Um corpo.
Deitado no chão, imóvel, uma poça de sangue se espalhando lentamente ao seu redor.
Serena deu um passo para trás, sentindo o terror subir por sua espinha. Foi quando um par de olhos encontrou os dela.
Encostado casualmente contra uma mesa, segurando um copo pela borda, estava um homem. Ele não parecia tão alarmado quanto deveria diante de um cadáver fresco. Pelo contrário, um leve sorriso brincava em seus lábios.
Serena nunca tinha visto alguém como ele antes. Os traços eram afiados, a mandíbula marcada, os olhos escuros demais, como um abismo que puxava qualquer um para dentro. Vestia um terno escuro, diferente de qualquer um ali dentro. Poderoso. Intocável. Perigoso.
Ela tentou dar mais um passo para trás, mas então outro homem se levantou.
— Ela viu.
O ar pareceu se solidificar.
— E daí? — outro respondeu, sua voz carregada de desinteresse.
— Temos que matar ela.
O pânico explodiu no peito de Serena. Seu coração batia contra as costelas como se tentasse escapar antes dela. Sua boca se abriu, mas nenhum som saiu.
Foi então que o homem do olhar sombrio se afastou da mesa e caminhou até ela. Seu passo era lento, calculado, como um predador se aproximando de uma presa acuada. Quando parou diante dela, Serena prendeu a respiração.
Ele a observou em silêncio por um longo momento, os olhos percorrendo cada detalhe de seu rosto, seus lábios entreabertos, o tremor sutil de seus dedos.
— Não. — Ele finalmente falou, e sua voz era calma, baixa demais para alguém que acabara de tirar uma vida. — Vamos brincar um pouco antes.
Um murmúrio correu entre os homens ao redor.
Serena engoliu em seco, sem ousar desviar o olhar.
O homem inclinou a cabeça ligeiramente, um brilho quase divertido nos olhos.
— Vá.
Ela hesitou.
— Anda logo. — Sua voz soou mais impaciente agora. — Quero ver até onde o coelhinho consegue correr.
Seu sangue gelou.
Serena girou nos calcanhares e correu.
Serena correu pelas ruas escuras com o som de seus passos ecoando contra os prédios ao redor, o coração batendo como um tambor frenético no peito. Sua mente estava turva, apenas uma coisa clara: a necessidade de fugir. Ela olhou para trás uma última vez e, por um breve instante, viu a figura do homem em terno. Ele estava parado ali, quase imóvel, mas sua presença preenchia o espaço com uma intensidade que a fez parar no meio de sua corrida.
Os outros homens do bar estavam atrás dela, gritando, correndo, armados. O som das suas vozes raivosas misturava-se com o ruído das botas batendo contra o concreto, mas o olhar do homem de terno a prendia, como uma sombra que nunca a deixaria.
Era uma possessividade clara. Ele a observava, e naquele momento ela soubera que ele sentia algo mais do que apenas o desejo de brincar. Ele queria controlá-la, queria que ela visse sua autoridade de alguma forma inexplicável. Cada passo que ela dava, ele estava um passo atrás, observando tudo, como se tivesse o poder de decidir seu destino, o destino de todos ali.
O medo que sentia era enorme, mas havia algo mais. Algo que a fazia sentir como se estivesse sendo arrastada por uma corrente invisível, uma força que a atraía para ele, uma tensão feroz no ar. O jeito como ele a olhava, com aquele leve sorriso, fazia com que ela se sentisse pequena, vulnerável, mas ao mesmo tempo, alguma coisa dentro dela se rebelava. Algo que dizia para continuar correndo, continuar fugindo… mas seu corpo não respondia tão bem quanto sua mente ordenava.
Ela sentiu uma onda de adrenalina, mas também uma pressão insuportável. Enquanto seus olhos estavam fixos nele, o som dos homens se aproximando a fez voltar à realidade. De repente, a confusão ao redor tomou forma: os outros homens, nervosos e descontrolados, estavam gritando entre si. “Atirem! Mataram ele, temos que matá-lo também!” Uma das armas foi levantada, e tiros foram disparados em direção ao homem de terno, mas ele não se moveu. Era como se a balas não o alcançassem, como se houvesse uma barreira invisível ao seu redor.
Serena viu um homem atirando desesperadamente, mas suas mãos tremiam tanto que a mira estava completamente errada. O homem de terno se manteve ali, impassível. Ele simplesmente não se importava com os tiros, não se importava com o caos ao seu redor. Ele estava acima disso.
E então, ele deu um passo à frente. Cada movimento dele parecia aumentar a tensão no ar, como se o espaço ao seu redor estivesse sendo comprimido. Ele olhou para Serena, e por um segundo, ela sentiu uma conexão, algo profundo e perturbador. A autoridade que ele emanava era quase palpável, como se fosse natural para ele controlar tudo e todos.
Os tiros continuaram a ecoar, mas ele não desviava. Sua postura, firme e calma, era como a de um rei no centro do caos. Um dos homens mais próximos levantou uma faca, correndo para atacá-lo, mas o homem de terno se moveu com uma velocidade impressionante, pegando o braço do atacante e torcendo-o de forma tão brutal que o som do osso quebrando fez Serena se estremecer. O homem gritou, caindo de joelhos no chão, mas o homem de terno nem sequer olhou para ele, seu olhar ainda fixo em Serena, como se estivesse fazendo dela seu alvo.
Serena estancou. Algo em sua mente gritava para que ela fugisse, mas as palavras dele, aquelas palavras sobre brincar, ainda estavam frescas em sua mente. Ele queria brincar. Ela não sabia o que isso significava, mas sabia que, de alguma forma, sua vida agora estava entrelaçada com a dele, de um jeito que não conseguiria escapar tão facilmente.
Ela respirou pesadamente, o pânico se misturando com uma sensação estranha, algo que a desorientava. O homem de terno não a olhava mais como um simples espectador, mas como se fosse algo que ele tinha o direito de moldar. E Serena sentiu isso de maneira visceral. Uma vontade crescente de entender o que ele queria, de entender o que isso significava para ela.
Antes que pudesse pensar mais sobre isso, o som dos gritos e tiros a trouxe de volta à realidade. Ela precisava escapar. E agora, mais do que nunca, o desejo de sair dali crescia como uma chama prestes a consumir tudo. Ela não sabia se conseguiria, mas algo dentro dela sabia que a última coisa que ele queria era que ela fugisse… talvez por isso fosse tão importante que ela fizesse isso.
E assim, ela correu novamente.
Serena entrou em casa, o corpo ainda tremendo, as mãos suadas e os olhos arregalados como se ainda estivesse no meio de um pesadelo. Ela fechou a porta atrás de si com força, quase sem fôlego, como se o simples ato de entrar ali fosse a única coisa capaz de afastar a sensação de perigo que a perseguia.
O som da rua lá fora parecia distante, abafado, como se ela tivesse sido transportada para um mundo à parte. Ela ficou parada por alguns segundos, ofegante, tentando processar tudo o que havia acontecido. O sangue ainda latejava em suas têmporas, e a imagem do homem de terno, com aquele olhar penetrante e cheio de promessas, ainda estava fresca em sua mente. Ela sabia que não podia ficar sozinha com aquele pensamento por muito tempo. Precisava falar com alguém.
Com as mãos trêmulas, pegou o celular do bolso e discou o número de Melanie. Cada segundo de espera parecia uma eternidade, o coração batendo forte no peito enquanto ela aguardava que a ligação fosse atendida. Ela se encostou na parede, fechando os olhos por um instante, tentando recuperar o controle de sua respiração.
— Alô? — a voz de Melanie soou do outro lado, interrompendo seus pensamentos.
Serena segurou o celular com força, a respiração ainda ofegante, e a mente girando a mil por hora. A tentação de contar tudo a Melanie era grande, mas algo dentro dela a impedia. O medo, a insegurança, o receio de que Melanie não entenderia ou, pior ainda, que ela pensasse que estava exagerando. E o pior de tudo… ela ainda não sabia o que pensar sobre o que aconteceu. O homem… aquele olhar… o jeito como ela sentiu a presença dele em cada centímetro da sala… Aquele sentimento de ser observada, de ser controlada, de ser algo que ele possuía, ainda estava em sua pele.
Ela respirou fundo, tentando acalmar o turbilhão dentro de si. Não podia contar agora. Não assim. Não depois do que aconteceu. Ela não sabia como explicar para Melanie o quanto aquilo a havia mexido, o quanto ela se sentia frágil, indefesa, e ao mesmo tempo, envolvida de uma forma que ela nunca tinha imaginado. Como dizer a Melanie que ela estava com medo dele, mas ao mesmo tempo, algo dentro de si desejava entender mais, descobrir até onde aquele homem poderia ir?
— Melanie, eu… — a voz de Serena falhou por um instante. Ela olhou para a janela, tentando se recompor. O vento frio de fora parecia cortar as dúvidas, mas não o medo que ela ainda sentia. — Eu só… queria ouvir sua voz. Preciso desabafar, mas… não sei por onde começar.
Do outro lado da linha, Melanie parecia perceber a hesitação, mas não pressionou. Ela apenas falou com calma:
— Está tudo bem, Serena. Fala quando se sentir pronta. Eu tô aqui pra você, sempre estarei. Mas você está bem? Está segura?
Serena fechou os olhos, balançando a cabeça para afastar as imagens daquele bar, do homem que a observava, e o sangue no chão. Ela não queria que Melanie soubesse de tudo, não ainda. Talvez mais tarde, quando o medo tivesse ido embora, quando ela tivesse conseguido colocar todos os pensamentos no lugar. Ou talvez nunca. Porque, no fundo, havia algo dentro de Serena que sabia que contar tudo significaria enfrentar algo muito maior do que ela queria. E naquele momento, ela não estava pronta para isso.
— Eu estou bem. Só… um pouco cansada. — ela forçou um sorriso, mesmo que Melanie não pudesse vê-lo. — Só precisava ouvir você.
Ela se recostou no sofá, sentindo o peso do corpo, mas a mente ainda acelerada. Como ela poderia explicar o que sentia? Não podia. Não agora. Talvez nunca.
— Eu entendo, Serena. E eu estou aqui, sempre. Vai dar tudo certo.
As palavras de Melanie soaram como um consolo, mas Serena sabia que a verdade era outra. Ela ainda estava sozinha com o que tinha vivido. E o homem de terno, com aquele olhar possessivo, agora fazia parte de sua realidade. Uma realidade da qual ela não conseguia mais escapar, nem mesmo quando a noite caía e ela estava dentro de sua casa, longe de tudo.
— Obrigada, Melanie. — Serena disse, a voz mais suave, um toque de gratidão misturado com uma pontada de tristeza. — Eu só… preciso de um tempo. Acho que é isso.
— Claro, se cuida. Qualquer coisa, só me ligar.
Serena desligou a chamada e ficou em silêncio. A mente estava em um turbilhão, mas o que mais a consumia era o medo de uma coisa que ela não conseguia compreender.
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