frio & calor

A noite chegou, e com ela veio o jantar em família. A mesa estava posta, e minha mãe, como sempre, se encarregava de servir todos com um sorriso no rosto.

Meu pai sentou-se na cabeceira, imponente como sempre, enquanto Kim se acomodava ao meu lado. Ele chegou pouco antes do jantar, com a mesma postura de sempre – impecável, confiante, um verdadeiro modelo de sucesso.

— Então, Kim… — Meu pai começou, cortando um pedaço da carne no prato. — Como está sendo trabalhar no escritório da maior empresa de tecnologia do país?

Kim sorriu de lado, aquele sorriso calculado que sempre fazia parecer que ele tinha tudo sob controle.

— Está sendo uma experiência incrível. A C.M.J. tem uma estrutura impecável, os projetos que estamos desenvolvendo são de ponta, e estou aprendendo muito.

Meu pai acenou com a cabeça, satisfeito.

— Isso é o que eu gosto de ouvir. Um homem responsável, trabalhando duro, construindo o próprio futuro.

Minha mãe sorriu orgulhosa, servindo mais arroz no prato de Kim. Eu fiquei em silêncio, apenas ouvindo, como sempre.

— Hoje tivemos uma reunião sobre inteligência artificial aplicada à segurança digital. — Kim continuou, como se fosse um verdadeiro homem de negócios. — O mercado está crescendo rápido, e a empresa quer se manter na frente.

— Impressionante. — Meu pai murmurou, os olhos brilhando de orgulho.

E então, como sempre, ele se virou para mim.

— Você deveria seguir o exemplo do seu irmão, Victoria.

Eu já sabia que isso viria. Sempre vinha.

— Ele está construindo algo para o futuro, e você? O que tem feito? Além de se trancar no quarto e sair sem rumo?

Soltei um suspiro, largando os talheres.

— Pai…

— Não, eu quero saber. — Ele insistiu, cruzando os braços. — Você não acha que já passou da hora de tomar uma atitude na sua vida? Olha o seu irmão, veja como ele está crescendo, aprendendo, se tornando um adulto de verdade.

Minha mãe olhou para mim, preocupada, mas não interveio.

Foi Kim quem quebrou o silêncio.

— Pai…

Meu pai ergueu uma sobrancelha.

— O que foi?

— Você não precisa pegar no pé da Vic desse jeito. — Kim disse com um tom tranquilo, mas firme. — Desde criança você faz isso, mas sabe que isso só a afasta mais, né?

Meu pai apertou os lábios, visivelmente desconfortável. Ele não gostava de ser contestado, mas também não queria discutir com Kim.

— Não estou pegando no pé dela. Só quero que ela tenha um futuro decente.

— E ela terá. — Kim olhou para mim e piscou um olho de leve, como se quisesse dizer "eu estou aqui".

Meu pai bufou, pegando o copo de água.

— Vamos encerrar esse assunto.

A conversa mudou para outros temas, e o jantar seguiu normalmente. Mas, por dentro, eu sentia uma mistura de gratidão e peso.

Kim sempre me defendia. Desde criança. Mas até quando eu precisaria disso?

Já era tarde quando ouvi uma batida leve na porta do meu quarto. Não precisei perguntar quem era.

— Entra, Kim.

A porta se abriu devagar, e lá estava ele, meu irmão, com a expressão tranquila de sempre, mas com aquele olhar que dizia que ele sabia exatamente o que eu estava sentindo. Ele entrou sem cerimônia e se jogou na beira da minha cama, soltando um suspiro cansado.

— Foi um dia longo, hein?

— Sempre é. — Respondi, abraçando meus joelhos.

Ele ficou em silêncio por um momento, depois virou o rosto para mim, um pequeno sorriso no canto dos lábios.

— Você sabe que está tudo bem, né?

Olhei para ele, sem responder.

— Pai sempre foi assim, Vic. E ele nunca vai mudar. Mas eu estou aqui. Eu sempre estive.

Suspirei, encarando minhas mãos.

— Mas até quando? Você já tem sua própria vida, seu trabalho…

— Até o fim do mundo, se for preciso. — Ele interrompeu, a voz firme. — Nada vai nos separar, Vic. Nem o trabalho, nem o papai, nem a mamãe.

Engoli em seco, sentindo uma pontada no peito.

— Você sempre diz isso.

— E sempre vou dizer. — Ele riu baixinho, bagunçando meu cabelo de leve. — Você é minha irmã. Minha responsabilidade.

— Isso soa cansativo.

— Às vezes é. — Ele brincou, e eu revirei os olhos. — Mas, sério, Vic… você não está sozinha. Nunca esteve.

Fiquei olhando para ele, sentindo um conforto silencioso crescer dentro de mim. Kim sempre foi assim, desde que éramos crianças. Sempre aparecia nos momentos certos, sempre me protegia, sempre me lembrava que eu não precisava carregar o peso do mundo sozinha.

Ele bocejou, espreguiçando-se.

— Bom, eu vou pro meu quarto. Amanhã tenho mais um dia cheio naquela empresa que o papai tanto ama.

Sorri de canto.

— Vai lá, Sr. Homem de Negócios.

Ele riu, se levantou e caminhou até a porta, mas antes de sair, olhou para mim mais uma vez.

— Boa noite, estrela.

Fiquei olhando para a porta fechada por alguns segundos.

Capítulo 3 - Manhãs Cinzentas e Um Encontro Marcado

Acordei com o som distante do despertador no quarto de Kim. Ele sempre esquecia de desligá-lo antes de sair para o trabalho.

O sol da manhã entrava pela fresta da cortina, mas o dia estava nublado, carregado de tons acinzentados. Suspirei, esticando-me na cama antes de finalmente me levantar. Minha rotina matinal era quase mecânica: lavar o rosto, escovar os dentes, prender o cabelo em um coque bagunçado.

Quando desci as escadas, minha mãe já estava na cozinha, preparando o café. O cheiro de pão recém-torrado e café forte enchia o ar.

— Bom dia, querida. Dormiu bem? — Ela sorriu quando me viu entrar.

— Dormi, sim. — Respondi, sentando-me à mesa.

— Kim já saiu. — Ela comentou, colocando uma xícara de café na minha frente. — Ele disse que hoje o dia seria cheio na empresa.

— Como sempre. — Murmurei, pegando um pedaço de pão.

Minha mãe se sentou à minha frente, pegando sua própria xícara de café. Seus olhos doces me observaram por um momento antes de ela falar.

— E você? O que vai fazer hoje?

Parei por um instante. Ethan. O sorvete. O sorriso dele.

— Eu… talvez vá dar uma volta na pracinha.

Ela sorriu, como se já soubesse exatamente o motivo.

— Ah, entendi.

— Entendeu o quê? — Perguntei, desconfiada.

— Nada, nada. — Ela balançou a cabeça, divertida.

Terminei meu café em silêncio, tentando ignorar a forma como minha mãe me olhava como se estivesse prestes a me provocar sobre Ethan. Quando terminei, me levantei da mesa, pronta para sair.

— Não vai esperar seu pai? — Ela perguntou, franzindo o cenho.

— Não estou afim de mais um sermão logo de manhã. — Suspirei, pegando minha jaqueta.

Ela não insistiu. Talvez porque soubesse que, mesmo que tentasse, eu não ficaria.

O caminho até a pracinha era calmo, com o vento fresco da manhã soprando contra meu rosto. O dia estava meio nublado, e as ruas estavam tranquilas. Desde que saí de casa, eu tentava ignorar os pensamentos sobre o jantar da noite passada, sobre meu pai e suas comparações, sobre Kim sempre tendo que intervir.

Mas, por algum motivo, uma outra coisa insistia em ocupar minha mente: Ethan.

Eu ainda conseguia ver seu sorriso em minha cabeça, ouvir a forma descontraída como ele falava, como se nada no mundo pudesse realmente abalá-lo. Ele era diferente de qualquer pessoa que eu já tivesse conhecido.

Quando cheguei à pracinha, meus olhos o procuraram automaticamente.

E lá estava ele.

Mas, diferente do que eu esperava, ele não estava correndo.

Ele estava agachado ao lado de um cachorro.

A cena me pegou desprevenida. Ethan estava ali, brincando com um cachorro grande, de pelo claro e rabo balançando freneticamente. Ele ria enquanto o cachorro tentava pegar algo de sua mão.

Antes que eu pudesse me aproximar, ele olhou para o lado e me viu.

O sorriso dele surgiu no mesmo instante.

— Vic! Achei que você não vinha.

— Eu disse que talvez viesse. — Respondi, cruzando os braços.

— "Talvez" é só uma forma educada de dizer "sim, mas não quero admitir".

Revirei os olhos, mas me aproximei. Foi então que percebi o cachorro me observando com curiosidade.

— E quem é esse? — Perguntei, apontando para o animal.

Ethan sorriu orgulhoso, coçando a cabeça do cachorro.

— Esse é Biscoito.

Franzi a testa.

— Você deu o nome de "Biscoito" para um cachorro?

— Claro! — Ele disse, como se fosse óbvio. — Ele ama biscoitos. E ele se parece com um biscoito gigante, não acha?

Olhei para o cachorro. Ele era grande, peludo e de olhos castanhos brilhantes.

— Bom… talvez um pouco.

Ethan riu, passando a mão pelo pelo do cachorro.

— Eu sempre o trago para passear de manhã. Ele gosta de correr tanto quanto eu.

— Parece que vocês têm muito em comum. — Comentei.

— Somos praticamente almas gêmeas. — Ele piscou.

O cachorro abanou o rabo e latiu animado, como se confirmasse o que Ethan dizia.

— Você quer dar um petisco para ele? — Ethan perguntou, pegando um biscoito de dentro do bolso.

Hesitei.

— Ele não vai me morder?

Ethan fingiu uma expressão séria.

— Bom, às vezes ele ataca estranhos…

Dei um passo para trás, mas ele riu alto.

— Brincadeira! Biscoito é o cachorro mais dócil do mundo.

Bufei, pegando o petisco da mão dele e estendendo para o cachorro. Biscoito o pegou gentilmente, balançando o rabo com entusiasmo.

— Viu? — Ethan disse, sorrindo. — Ele gostou de você.

— Ele só gostou porque eu dei comida.

— Bom, as melhores amizades começam assim.

Revirei os olhos, mas não consegui evitar um pequeno sorriso.

— Você sempre tenta deixar tudo mais leve, né?

— Alguém tem que fazer isso. — Ele sorriu. — Se eu não deixar as coisas leves, quem vai?

Suspirei, encarando o chão.

— Acho que queria ser assim também.

Ethan bateu no meu ombro de leve.

— Você pode ser. Só precisa parar de pensar tanto e viver um pouco mais.

Ficamos em silêncio por alguns instantes, apenas observando Biscoito correr pela grama.

— E você? — Perguntei, quebrando o silêncio.

— O que tem eu?

— Sua família. Sua vida. Você tem essa energia toda o tempo todo, mas e quando você está sozinho?

Ele ficou quieto por um momento, depois sorriu, mas dessa vez seu sorriso foi um pouco mais contido.

— Minha família é… boa. — Ele disse, escolhendo as palavras com cuidado. — Mas eles não são como a sua. Eu meio que aprendi a lidar com tudo sozinho desde cedo.

Houve algo na forma como ele falou que me fez entender que ele não queria se aprofundar muito no assunto.

Então, não pressionei.

Ele então puxou a coleira de Biscoito e se levantou.

— Bom… — Ele me olhou de lado. — Sobre aquele sorvete que você me deve…

Arqueei uma sobrancelha.

— Você realmente quer um sorvete de manhã?

— Sorvete é bom a qualquer hora.

Bufei, me levantando também.

— Você é impossível.

— E você está sorrindo de novo.

Abaixei a cabeça, sentindo minhas bochechas ficarem levemente quentes.

Talvez Ethan tivesse razão.

Talvez eu realmente precisasse viver um pouco mais.

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