A janela 203

O prédio Jasmim Azul era velho, mas não antigo o suficiente para ser considerado histórico. Situava-se entre o centro e o quase-centro da cidade, como quem nunca teve certeza de onde deveria estar. Seus corredores exalavam mofo, e o elevador era lento como uma saudade sem pressa.

Mas havia algo curioso ali.

O apartamento 203.

Ninguém o habitava. Ninguém o alugava. Ninguém sequer o anunciava.

A porta estava sempre trancada, mas sua janela — voltada para o pátio interno — ficava aberta em todas as manhãs de segunda-feira, exatamente às 07h13. E fechava sozinha às 18h00.

Alguns diziam que era um mecanismo automático. Outros, que o zelador cuidava disso secretamente. Mas entre os antigos moradores, circulava um boato: a Janela 203 mostrava o que você precisava ver — e não o que você queria.

Claro que ninguém acreditava. Até que Ana se mudou para o prédio.

Ana era uma ilustradora de livros infantis que havia deixado uma vida inteira para trás. Um noivado desfeito, pais distantes, um projeto de livro cancelado. Tudo parecia suspenso, como se a vida tivesse dado "pause" sem avisá-la.

Alugou o 201, dois apartamentos abaixo da tal janela. E em uma segunda-feira qualquer, por puro acaso ou talvez impulso, subiu até o segundo andar apenas para "ver com os próprios olhos". Achava graça no mistério.

Lá estava ela. A Janela 203. Aberta. A brisa passando por entre as cortinas empoadas. Nenhum som.

Ela se aproximou. Olhou.

E então, algo... diferente.

Não era o pátio que viu, nem a cidade. Era ela mesma — criança — sentada no telhado da antiga casa da avó, desenhando no chão com giz colorido. Ao lado, um rádio tocava uma música antiga. A imagem não era nítida como um espelho, mas fluida como uma memória viva.

Ana recuou. O coração acelerado. "Devo estar cansada", pensou. Voltou para o seu apartamento, fechou as cortinas, tentou esquecer.

Mas voltou na segunda seguinte. E na outra. E na outra.

Cada semana, uma nova cena. Às vezes feliz, às vezes dolorosa. Ela se via com antigos amigos, antigos erros, decisões silenciosas, palavras não ditas.

Na quarta semana, viu-se recusando um emprego que poderia ter mudado sua carreira — por medo. Na sexta, viu a si mesma enterrando um desenho na praia como uma cápsula do tempo, prometendo voltar. "Quando for alguém de verdade", disse a menina que foi.

Ana chorou naquela noite. Pela primeira vez em meses, desenhou. Não para o trabalho. Mas para si.

Começou a criar novamente. Pequenas histórias, personagens esquecidos. Abriu a velha pasta de ideias arquivadas. Sentiu-se viva.

Na sétima segunda-feira, a Janela 203 estava fechada.

E nunca mais se abriu.

Ana tentou voltar, esperou semanas. Nada.

Bateu na porta. Ninguém. Pediu ao zelador, que respondeu confuso:

— Moça... o 203 não tem janela voltada pro pátio. É parede cega ali.

Ela riu. Não debochando, mas em gratidão.

"Algumas janelas não existem no concreto, mas entre o que esquecemos e o que ainda somos."

E nunca mais precisou voltar.

Porque certas janelas se abrem uma única vez — só o suficiente para lembrar quem fomos antes de esquecermos de ser.

Fim.

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