O silêncio era o primeiro som que Isaac reconheceu.
Não o silêncio habitual das longas noites em Myrravahn, quando as tochas crepitavam pelos corredores e os sussurros do vento se misturavam ao farfalhar das cortinas. Não. Era um silêncio denso, como o da superfície de um lago antes de romper-se em tempestade — carregado, sufocante, prenhe de algo que ainda não havia se revelado.
Isaac estava parado no limite da sala do trono, como um convidado indesejado. O brasão imperial pairava sobre todos os presentes com o mesmo peso da expectativa que pairava sobre os ombros dele. O irmão, Ryan, estava mais à frente, ombros retos como se a dureza da postura pudesse compensar a desordem do momento.
Mas foi o nome que ouviu que o fez arquear levemente as sobrancelhas.
Vanessa.
Não Ana.
A cabeça de Isaac se inclinou quase imperceptivelmente. O nome se arrastou em sua mente como uma lembrança antiga, como se tivesse sido esculpido em pedra e estivesse sendo lentamente redescoberto sob a poeira do tempo. Vanessa Agrece. A irmã que não era a noiva. A sombra discreta da família. Aquela que ele viu — anos atrás — do outro lado do salão, durante o baile de maioridade. Aquela cujo sorriso suave nunca o deixou em paz, mesmo depois de tanto tempo.
Ele engoliu em seco. A memória retornava com uma força quase cruel.
Vanessa, encolhida ao lado do piano, rindo baixinho de algo que ninguém mais parecia notar. Os olhos dela encontrando os dele por acidente. Ou talvez... não tão por acaso assim.
Foi só um segundo.
Mas foi o suficiente para que o sangue — quente e vivo, antes de sua verdadeira natureza sequer se manifestar — respondesse com algo que ele não compreendia à época. Agora, anos depois, ele entendia perfeitamente. E era isso que tornava a situação diante dele tão absurda, tão desconcertante.
Ela estava ajoelhada agora.
Não Ana.
Vanessa.
E ele sabia — pelo modo como ela abaixava os olhos, pelo jeito que o maxilar dela tremia para não desmoronar — que ela não estava ali por escolha. Vanessa não era ambiciosa. Não era vaidosa. Não era como as damas que se lançavam nos braços de nobres por poder. Ela estava ali por sacrifício. E isso o incomodou mais do que ele gostaria de admitir.
Ryan não parecia notar. Ou, se notava, não se importava.
Isaac observou o irmão com olhos semicerrados, o sangue dentro do peito se agitando. Ryan parecia satisfeito. Curvado diante do trono, trocando palavras com o imperador, como se nada tivesse mudado. Como se Ana e Vanessa fossem peças do mesmo tabuleiro. Substituíveis. Permutáveis.
Um calor estranho começou a subir pelo corpo de Isaac, se acumulando no fundo do estômago como brasas abafadas.
O que você vai fazer com ela, Ryan?
A pergunta ecoou dentro dele, mas não encontrou voz.
Ele não podia falar. Ainda não.
A ordem já havia sido dada.
Vanessa seria a noiva.
E havia algo terrivelmente errado com isso.
A noite havia caído sobre o castelo como um manto de chumbo. Pesada. Densa. Silenciosa demais.
Isaac permaneceu de pé junto à janela do quarto, observando as sombras deslizando pelos telhados das torres. O reflexo pálido da lua tingia as pedras com um azul cortante, e o frio parecia emanar de dentro dele, e não do ar noturno. Ele não conseguia parar de pensar na expressão de Vanessa — firme, mas quase transparente de tão tensa — ao ajoelhar-se diante do trono. A imagem queimava em sua mente com insistência, como se tivesse sido gravada a ferro.
Ela não olhou para mim.
O pensamento doía.
Mas por que olharia? Ele era só o irmão mais novo do noivo dela.
—Você não parece muito contente com o arranjo. —A voz de Ryan rompeu o silêncio como uma lâmina embainhada lentamente. Ele entrou no quarto de Isaac sem bater, como fazia desde crianças.
Isaac virou-se devagar, à sombra da janela cortando metade do seu rosto. Ryan estava com a postura relaxada, mas os olhos... os olhos estavam alertas. Quase irritados.
—Você também não parecia — respondeu Isaac, seco. —Ou estou enganado?
Ryan o encarou por um momento. Depois deu um meio sorriso, irônico.
—Eu só achei... curioso. Primeiro nos dão uma boneca de porcelana, toda sorrisos e encantos, e agora, uma estátua de ferro. —Ele bufou. —O que será que passou pela cabeça da filha mais velha?
Isaac fechou a mandíbula com força. Não respondeu. O nome de Vanessa queimava em sua língua como se fosse sagrado demais para ser dito ali.
—Ou será que você sabe o que se passou? —Ryan continuou, com um tom que arranhava a paciência. —Afinal... você e Ana sempre foram tão próximos, não? E você e Vanessa... —ele riu, mas o som foi vazio. —Bom, vocês mal se falam. Quase parece que...
Ele não terminou a frase. Mas Isaac entendeu.
Quase parece que você desejava que ela viesse.
A acusação pairava no ar, não dita.
Isaac deu um passo à frente, o maxilar tenso.
—Eu não controlo o que ela escolhe — disse em voz baixa, mas firme. —E você deveria pensar menos em quem te foi dado... e mais no porquê.
Ryan riu outra vez. Dessa vez, mais alto, mas com um tom amargo.
—Você anda falando como o velho Matthis. —Ele virou-se, abrindo a porta novamente. —Deve ser o tempo que passaram juntos com aquelas espadas malditas. Só tome cuidado para não acabar tão quebrado quanto ele.
E então foi embora, deixando um silêncio espesso para trás.
Isaac ficou ali, imóvel. Os dedos fechados em punhos. O peito arfando com raiva contida, com algo mais. Algo que ele não nomeava. Algo... que pulsava.
Quando se jogou na cama, o corpo não descansou. Os olhos permaneceram abertos, presos ao teto. Cada vez que piscava, via o rosto de Vanessa naquela sala. Seus olhos sérios. A forma como ela disse “leve-me” com a coragem de um mártir e a resignação de alguém que já havia desistido de sonhar.
Ela não fugiu.
Ela se entregou.
E isso o atormentava.
O tempo passou devagar. A insônia arranhava as bordas da sua mente. Mas havia outra coisa... um calor estranho correndo por suas veias. Um desconforto sob a pele, como se algo lá dentro estivesse acordando. Seu coração batia alto demais. Os ouvidos captavam sons do castelo que antes ele jamais perceberia — passos leves no corredor, o bater de asas de um corvo do lado de fora, o tilintar sutil de correntes nas janelas mais altas.
E... algo mais.
O perfume dela.
Como era possível? Ela estava a dezenas de corredores dali. E, ainda assim, ele sentia.
Levou a mão ao rosto, os dedos trêmulos. Sua respiração estava irregular. A garganta... seca. Ardente. Um desejo estranho e profundo o envolvia. Não desejo carnal. Era mais primitivo, mais instintivo. Era sede.
Sede de quê?
Ele não sabia. Mas temia a resposta.
Levantou-se da cama, incapaz de permanecer preso naquele quarto. Vestiu-se com rapidez, jogou a capa sobre os ombros e saiu, sem rumo definido. Os corredores do castelo estavam quietos. Guardas em vigília o cumprimentaram com um aceno respeitoso, mas não tentaram abordá-lo. Havia algo nos olhos de Isaac — naquela noite — que mandava todos ficarem longe.
Foi parar no jardim.
A noite estava fria. As folhas murmuravam sob o vento, e o cheiro da terra úmida preenchia o ar. Ele andou até a fonte de mármore esculpida no centro do jardim, sentou-se à beira dela e afundou o rosto nas mãos.
Por um momento, sentiu como se estivesse afundando dentro de si mesmo.
Algo está errado comigo.
Não era apenas a paixão que o corroía. Era outra coisa. Mais densa. Mais perigosa.
Fechou os olhos e tentou controlar a respiração, mas quanto mais inspirava, mais sentia o cheiro dela — o cheiro do sangue dela.
Quente. Doce. Vivo.
—Pare com isso... —sussurrou, apertando os próprios punhos contra os olhos. Mas era inútil.
Imagens começaram a formar-se em sua mente — visões vívidas demais. Os dedos dele em meio aos cachos dela. Os lábios encostando-se ao pescoço. O gosto metálico em sua língua.
Não.
Ele se levantou abruptamente, respirando com dificuldade, como se tivesse corrido léguas. Estava suando, o corpo em alerta, os olhos arregalados e famintos.
—Isso não sou eu. —disse para a escuridão. Mas havia uma voz, enterrada em algum canto esquecido da sua alma, que sussurrava:
Mas será.
Ficou ali, em pé no jardim, cercado pelo vento noturno, pela memória do toque dela... e por uma sede que ele ainda não compreendia, mas que já começava a dominá-lo.
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Atualizado até capítulo 116
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