O Relógio de Areia de Amadeu

A cidade de Valdeluz era conhecida por duas coisas: suas tulipas que floresciam fora de época... e um homem que nunca saía de casa.

Amadeu morava na esquina mais alta da cidade, onde o vento parecia sussurrar segredos antigos para quem soubesse escutar. Sua casa era uma torre de três andares, tão estreita que parecia ter sido erguida por engano entre as eras. As janelas viviam fechadas. As cortinas, sempre pesadas. E a caixa de correio, vazia há mais de 12 anos.

Ninguém lembrava direito quando foi a última vez que ele desceu até a praça. Só sabiam que era um velho de barba longa, mãos magras e olhos que ainda brilhavam com uma coisa extinta: expectativa.

Todos os dias, às 05h35 da manhã, uma sombra podia ser vista no andar mais alto da torre. A mesma silhueta, no mesmo lugar, à mesma hora. Parado. Observando.

“Ele conta o tempo”, diziam os moradores.

Mas era mais do que isso.

Amadeu tinha um quarto cheio de relógios de areia. Cada um diferente. Um para cada pessoa que um dia havia passado por sua vida — fosse por um café ou por uma tragédia.

Aqueles relógios não marcavam horas.

Marcavam presenças.

E, principalmente, ausências.

Cada vez que alguém se distanciava, o grão de areia começava a escorrer lentamente. E, quando terminava, o relógio era virado de cabeça para baixo — como um voto silencioso de esperança.

“Ela vai voltar”, murmurava, virando o da irmã.

“Ele vai me perdoar”, dizia ao girar o do melhor amigo.

“Um dia ele vai entender”, completava diante do de seu filho.

Ninguém sabia como ele tinha tantos. Ninguém entendia como funcionavam. Nem mesmo ele.

Só sabia que, ao observar cada um, lembrava que ainda existia tempo. E enquanto houvesse grãos, havia a chance de recomeço.

Numa manhã de inverno, uma coisa mudou.

Amadeu acordou e sentiu que o ar no quarto estava mais denso. Os ponteiros invisíveis da saudade pareciam atrasados. Algo estava diferente.

Ao subir até o sótão, viu que um dos relógios havia quebrado.

Era o de vidro âmbar — o mais antigo. O da mulher que ele amou quando tinha vinte e poucos anos e um coração sem reservas. Ela tinha partido sem olhar para trás, mas ele nunca esqueceu. Nunca deixou de virar aquele relógio, dia após dia, década após década.

O vidro agora estava trincado. A areia escorria pelo chão, sem direção, sem retorno.

E foi aí que ele entendeu.

Naquela noite, Amadeu escreveu uma carta.

Endereçada a ninguém.

Ou a todos.

Ou talvez, só a ele mesmo.

> "Às vezes, insistimos em virar um relógio de areia que já não tem mais o que marcar.

Esperamos pelo retorno de pessoas que não querem ser procuradas.

Apostamos tempo em histórias que só existem em nossa memória.

E tudo bem.

Amar também é saber parar de contar."

No dia seguinte, os moradores de Valdeluz repararam que, pela primeira vez em anos, as janelas da torre estavam abertas.

Amadeu, com um casaco velho e um sorriso novo, desceu até a praça. Pediu um café. Sentou ao sol. Falou com um vendedor de livros usados. Riu de uma criança com os joelhos ralados.

E nunca mais se trancou.

Dizem que, naquela noite, ele jogou todos os relógios pela janela. E que a areia se espalhou pelo vento da cidade como uma brisa quente, fazendo tulipas desabrocharem mesmo em pleno inverno.

Alguns dizem que os grãos pousaram nas mãos das pessoas certas — trazendo reconciliações, confissões, telefonemas nunca feitos.

Outros acreditam que, talvez, o tempo só exista mesmo... quando alguém espera por alguém.

Mas Amadeu...

Ah, Amadeu aprendeu que esperar não é sobre o outro voltar.

É sobre a gente voltar a viver.

Fim.

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